Nesse mesmo dia 9 de novembro, há 35 anos, ocorria a histórica abertura do Muro de Berlim, um prenúncio da unificação da Alemanha que viria na sequência. O evento inclui múltiplas facetas e interpretações, mas ainda sim representa um marco na história da geopolítica mundial.
No plano global, o declínio do sistema soviético e a ascensão do neoliberalismo moldaram o mundo que conhecemos hoje. O pós-doutor em Relações Internacionais, Paulo Fagundes Visentini, descreve em seu livro Por que o socialismo ruiu? De Berlim a Moscou 1989 - 1991, que, juntamente à crise e custos da integração europeia, o colapso do socialismo clássico e o que é compreendido como como sociedade de consumo deixaram um sentimento popular profundo de dupla frustração pairando no ar, que busca culpados.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, o pesquisador analisa como esse acontecimento ainda impacta os dias de hoje, com relações com o crescimento da importância econômica da Alemanha unificada, ascensão de movimentos conservadores e de extrema-direita no território e no Leste Europeu, e também o recrudescimento de discursos radicais e anti-imigração no globo.
Jornal do Comércio - O historiador Eric Hobsbawm aponta que a queda do Muro de Berlim desestabilizou a ordem mundial e criou um estado generalizado de insegurança, com a cristalização em uma única superpotência. Como que o senhor vê o impacto do acontecimento da queda do Muro de Berlim no cenário geopolítico global naquele tempo? E como vê atualmente?
Paulo Fagundes Visentini - A gente tem que lembrar que existiam, até aquele momento, duas Europas. A Europa do Leste e a Europa do Oeste. A Europa Ocidental era mais ou menos integrada ao que hoje é a União Europeia. Entre os países mais importantes, estavam a Inglaterra, França, Itália e Alemanha Ocidental. Então, esses países tinham em média 60 milhões de habitantes, a Alemanha Ocidental tinha um pouquinho mais, 63. Quando acontece a queda do muro, se torna inviável a existência da Alemanha Oriental, por conta do fato que as referências socialistas estavam desaparecendo. Naquele ano de 1989, a Polônia e a Hungria deixaram de ser socialistas, e quase junto com a queda do muro, a Tchecoslováquia deixa de ser também. Aqueles países desaparecem, e a Europa Oriental desaparece. Se coloca, então, uma questão que os próprios líderes da Alemanha Oriental diziam: sem socialismo, não tem porque existir duas Alemanhas que seriam o mesmo sistema social. Porém, o problema é que a queda do muro não era esperada. Fica então dessa forma: o país está bem no centro da Europa, em uma posição vantajosa. Quando se unifica, passa para 80 milhões de habitantes. E isso dá um poder maior para ela dentro da União Europeia. A França e a Inglaterra ficaram, e não tinha mais como evitar, muito preocupadas com o desequilíbrio, porque a Alemanha ganharia um peso muito maior. E mais, graças à Ostpolitik de Willy Brandt (Política para o Leste, compreendendo a defesa da cooperação econômica com o Leste), em 1969, a Alemanha Federal tinha penetrado muito no Leste europeu. Eles sabiam exatamente quais as fábricas que eram boas para ser compradas e como se integraria não só a Alemanha Oriental na Ocidental, mas inclusive compreendendo também uma projeção para dentro de todo o Leste Europeu. A Alemanha ganhou um peso grande, mas a curto prazo teve que pagar por essa unificação. O marco oriental estava muito desvalorizado e para que as pessoas votassem a favor da unificação, o chanceler Helmut Kohl criou uma paridade. Então, as pessoas que tinham o marco oriental, podiam trocar no banco pelo marco ocidental até um determinado prazo. O jeito de salvar as poupanças era exatamente votando pela unificação. Então a Alemanha, no primeiro momento, vai ter uma despesa, porque ela vai querer fazer a reconversão da economia oriental, e vai ser complicado. As pessoas que tinham mais possibilidades migraram para o lado ocidental, porque a Alemanha tinha carência de mão de obra, e todos eram alemães e falavam o idioma. O pessoal do Leste também era muito disciplinado para trabalhar. A Alemanha ganhou a médio e longo prazo, mas a curto prazo ela tem que bancar essa unificação com dinheiro, injetando muito dinheiro no lado oriental. E aí não temos mais uma fronteira definida da Europa. Todos aqueles países vão acabar entrando na União Europeia, e a Alemanha, em vez de estar no limite, está no centro. O que o que a Alemanha não conseguiu com a Segunda Guerra Mundial vai conseguir economicamente, depois da unificação.
JC - Quando diz que o que a Alemanha não conseguiu, ela vai conseguir economicamente depois, está se referindo a quê, exatamente?
Visentini - A ser uma grande indústria da União Europeia. A Inglaterra, que no fim de contas vai acabar saindo da União Europeia, a França, a Itália, eram equivalentes à Alemanha Federal pré-Ocidental. E depois ela se unifica e fica muito superior aos outros. Inclusive, quando vai adotar a moeda única, o euro, é muito ancorada no marco alemão. E todos os outros países vão ajustar. Não é coincidência que o Banco Central Europeu esteja em Frankfurt. Então, a Alemanha conseguiu com isso ser um centro da economia europeia.
JC - No seu livro (Por que o socialismo ruiu? De Berlim a Moscou 1989 - 1991) o senhor fala a respeito da mudança de postura de esquerdas no Leste europeu e no globo, frente ao aparecimento de diversos movimentos econômicos, políticos e sociais, inclusive o emprego de tecnologia, mão de obra estrangeira e temporária e estratégia de flexibilização do trabalho. O senhor também levanta que a esquerda perdeu o foco e a identidade e que as bases sociais dela desapareceram. Como foi esse processo?
Visentini - Essa passagem do livro eu me refiro em geral, mas no Leste da Europa também acontece, porque a vida lá era extremamente regrada, no lado oriental. Veja bem, quem é a favor da imigração na Alemanha e na Europa em geral? É muito curioso, mas é uma esquerda, vamos dizer, o Partido Social Democrático, que é uma centro-esquerda, e eles são a favor dessa imigração por razões éticas. Mas isso também é muito importante para os empresários, porque os empresários, por exemplo, vão contratar mão de obra temporária. E esses imigrantes, em geral, não têm os mesmos direitos sociais que os demais. Então, é curioso, mas uma direita, centro-direita, ligada a um empresariado, quer essa imigração, porque ela é útil economicamente para a Alemanha Federal. Por outro lado, a esquerda diz que essas pessoas são vítimas. Então, apareceu uma outra força que é antissistema. Então, esse outro partido (Alternativa para a Alemanha, ou AfD), eu diria que ele é um partido antissistema, mais do que um partido. Boa parte desse eleitorado deles não é neonazista. E eles votam por quê? Porque é um partido que contesta o conjunto do sistema econômico, social e político ali na Alemanha. É um pouco confuso, mas é mais ou menos como aconteceu agora na eleição americana. Isso vai explicar por que, inclusive, latinos e afrodescendentes votaram Trump, coisa que eles não esperavam que fosse acontecer: porque ele está se referindo a problemas cotidianos, de inflação ou dificuldade de residência.
JC - Há uma questão que o senhor levanta, que é um movimento de dupla frustração a respeito da estabilidade social de um sistema e o consumismo liberal de outro. Que o avanço do conservadorismo no Leste europeu e na ex-URSS é sintoma de um mal-estar social que precisa ser compreendido e remediado. Fazem três anos da publicação dessa obra. Isso já é melhor compreendido e já há opções para se remediar isso?
Visentini - Eu diria que as coisas só aumentaram de lá para cá. Quando o socialismo estava bem, principalmente na Alemanha Oriental, eles tiveram uma melhoria nas condições de vida muito grande. E aí o socialismo começou a entrar num processo de desgaste depois das crises financeiras e aumento do preço do petróleo nos anos 1970 e 1980. Pesou muito na economia deles. A União Soviética já não podia mais também ficar ajudando, vendendo petróleo barato, etc. Então, quando vem a queda, essas pessoas ouvem que aquele modelo que estava ali está fracassado e que tudo vai ser bom com a economia de mercado. Só que eles não estão preparados para a economia de mercado, ou seja, as pessoas não tinham a concepção que existe. Mesmo os mais jovens que foram sendo educados nesse princípio, eles vão procurar emprego onde tem, eles não ficam mais ali naquela região, onde nasceram e migram para outros lugares. Então, a população começa a ter uma segunda frustração, de dizer, 'puxa, o socialismo não funcionava, mas o capitalismo está se mostrando um pouco amargo'. Poucos se dão bem, muitos se dão mal. É isso que está levando a procurar um outro discurso político e aí é que entram esses partidos novos. Esses partidos ganham uma coisa, porque eles recolhem exatamente a frustração dupla dessas pessoas. Ou seja, fomos enganados duas vezes. De certo, depois que abrisse o muro, o dinheiro ia entrar e todo mundo ia ficar melhor do que estava antes. E não foi isso que aconteceu.
JC - O senhor também fala no livro que o questionamento da globalização neoliberal passa a ser criticado também por forças conservadoras. Então, é meio que uma inversão de polos. Como que ocorre esse processo?
Visentini - A globalização é um movimento histórico real, mas ela atinge as regiões e as categorias sociais de forma diferenciada. Ela sempre produz ganhadores e produz também perdedores. O que nos surpreendeu com o surgimento do Trump: os Estados Unidos inventaram essa coisa da globalização, eles são o centro da economia mundial, a base, mas os EUA também é um país com fronteiras, com orçamento, com leis. A terceirização de produção, levando para a China, para produzir lá mais barato e vender dentro do mercado interno americano produziu uma desindustrialização nos Estados Unidos. Então, é curioso, mas a pauta do Trump é uma pauta que critica esse excesso de abertura internacional, por isso ele quer uma taxação, novamente. Esse anticapitalismo da esquerda, acho absolutamente inócuo, porque está dizendo que não gosta do capitalismo, mas não está propondo um modelo de sociedade diferente. Ele está hoje em si em uma agenda cultural, ou algo do tipo, e não tem uma ideia de como organizar a sociedade como um todo. A esquerda muito se perdeu nesse processo. E quem está trazendo forças contra uma globalização desenfreada, precisamente, são forças mais conservadoras, que têm que assegurar os potenciais do seu país. Então ele quer reverter. Eu não sei se isso é possível. Acho difícil, e que pode ocasionar um desequilíbrio internacional, que vai levar a uma outra renegociação, talvez sem a China ter como explorar todas essas vantagens econômicas que ela tem. E a própria China está mudando, porque a China tinha até pouco tempo o benefício demográfico, ou seja, ela tinha muitos jovens e tinha poucos velhos. Então, tinha muita gente trabalhando e praticamente não tinha muito problema com essa questão de aposentadorias. A população lá está começando a viver mais e se tornou mais próspera. Então, temos um encarecimento da mão de obra na China. Mas por um lado, esse liberalismo econômico chinês está sob controle, porque aquilo que a China não quer, ela não abre. É uma globalização que entra limitadamente.
JC - A queda do Muro de Berlím foi entendida pelo cenário global como um triunfo das democracias liberais. E já fazem 35 anos. A gente tem um mundo que caminha em uma direção oposta. os Estados Unidos, temos a ascensão do Trump, com o Make America Great Again e as políticas anti-imigração. Na Europa tem o Brexit, e a União Europeia vendo que aquelas bases sólidas que ela achava que tinha não são tão sólidas assim. E temos também a extrema-direita ganhando força na Itália, na França, na Alemanha, com a Rússia desafiando a OTAN. Para onde que está indo esse quadro? O que nos espera daqui para frente?
Visentini - Primeiro, temos que ver algumas mudanças de mais longo prazo. A humanidade, e eu acho que a globalização ajudou, criou bases produtivas muito grandes, ou seja, tecnicamente, temos hoje capacidades que a humanidade nunca teve. Mas o modelo social está esbarrando em alguns problemas, que é, por um lado, envelhecimento da população dos países que já eram desenvolvidos anteriormente, e, por outro lado, uma explosão demográfica. A África, no final do século, ela vai ser tão populosa quanto a Ásia. Se você já tem essa migração, com o tempo vai crescer mais. Então, como que os benefícios da globalização podem ser universalizados? Há uma disputa por algum tipo de modelo social, de como que a sociedade vai se organizar agora, inclusive no mundo que vai ser um mundo de pessoas mais idosas. Durante um tempo não se nota muito, porque alguns estão envelhecendo, mas esse envelhecimento traz despesas.