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Publicada em 31 de Janeiro de 2025 às 20:20

Políticas duras com a América Latina podem ser tiro no pé para os Estados Unidos, avalia especialista

Protecionismo de Donald Trump pode abrir oportunidades para a China e BRICS

Protecionismo de Donald Trump pode abrir oportunidades para a China e BRICS

JIM WATSON/AFP/JC
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Nico Costamilan
Nico Costamilan Repórter
Com preferência às decisões unilaterais e pouco flexíveis, o primeiro mês da volta de Donald Trump ao poder é marcado por declarações intervencionistas, e medidas contundentes sobre sua promessa de campanha: deportações em massa.
Com preferência às decisões unilaterais e pouco flexíveis, o primeiro mês da volta de Donald Trump ao poder é marcado por declarações intervencionistas, e medidas contundentes sobre sua promessa de campanha: deportações em massa.
Desde a posse, o republicano anunciou uma série de ordens executivas com o objetivo de combater a imigração ilegal, incluindo o fim do acesso ao asilo, a suspensão do reassentamento de refugiados por quatro meses, o envio de tropas para a fronteira sul e o fim da cidadania por direito de nascimento.
Voo ocorrido na última sexta-feira (24) com imigrantes brasileiros deportados surtiu críticas por denúncias de condições degradantes. No Brasil, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, avaliou o tratamento como inadmissível.
Mesmo com resolução entre os países, a tensão é considerada a primeira crise diplomática do novo mandato de Donald Trump com a América Latina. O advogado e especialista em Direito Internacional e Relações Internacionais, Lier Pires Ferreira, analisa a política internacional de Trump e como os conflitos atuais dão espaço a parcerias externas.
Jornal do Comércio - O que significa a política de imigração para o novo governo dos Estados Unidos?

Lier Pires Ferreira - Ela é uma política central para o novo governo, porque a questão migratória vem repercutindo muito duramente nos Estados Unidos já há bastante tempo. No primeiro mandato do Trump, que vai de 2017 a 2021, uma das questões centrais que ele já enunciava desde a campanha era exatamente a questão migratória. Ela levou, inclusive, àquela famigerada construção de uma certa flacidez no combate a essa migração ilegal. E a crise migratória acabou virando um pouco de uma arma política, onde os republicanos começaram a utilizar uma série de expedientes estratégicos, tanto do ponto de vista da fronteira quanto do ponto de vista interno ao país.

JC - Quais os principais impactos sentidos pelos imigrantes, com e sem documentos, nos Estados Unidos?

Ferreira - Esses imigrantes acabaram virando aquilo que o Carl Schmitt chamava na Teoria do Partisan de inimigo interno, inimigo íntimo. Algo está acontecendo nos Estados Unidos relativamente próximo da estrutura do que aconteceu com os judeus na Alemanha nazista entre os anos 20 e 30. Por quê? Porque eles foram eleitos como inimigos internos. E o inimigo interno é aquele que é mais fácil de atingir e, evidentemente, mais fácil de controlar também. O que vai acontecer com esses imigrantes? O que já está acontecendo. Primeiro, estão acuados, estão com medo. Estão, de alguma forma, absolutamente vulnerabilizados em função desse conjunto de elementos. Por outro lado, já estão sendo capturados e deportados.
"Nós veremos ainda muitas tensões e conflitos entre Estados Unidos e América Latina dentro do governo Trump", indica professor | ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
"Nós veremos ainda muitas tensões e conflitos entre Estados Unidos e América Latina dentro do governo Trump", indica professor ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
JC - A última chegada de voos com deportados ao Brasil causou uma série de denúncias ao tratamento dos imigrantes, qual a impressão que isso causa sobre a posição de Trump no assunto?

Ferreira - Nós vimos como nossos compatriotas chegaram algemados nas mãos, nos pés e nas cinturas, acorrentados, efetivamente como se fossem criminosos de altíssima periculosidade, rompendo inclusive com tratados entre Brasil e Estados Unidos de que as deportações devem pautar-se pelo princípio da dignidade. Mas Donald Trump parece que se coloca acima de qualquer direito e acima de qualquer acordo feito com, entre aspas, pares. Digo entre aspas porque evidentemente os Estados Unidos não consideram os países latino-americanos como seus pares.

JC - Qual o recado de Donald Trump, em sua resposta às críticas de líderes da América Latina, como a taxação imposta à Colômbia?

Ferreira - Trump conseguiu constranger o Gustavo Petro [presidente da Colômbia], e fez de alguma forma o mesmo com o Brasil, porque ele já disse que o Brasil é um país que impõe muitas taxas aos Estados Unidos, e ele vai também impor taxas ao Brasil. Ele está utilizando a força, a musculatura econômica dos Estados Unidos para pressionar atores em todo o mundo para aceitar, acatar as decisões que ele está tomando. É uma atitude de confronto com a ordem mundial, tal como ela foi construída a partir do segundo pós-guerra. Agora ele tem uma arma objetiva, eficaz, que confronta os países e, de alguma forma, faz com que os países aceitem as decisões americanas. O recado é que eles agora vão exercer poder.
JC - As medidas mais duras de Trump podem crescer um ressentimento na região que resulte em um afastamento com os Estados Unidos, e a procura com outras parcerias, como a China?

Ferreira - Sim, a China está ganhando e pode ganhar cada vez mais força diante das tensões entre os Estados Unidos e a América Latina. Existe uma disputa hegemônica entre China e Estados Unidos. Os Estados Unidos são a potência estabelecida, a China é a potência desafiadora e essas tensões diplomáticas tendem a fortalecer, não apenas a China, mas também os Brics. Então, sim, essas tensões podem beneficiar o BRICS e podem beneficiar principalmente a China, potência responsável, capaz de alguma forma de suprir as lacunas deixadas pelos Estados Unidos.

JC - Quais são essas oportunidades para a China e para os Brics?

Ferreira - As oportunidades são bastante grandes. A partir do momento em que os Estados Unidos começam a voltar-se para dentro de si mesmos e diminuir o investimento externo do país em outros países, vamos tendo, por exemplo, a oportunidade de que capitais chinesas ingressem nesses respectivos países. Já se vê, por exemplo, nos leilões de petróleo feitos pela Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustível (ANP) uma presença cada vez maior de empresas chinesas. Além disso, conseguimos perceber claramente algumas oportunidades estratégicas, particularmente para a China, como a possibilidade dentro dos BRICS de criar moedas internas – ainda que de caráter digital.

JC - O que podemos esperar como consequências das políticas de imigração nos próximos meses, em relação à América Latina?
Ferreira - Acredito que no médio prazo, é uma política de confronto, que num primeiro momento poderá gerar resultados benéficos aos Estados Unidos, é um tiro no pé que certamente vai acelerar o declínio norte-americano enquanto potência líder do mundo contemporâneo.

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