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Entrevista especial

- Publicada em 17 de Outubro de 2021 às 18:11

O espaço urbano deve ter diversidade, defende Newton Burmeister

"A cidade que amanhece não é a mesma que anoitece; ela nunca para, está sempre mudando", diz urbanista

"A cidade que amanhece não é a mesma que anoitece; ela nunca para, está sempre mudando", diz urbanista


fotos: LUIZA PRADO/JC
Secretário do Planejamento em duas oportunidades, o arquiteto e urbanista Newton Burmeister foi protagonista na elaboração do Plano Diretor de Porto Alegre aprovado em 1999 e que entrou em vigor no ano 2000. Um dos princípios da lei é fazer revisões de tempos em tempos. A primeira foi concluída em 2010. Uma década depois, a segunda avaliação, cujo debate era para ter sido concluído em 2020, atrasou em função da pandemia.
Secretário do Planejamento em duas oportunidades, o arquiteto e urbanista Newton Burmeister foi protagonista na elaboração do Plano Diretor de Porto Alegre aprovado em 1999 e que entrou em vigor no ano 2000. Um dos princípios da lei é fazer revisões de tempos em tempos. A primeira foi concluída em 2010. Uma década depois, a segunda avaliação, cujo debate era para ter sido concluído em 2020, atrasou em função da pandemia.
Provocado a falar do assunto, Burmeister comenta o projeto específico de revisão do Plano Diretor do Centro, que está na Câmara Municipal, e prevê estímulos à construção civil. Ele sustenta que o mais importante é promover a diversidade de usos, com habitação, comércio e serviços. "Não é aumentar os índices (construtivos) para construir escritórios que vai resolver o problema. É a diversidade. Se for mais do mesmo, não adianta. Tem que ter habitação junto, é o que dinamiza", expõe.
Para o urbanista, outro ponto fundamental é promover o debate com a população, para saber qual é a cidade que as pessoas desejam. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Burmeister ainda fala da importância de espaços públicos para as pessoas usufruírem da cidade.
Jornal do Comércio - Porto Alegre está revisando o Plano Diretor. Qual é a sua avaliação?
Newton Burmeister - O primeiro Plano Diretor é de 1959, o segundo, de 1979, passaram-se 20 anos, com ajustes de acordo com a situação, demandas. De 2000 para cá, a dinâmica urbana se tornou muito diferenciada. Meu filho é arquiteto e trabalha em home office para uma empresa de Singapura. Isso altera a organização urbana: deslocamentos que eram imprescindíveis deixaram de ser. A pandemia demonstrou outro fator.
JC - Afeta o planejamento?
Burmeister - Sem dúvida. Investidores de edifícios comerciais para escritórios já estão revisando isso, lançamentos imobiliários (residenciais) que não tinham escritório para fazer home office... Essas coisas estão trazendo uma alteração nas relações. Espaços públicos ficaram muito valorizados e necessários. É importante, quanto mais espaços públicos, mais abrangência, próximos e acessíveis... A orla do Gasômetro, que por décadas ficou abandonada, tinha usos secundários, foi cadeia, usina, hoje é uma complementariedade urbana de lazer, tanto é demandada pelo público que congestiona.
JC - É imperativo ter atenção maior com espaços públicos?
Burmeister - Sem dúvida, porque a cidade é o que você pode usufruir dela. A cidade é o cenário da vida; se ele não te ampara, como é que tu vais usufruí-lo? Espaços públicos configuram a cidade para ser usada. Tu tens que te sentir confortável na tua rua, no Centro da cidade... A Rua da Praia há 40, 50 anos, era o shopping principal da cidade, com lojas, restaurantes, bares, cinemas, equipamentos urbanos que se estendiam da rua Doutor Flores até o Hotel Majestic. Percorrendo a pé, tinha movimentação, e voltada para a rua. Em 40 anos, mudou, atividades que eram extrovertidas ficaram introvertidas, foram para dentro de shoppings e a rua foi ocupada por outras atividades.
JC - Uma frase sua ficou famosa nos anos 1990, início dos anos 2000, sobre a cidade, que ela não para, independentemente do que se fizer no planejamento. Isso continua valendo?
Burmeister - Sim, a cidade é absolutamente dinâmica. A cidade que amanhece não é a mesma que anoitece, nunca, ela nunca para, nunca se dá um tempo para, digamos, um período de descanso. Não, a cidade está permanentemente mudando. E por essas mudanças e necessidades, é um território de disputas. As diversidades que compõem a cidade querem se apropriar da sua parte nela, as pessoas querem se apropriar de sua parte. A questão do capital, por exemplo, a cidade para ele é um instrumento de ganho, se puder multiplicar um terreno por 10 vezes, está muito bom. Se puder multiplicar por 20, muito melhor. E tem outros interesses. Como somos uma sociedade muito desigual, tem partes da cidade que se qualificam e partes que perdem... Não é possível uma cidade como Porto Alegre ter o nível de saneamento básico que tem - e mesmo assim é alto comparando com o Brasil... Então, qual a cidade que está crescendo mais? A cidade formal, organizada, com equipamentos, ou aquela que vai ocupando as franjas das cidades, que a gente chama de periferia...
JC - Há grandes problemas nas periferias, mas a atenção maior ainda é para o Centro...
Burmeister - Os Centros têm nas referências das cidades praticamente a sua identidade. Essa situação começa a se diluir na medida em que a cidade vai crescendo e essas regionalidades de centralização vão se modificando. Veja o que está acontecendo na área do Iguatemi, é a cidade do século XXI que está sendo feita, Parque Germânia, lançamentos (imobiliários)... Mas a estrutura viária permanece a mesma, só se modifica na parte que é urbanizada nova. Na parte antiga, a (avenida) João Wallig é a mesma de 50 anos atrás. Então, essa situação de necessidades, à medida que vai se afastando do Centro, vai ampliando, porque a velocidade de crescimento e a velocidade de investimento são diferenciadas, (a cidade) cresce mais do que se investe. A periferia é sempre muito castigada, e o Centro sempre está a requerer manutenção que lhe mantenha a identidade urbana. São circunstâncias que se dissipam à medida que se faz do território o objeto do planejamento como um todo. E na medida em que se subdivide nas regiões de gestão de planejamento, como é o Plano Diretor (de Porto Alegre), as pessoas têm melhores condições de participar, entendendo seu território.
JC - O estímulo a "novos Centros" estava previsto no Plano Diretor de 1999. Entrevistamos o professor da Ufrgs Benamy Turkienicz e ele disse que o Centro de Porto Alegre hoje é o cruzamento da Terceira Perimetral com a avenida Ipiranga. Qual é sua avaliação dessas novas centralidades 20 anos depois?
Burmeister - Temos o Centro Histórico, mas o Centro dinâmico da cidade se altera significativamente, ele migra. Essa região do Iguatemi, se pegar o mapa, é o centro geográfico da região metropolitana imediata e entorno: Canoas, Cachoeirinha, Alvorada e Viamão. Uma coisa importante que podemos perceber na aplicação desse Plano é que não basta construir, tem que ter diversidade no espaço urbano: moradia, comércio, lazer, porque senão, tornam-se lugares com ocupação de pico quando em funcionamento, e mortos à noite. Um exemplo é o final da avenida Ipiranga, área da Federação Gaúcha (de Futebol), ADVB, mais alguns prédios construídos com parâmetros do novo Plano Diretor, blocos de garagem e prédios para cima. Aquilo ali é um deserto à noite. Fui em uma atividade no Memorial Prestes, saí por volta da meia-noite, chamei um Uber que teve dificuldade de me achar, tive que me descolar para Ipiranga e fiquei absolutamente inseguro. Essa sensação de insegurança, qualquer um teria porque em vez do espaço te acolher, ele te agride, te repele.
JC - Não tem movimento...
Brumeister - Não tem movimento, não tem diversidade, que é essencial para a dinâmica urbana.
JC - E como o Plano Diretor pode estimular essa diversidade?
Burmeister - Mediante uma capacidade de avaliação permanente do organismo de planejamento, estar sempre atento a essas situações, preparar a legislação para que essas circunstâncias ocorram. Tem que ser intencional, tem que dizer: "Tu vais fazer aqui 40 escritórios, então, tem que ter 10 lojas, e X equipamentos..." Esse é um grande problema de centros urbanos monofuncionais, por exemplo, (uma área comercial ou de escritórios) chega no final da tarde desaparece tudo. Essas coisas são passíveis de serem corrigidas na medida que se possibilite uma construção mista, diversificada.
JC - Muito se aponta que não há essa avaliação permanente do Plano Diretor de Porto Alegre. Como vê isso de 1999 para cá?
Burmeister - O acionamento das regiões de gestão de planejamento e do Conselho do Plano Diretor, parcela da participação popular dentro da estrutura de estado, são locais próprios para se levantar esse debate. E deveríamos ter o hábito de discutir essa questão sistematicamente, de dois em dois anos, fazer o congresso da cidade para ver como estão as coisas. Não custa fazer esse debate. Todos esses princípios, quando gestados para o Plano Diretor de 2000, tiveram origem no congresso da cidade, em que houve um debate nunca antes ocorrido na cidade sobre "Que cidade queremos?".
JC - Falta debate?
Burmeister - Poderia ter mais, porque as estruturas institucionais, se não são provocadas, se acomodam na sua condição de organismo, de instituição. Elas precisam ser provocadas, precisam ser desafiadas para pensar sobre o assunto.
JC - A primeira revisão do Plano Diretor de 2000, começou em 2003 a reboque de movimentos comunitários, de bairros, que se manifestaram e aí desencadeou o debate da prefeitura...
Burmeister - É com essa dinâmica que a gente pode movimentar a revisão, porque a tendência é acalmar, ficar tudo soft, e acho que para a cidade tem que ser ao contrário, ela tem que ser estimulada a ter esse hábito do debate.
JC - Há o diagnóstico de que o Centro está se esvaziando, com escritórios desocupados. E um dos princípios do projeto de revisão do Plano Diretor do Centro, é adensar, permitindo que construções usem os índices antigos, maiores, trazendo mais gente ao Centro. O que acha dessa ideia?
Burmeister - O problema é a diversidade. Se for mais do mesmo, não adianta. Tem que ter habitação junto, é o que dinamiza, que exige serviços, restaurantes, lavanderia etc. Então, não é aumentar os índices para construir escritórios que vai resolver o problema, é a diversidade e o debate com a região de gestão do planejamento. A comunidade tem que se apropriar da cidade, tem que sentir que faz parte, tendo espaço de fóruns em que possa ir lá e dizer o que acha. Espaços de participação são essenciais. Se tu não te aproprias do espaço público pelo debate, como é que tu vais te aproximar da cidade? Se a prefeitura não te enseja interagir, a percepção de cidade fica exclusivamente ligada a sair de sua casa e ir ao trabalho, ao supermercado, ao jogo de futebol, fica tudo sendo rotinas e caminhos sabidos.
JC - Intervenções na orla do Guaíba e o projeto do Cais Mauá são uma virada da cidade, para ficar de frente para o Guaíba?
Burmeister - Temos um privilégio que é esse nosso assentamento na beira de um corpo d'água belíssimo, não são todas as cidades que têm essa condição, e ficamos de costas por muito tempo. O Cais tem uma história de vai e volta, não se define nunca com clareza, embora seja um espaço importante e com um potencial muito grande.
JC - O governo do Estado está preparando um novo edital. O senhor vê um pressuposto que deveria constar no projeto de revitalização do Cais Mauá?
Burmeister - Tem que abrir para o público, deixar as pessoas chegarem no local. E essa chegada não precisa ser com tudo pronto, bonito, pintado, tudo feito... Vai tomando conta. Essas coisas têm que ser paulatinas e insistentes, tem que começar, ir fazendo. Não tem esse negócio de chegar e, de repente, dois anos depois ser um shopping, ter um equipamento excepcional ali, uma roda gigante...
Burmeister - Conheci ali sem muro, com enchente, então, não é decisão para ser tomada de súbito, "esse negócio aqui não vale nada". Existe capacidade técnica para falar sobre isso de maneira adequada, analisar... Não que não possa tirar, mas alguma razão existiu para que ele fosse feito, então, alguma razão deve existir para desmanchar. Dá para encontrar soluções, desde que haja dedicação a isso.
JC - Foi um erro a extinção da Secretaria do Planejamento?
Burmeister - Veja, não interessa o nome, interessa o que faz. Pode batizar do nome que quiser... É importante para uma cidade ter um órgão de planejamento urbano. Curitiba instituiu o IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), que foi o grande agenciador de alterações urbanísticas da cidade e criou referencias como o transporte coletivo... Por que temos cidades referenciais? Barcelona (Espanha), Bruxelas (Bélgica), São Francisco (EUA), Manila (Filipinas), Xangai (China), Singapura, tudo decorrente de projetos.

Perfil

Newton Burmeister, 84 anos, é natural de Vacaria (RS), mas passou a infância no Paraná. Voltou ao Estado na adolescência, quando se mudou para Porto Alegre. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Ufrgs em 1965. Além de fazer projetos, também atuou como professor universitário na Ritter dos Reis (hoje UniRitter). Começou sua militância política na faculdade. Foi presidente da seccional gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), na primeira metade dos anos 1970, época em que a instituição era um dos focos de resistência ao regime militar. Foi presidente da Federação Nacional dos Arquitetos, participando pela entidade dos debates sobre a Constituição. Filiou-se ao PT logo que o partido foi criado. Secretário municipal de Obras na gestão de Olívio Dutra (PT) na prefeitura de Porto Alegre (1989-1992), comandou a Secretaria do Planejamento Municipal nos governos petistas de Tarso Genro (1993-1996) e Raul Pont (1997-2000) e liderou a formulação do Plano Diretor de Porto Alegre de 1999, que entrou em vigor no ano 2000.