Era por volta das 23h do dia 9 de novembro de 1989. Munidos de marretas, picaretas, martelos e todos os demais tipos de ferramentas destrutivas, cidadãos comuns, homens e mulheres, jovens e mais velhos, escalavam, eufóricos as paredes ásperas do muro que por 28 anos, 2 meses 26 dias dividiu a capital da Alemanha, Berlim, em duas. Começava ali a ruir o maior símbolo do bipolarismo que colocou de lados opostos o comunismo e o capitalismo e que, por muito pouco, não levou o planeta a uma guerra nuclear catastrófica. Passados 35 anos, o mundo não é o mesmo, comunistas e capitalistas já não monopolizam as atenções, novos muros foram erguidos e incertezas permeiam o jogo de xadrez que é a geopolítica internacional, deixando muito difícil prever qual será o próximo movimento das peças no tabuleiro.
Para entender o significado da demolição do muro, é preciso voltar no tempo, mais precisamente para o início da década de 1960. A escalada nuclear parecia incontrolável, as tensões da Guerra Fria se intensificavam e as constantes faíscas que surgiam do embate entre as duas superpotências mundiais – Estados Unidos e União Soviética – prenunciavam um conflito que, se viesse a ocorrer, poderia representar, literalmente, o fim da civilização humana.
A tensão nuclear se intensificou a partir de janeiro de 1961, com a posse de Jonh Kennedy na presidência norte-americana. Com um discurso que permeou toda a sua campanha, Kennedy argumentava que os EUA estavam defasados militarmente em relação à URSS, principalmente no que diz respeito à quantidade e tecnologia de mísseis.
Logo em abril de 1961, o novo mandatário da Casa Branca sofre um baque com a desastrosa tentativa de derrubada de Fidel Castro em Cuba eu ficou conhecida como a Invasão da Baía dos Porcos. Poucos dias antes do fiasco norte-americano em Cuba, os soviéticos deram uma mostra de avanço tecnológico ao enviar Yuri Gagarin ao espaço, o primeiro homem a sair da órbita da Terra. O temor pelo uso mísseis de longo alcance municiados com ogivas nucleares aumentava, afinal, se a URSS conseguira construir um foguete para levar o homem para fora do planeta, seria capaz, também, de elaborar mísseis capazes de chegar aos Estados Unidos. Ao menos, era assim que pensava a Casa Branca.
Essa escalada foi o pano de fundo para a construção do muro, que iniciou na madrugada do dia 13 de agosto de 1961, mas não o motivo principal. Uma economia em ruínas foi o que levou ao muro separando Berlim Oriental, que fazia parte da República Democrática da Alemanha (RDA), alinhada à União Soviética, de Berlim Ocidental, que, apesar de não fazer parte da República Federal da Alemanha (RFA), era alinhada aos conceitos políticos e econômicos do Ocidente, ou seja, capitalista.
A Alemanha Oriental vinha sofrendo uma forte recessão, com falta de matérias-primas e alimentos. A produtividade industrial caía e o padrão de vida da população – principalmente se comparada com a dos compatriotas da RFA - despencava. Com a crescente dívida externa, a economia afundava. Com isso, era inevitável que os alemães orientais buscassem uma vida melhor no lado Ocidental. “O êxodo do Leste para a Alemanha Ocidental prosseguia. Mantinha-se num patamar de aproximadamente um quarto de milhão (250 mil) de pessoas por ano desde 1955, caiu em 1959 para 143 mil e voltou a subir, em 1960, para pouco mais de 199 mil”, aponta o historiador britânico Frederick Taylor no livro Muro de Berlim: um mundo dividido 1961-1989 (Editora Record, 2009).
A maior parte daqueles que migravam eram profissionais especializados, operários qualificados, médicos, enfermeiras, professores e engenheiros, que viam no lado Ocidental melhores oportunidades.
O erguimento do muro se deu após um processo gradual de fechamento de postos de cruzamento da fronteira, que começaram a se tornar cada vez mais frequentes, dificultando, inclusive, a circulação de diplomatas que nunca haviam sido importunados em suas entradas e saídas da RDA.
Nos gabinetes políticos, crescia o receio de que o derretimento do lado Oriental resultasse em uma unificação, o que não era do interesse soviético, que via na RDA um fundamental enclave no centro da Europa.
No final de julho, um mapa já desenhava o traçado do muro. Em 1º de agosto, o material para a primeira fase da empreitada começou a ser reunido. Os rumores sobre um fechamento das fronteiras aumentavam, fazendo com que aumentasse também o número de pessoas que escapavam do lado Oriental. As tratativas oficiais foram aceleradas e à 1h da manhã do dia 13 de agosto, a fronteira começou a ser fechada. A Guerra Fria chegava ao seu ápice.
A queda do muro e o colapso da URSS
Trechos do muro foram preservados e se tornaram pontos turísticos na capital alemã
JOHN MACDOUGALL/AFP/JCA queda do Muro de Berlim foi o ato final de um processo que havia iniciado antes, com o enfraquecimento do bloco soviético a partir dos primeiros anos da década de 1980. O início disso tudo, entretanto, remonta à aos primeiros anos da década de 1970.
Foi neste período que a superestrutura da União Soviética começou a colapsar. O aumento do preço do petróleo permitiu que a URSS acumulasse capital. Com o dinheiro obtido, patentes tecnológicas foram compradas. A tecnologia importada, no entanto, traz consigo um problema: exige constante atualização. Quando os soviéticos adotaram essa política, o preço do petróleo estava em alta. O bloco não se deu conta, porém, de que ficou dependente do mercado internacional. Nos anos 1980, o preço do petróleo caiu, e ocorreu um estrangulamento econômico.
Paralelamente, os EUA de Ronald Reagan desencadearam uma corrida armamentista que a URSS não tinha recursos para competir. Assim, a sociedade começou a se desencantar. Quando Mikhail Gorbachev assumiu o governo, em 1985, havia esperança de uma renovação. O que ocorreu, no entanto, foi uma desagregação com a consequente cisão no Partido Comunista: de um lado, Gorbachev, o líder da URSS, e, de outro, Boris Yeltsin, o presidente da Rússia.
Enquanto o primeiro queria realizar algumas reformas, o segundo desejava acabar com o que estava estabelecido. "A URSS se dissolve não porque as repúblicas saíram do bloco, mas porque a Rússia saiu", diz o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Paulo Visentini. Assim, a força para mudança existia dentro da Rússia, mas não da União Soviética. A maioria das repúblicas ficou independente contra a vontade.
Em 1991, por fim, Yeltsin decide que toda a arrecadação das empresas em território russo pertenceria ao governo da Rússia. Sem contar com uma fonte de financiamento, o bloco não se sustentou.
No mundo muntipolar, a economia ganha espaço frente às armas
Conforme relatório do banco Goldman Sachs, economia chinesa deve ultrapassar a norte-americana em 2033
CHINA OUT/AFP/JCO reconhecido historiador britânico Eric Hobsbawn apontava que a queda do Muro de Berlim desestabilizou a ordem mundial, criando um estado generalizado de insegurança, com a cristalização de uma única superpotência, os Estados Unidos.
O desequilíbrio da balança pôde ser visto logo após o fim da URSS. Já na década de 1990, com o desmantelamento do bloco do Leste, estouraram os conflitos na região dos Bálcãs, com as Guerras da Bósnia (1992-1995) e do Kosovo (1998-1999).
Além disso, sendo a única potência militar do planeta, os Estados Unidos assumiram uma postura intervencionista mais forte, agindo como uma espécie de "xerife do mundo", envolvendo-se - seja com tropas, seja com auxílio militar - em conflitos no Oriente Médio (Guerra do Golfo e Guerra do Iraque), na Ásia (ocupação do Afeganistão) e, atualmente, na Ucrânia.
Para o professor Paulo Visentini, a multipolaridade está posta, mas ainda não se estabeleceu de modo sólido. "Acho que a multipolaridade já entrou, só que ela é instável. Os Estados Unidos não têm mais a força econômica que tinham, mas ainda têm a força militar. E a maneira dos Estados Unidos lidar com isso aí está sendo muito, vamos dizer assim, improvisada. Cada governo norte-americano tem uma resposta um diferente para como lidar com isso. O Trump agora com certeza vai dar muito menos atenção para esse problema da Rússia e vai se focar muito mais contra a China, porque a agenda dele é muito mais econômica", aponta.
Neste cenário, a China surge como uma espécie de antagonista norte-americana, mas com um foco diferente dos soviéticos. Enquanto a URSS rivalizava com os EUA no campo militar, os chineses apostam suas fichas na pujança econômica. De acordo com umrelatório do banco Goldman Sachs divulgado no ano passado, a economia chinesa deve ultrapassar a norte-americana em 2033.
O bipolarismo, portanto, toma uma outra cara, longe das armas, mas perto do dinheiro.