No dia 23 de agosto de 1974, 66 jornalistas se reuniram na sede da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) para fazer história. O encontro foi o desfecho de uma série de conversas e resultou na criação da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal).
Hoje, 37 anos depois, ex-integrantes da cooperativa lançam um livro com 33 reportagens publicadas pelo jornal que editavam - o Coojornal. O evento ocorre às 19h no teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa e terá também a exibição de um documentário.
Tensionados pelo contexto político da época, quando o Brasil vivia uma ditadura militar que já durava dez anos - e se estenderia por mais onze -, os profissionais queriam romper com o silêncio que reinava na imprensa sobre diversos assuntos, principalmente os relativos à política. E a cooperativa foi o formato encontrado para unir os jornalistas em torno de uma antiga aspiração da categoria: dirigir seu próprio jornal.
Era, até então, inédita no País a formação de uma cooperativa na área da comunicação. Um dos envolvidos na criação da Coorjonal e seu primeiro presidente, o jornalista José Antonio Vieira da Cunha, conta que a ideia surgiu quando soube da criação do periódico italiano Il Giornale, que era feito por profissionais cooperativados.
"Éramos um grupo de jovens que debatia muito a necessidade de existir um jornal feito por jornalistas. Era uma discussão frequente nas mesas de bar", recorda.
Um episódio em particular atiçou ainda mais o descontentamento de parte da categoria com o jornalismo tradicional comandado por empresários e impulsionou a busca por caminhos alternativos: a saída de 21 jornalistas da Folha da Manhã, veículo matutino que circulava no Estado. Eles se afastaram em protesto à demissão do repórter Caco Barcellos, que havia publicado uma reportagem sobre violência policial.
O objetivo da Coojornal era editar um periódico que fosse para as bancas. Mas a realidade financeira fez com que os jornalistas adotassem um caminho mais lento e rentável. Começaram prestando serviços a entidades da sociedade civil.
"Editávamos publicações e boletins. Chegamos a fazer o jornal do Sesi (Serviço Social da Indústria), que tinha 300 mil exemplares, e o do Sindibancários", lembra o jornalista Danilo Ucha, que sempre integrou o Conselho Fiscal da Coojornal.
Esse tipo de trabalho foi a locomotiva financeira do grupo e permitiu a criação do tão sonhado jornal, o Coojornal - que recebia o mesmo nome da cooperativa.
O início foi modesto. Em novembro de 1974, três meses depois da formalização da cooperativa, começou a circular o Coorjornal, na forma de um boletim interno de quatro páginas que era distribuído a associados e a redações e faculdades de Jornalismo do País. A primeira edição trazia na capa a manchete "O jornalista entre a sua ética e os interesses da empresa", evidenciando que a publicação discutiria a fundo a atuação dos meios de comunicação.
Aos poucos, o boletim passou a trazer informações da área política. "Havia uma ansiedade muito grande por notícias que não eram publicadas em nenhum jornal", explica Ucha.
A repercussão chegou a São Paulo e ao Rio de Janeiro, e os jornalistas sentiram que era o momento ideal para lançar o Coorjonal nas bancas, transformando-o em um periódico mensal. A primeira edição "de rua" saiu em outubro de 1976, após oito publicações do boletim.
"O crescimento veio de fora (do Estado) para dentro. O lançamento do Coorjornal não teve repercussão nenhuma em Porto Alegre", conta o jornalista Elmar Bones, que editava o veículo.
Mas ele destaca que em outros estados o jornal logo ficou conhecido. "As colunas políticas comentavam nossas matérias. O Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) fazia referências e, às vezes, outros veículos reproduziam reportagens exclusivas que publicávamos", rememora.
A qualidade das reportagens e a ousadia das pautas trouxeram visibilidade e, consequentemente, anunciantes ao Coorjornal, o que possibilitou seu crescimento. A cooperativa chegou a ter mais de 400 sócios e o jornal atingiu picos de mais de 33 mil exemplares em circulação.
Pressão da ditadura fechou a cooperativa no início dos anos 1980
A ousadia do Coojornal não agradava à ditadura militar brasileira (1964-1985). Como o objetivo do periódico era levar ao conhecimento da sociedade temas que ficavam de fora dos veículos tradicionais, os atritos com o regime eram inevitáveis.
O jornalista Elmar Bones, ex-editor do Coojornal, lembra que, na segunda metade dos anos 1970, estava sendo costurado um acordo entre o governo militar e as empresas de comunicação. "Os jornais estavam negociando o fim da censura prévia, então evitavam qualquer assunto que pudesse ser delicado para a ditadura", explica.
Era justamente esse espaço que o Coojornal pretendia ocupar. "Havia uma aclamação por mais democracia, por anistia, pelo fim da tortura e das outras ditaduras latino-americanas. Isso tudo não era tratado pelos outros veículos", recorda o jornalista Elmar Bones.
Duas reportagens despertaram a ira dos militares e foram decisivas para que o regime apontasse sua artilharia contra o Coojornal. A primeira foi publicada na edição de 18 de julho de 1977 e informava que, em 13 anos de ditadura, 4.682 políticos brasileiros haviam sido cassados.
A segunda e mais emblemática, publicada em fevereiro de 1980, trazia documentos secretos sobre operações de combate a grupos guerrilheiros pelo Exército brasileiro. Um relatório expunha a precariedade e o despreparo dos militares na luta contra os guerrilheiros da VAR-Palmares no Vale do Ribeira. "O texto informava que os soldados iam mal vestidos e mal calçados para a mata e que a ração alimentar deles estava vencida", lembra o jornalista José Antonio Vieira da Cunha, que foi o primeiro presidente da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal), que editava o periódico.
A reportagem resultou na prisão de quatro repórteres, em 1983, e na intensificação de uma campanha para
estrangular financeiramente o Coojornal. "Ficamos cinco dias na penitenciária Madre Pelletier e saímos com um habeas-corpus. O governo compreendeu que as coisas haviam mudado e que o contexto não comportava mais a prisão de jornalistas", conta Rafael Guimaraens, que foi um dos detidos, junto com Elmar Bones, Rosvita Laux e Osmar Trindade.
Mas a pressão da ditadura não afrouxou. Agentes da Polícia Federal visitavam os anunciantes do Coojornal para intimidá-los a não injetar dinheiro no periódico. Em 1977, após a publicação da reportagem sobre as cassações de políticos, o número de anunciantes caiu de 28 para apenas dois em relação à edição seguinte.
A atuação do regime ceifou também os clientes para os quais a cooperativa editava publicações e boletins. "Isso acabou com a Coojornal. O mercado editorial não se interessava mais em ficar alimentando jornalistas tão ‘indisciplinados'", comenta Guimaraens.
O jornalista Danilo Ucha reconhece que a ingerência dos militares ajudou a afundar a cooperativa, mas avalia que disputas internas e problemas de gestão também foram determinantes. "Desde o início, havia grupos sempre se picando e isso gerou desgastes internos. Nenhuma eleição da diretoria ocorreu sem oposição."
Em março de 1983 circulou a última das 78 edições do Coojornal.
"O espaço da imprensa alternativa hoje está na internet"
Brigida Sofia
Manga Rosa Filmes/DIVULGAÇÃO/JC |
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Ayrton Centeno relembra a atuação da cooperativa que marcou uma geração |
Editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, o CooJornal (1975-1982) obteve destaque nacional pela qualidade editorial e pelo compromisso com a verdade. Dentro de um projeto de resgate, um livro de reportagens selecionadas e um documentário serão lançados hoje na Assembleia Legislativa, às 19h. Em seguida, será aberta uma exposição de capas, que pode ser visitada até 17 de junho. Coojornal - um jornal de jornalistas sob o Regime Militar (Libretos, 272 páginas, R$ 40,00), com organização de Rafael Guimaraens, Ayrton Centeno e Elmar Bones, reúne 33 reportagens e entrevistas e traz o documentário encartado.
Os textos refletem o Brasil da segunda metade dos anos 1970 e a luta pela redemocratização. Tratam de temas como anistia, sequestro dos uruguaios, a revolução da Nicarágua, as ditaduras militares do Uruguai, da Argentina e da Bolívia, as greves do ABC paulista, a guerrilha do Araguaia, os cassados pelo regime militar, a prática da degola nas revoluções gaúchas e documentos secretos do Exército no combate à guerrilha. Em entrevista, um dos organizadores do livro, Ayrton Centeno, conta como foi participar do projeto.
JC - Panorama- Qual foi o papel do CooJornal no contexto da imprensa alternativa no Brasil?
Ayrton Centeno - Tem o rótulo genérico de alternativa ou nanica essa imprensa dos anos 1970. O CooJornal foi um dos principais que surgiu nesse período de restrição de informação, o que ainda existe, mas era mais grave. Para mim, o CooJornal está entre os cinco ou seis mais importantes, ao lado do O Pasquim, Movimento, Ex, Versus e Opinião, com a diferença fundamental de que era fora do eixo Rio-São Paulo. Feito fora do eixo, porque ele também circulava lá. E era bem lido, especialmente no Rio de Janeiro. Além disso, durou oito anos. Até onde sei, depois de O Pasquim foi o que durou mais. Do ponto de vista editorial, tinha a presença da reportagem, que é o filé mignon do jornalismo. E que é rara, porque é cara de fazer. O Pasquim, que sem dúvida é o maior de todos, se caracterizava mais pela presença de entrevistas e pelo humor, não tanto pela reportagem.
Panorama - Do ponto de vista editorial, o CooJornal valorizava a cobertura histórica. No documentário, fica clara a visão de que jornalismo para a Cooperativa não era apenas o dia-a-dia.
Centeno - Justamente. O CooJornal tratava da história não apenas do Rio Grande do Sul e do Brasil, mas também da América do Sul. Foram capas sobre a Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia. Além do interesse histórico, reviver fatos e mostrar situações em outros países era uma maneira de apontar os nossos problemas sem falar diretamente no assunto. Era feito um deslocamento no tempo ou no espaço para tratar daqueles dias. Mostrando que havia ditadura na Argentina, por exemplo, abordava-se indiretamente a situação brasileira. Falar de uma greve feita no Brasil em 1917 remetia à proibição de manifestações por aqui.
Panorama - O jornal fazia uso de trabalho de colaboradores espalhados pelo Brasil que não conseguiam divulgar suas matérias na grande imprensa. Como era essa relação?
Centeno - Aproveitávamos o espaço para colocar nosso trabalho. Uma vez estive na Argentina pela Manchete para fazer uma matéria sobre a umbanda no país. Era exótico, um país de brancos, de colonização européia. Aproveitei que estava lá para fazer cinco matérias para o Coojornal. A gente usava o tempo livre para escrever para o Coojornal. Olhávamos os jornais, víamos assuntos que pudessem render. Ou se pudéssemos entrevistar alguém que estivesse no local também valia. Tinha uma correspondente muito boa em Paris. Mas claro que as matérias saiam sem assinatura para evitar embaraços.
Panorama - Qual a opção para os jornalistas atualmente?
Centeno - O espaço que vejo é a internet, nos blogs e sites. Na internet não existe assunto vetado. O espaço que era da imprensa alternativa hoje está na internet.
Panorama - Mas não lhe parece que a internet é um local mais de opinião que de imprensa alternativa?
Centeno - Sim, certamente. Opiniões e versões. Não vejo nenhum sinal de que haverá reportagens, como havia no CooJornal. É uma pena. O falecimento da reportagem é um fato. Mas a revelação de documentos secretos, como o Wikileaks, é uma coisa que remete aos jornais alternativos. O CooJornal fazia muito isso; publicava documentos que dificilmente sairiam em outro local. A possibilidade de compartilhar informações era muito importante, elas acabavam circulando, se questionava o regime. Isso tudo ajudou na abertura política. Não gosto quando se passa a imagem que as Diretas Já surgiram pela insatisfação apenas dos partidos políticos. Houve uma fermentação na sociedade e a imprensa alternativa foi muito importante nesse processo.
Panorama - Então, se não houvesse a internet, a presença de jornais alternativos seria mais viável?
Centeno - Acredito que sim, porque as pessoas buscariam um espaço para falar das suas insatisfações. Mas a internet é uma coisa maravilhosa, é uma bênção. Porque é um meio bem mais barato e com alcance muito maior. E mesmo assim, ainda existem impressos que resistem, como a revista Caros Amigos, por exemplo.