Há um ano, entre o final de abril e o início de maio de 2024, o Rio Grande do Sul enfrentou a maior tragédia ambiental de sua história. Um mês de chuvas sucessivas e concentradas, principalmente, sobre a bacia hidrográfica do Guaíba levou o sistema de drenagem urbana e de contenção a um colapso. Parte de Porto Alegre e de cerca de 96% dos municípios do Estado foram engolidas pelas águas — não por uma fatalidade isolada, mas como prenúncio de um novo padrão climático que já estava previsto por modelos científicos há décadas.
"Não dá para dizer que foi um evento extremo isolado. Ele é reflexo de um novo padrão climático. Os modelos já previam, desde o começo do século, que o Sul do Brasil enfrentaria eventos intensos de cheia e estiagem", explica o professor Fernando Meirelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Segundo ele, o que causou a tragédia foi uma conjunção de fatores meteorológicos e estruturais. A sequência de quatro enchentes entre 2023 e 2024 — junho, setembro, novembro e, por fim, abril e maio — culminou em uma sobrecarga do sistema hídrico. Depois, um bloqueio atmosférico sobre o Sudeste concentrou toda a umidade amazônica no Sul, gerando volumes excepcionais de chuva. Isso gerou uma cadeia de cheias nos rios gaúchos.
Os primeiros municípios atingidos foram no Vale do Rio Pardo (Santa Cruz e Candelária), dia 27 de abril. Na sequência, as tempestades se espalharam pelo Vale do Taquari (Lajeado, Estrela, Muçum e Roca Sales), Campos de Cima da Serra e Serra (Gramado, Canela, Caxias do Sul, entre outras). Na Capital, as águas chegaram com força a partir do dia 3 de maio.
Mas, como Meirelles destaca, chuva e vazão são apenas ameaças naturais. O desastre ocorre quando esses elementos encontram populações vulneráveis e estruturas frágeis. "O risco do desastre está na vulnerabilidade. As cidades não estavam preparadas para suportar uma vazão tão alta. E o sistema de proteção de Porto Alegre, embora concebido para resistir, não estava funcionando como deveria", afirma.
Projetado nos anos 1960, o sistema de diques, casas de bombas e comportas da Capital previa uma cota de proteção de até seis metros do nível do Guaíba. Essa cota não foi ultrapassada durante o evento. No entanto, falhas graves na execução e manutenção fizeram com que a proteção, no papel, não funcionasse na prática.
Diques previstos para estar a sete metros foram encontrados a quatro. Portões foram implantados no lugar de comportas. Em diversos locais, casas de bombas não estavam operacionais e as válvulas de retenção, que impediriam a água do lago de voltar para o sistema, simplesmente não existiam ou estavam quebradas.
"Em muitos pontos, a gente não sabe como a estrutura foi implantada. Não temos documentação sobre como se deu a execução do projeto. Onde deveriam estar as bombas, há hoje residências. Algumas casas de bombas não correspondem mais ao projeto original", relata o professor. Em outras palavras: o sistema foi alterado, degradado ou abandonado ao longo do tempo — e o IPH não sabe exatamente quando nem por quem.
Além disso, pontos frágeis conhecidos da cidade, como a alça de acesso da BR-290 (Freeway), tornaram-se brechas para o avanço da água. Um bueiro ligado ao arroio Dilúvio, que deveria ser isolado em caso de cheia, permitiu que o Guaíba invadisse o bairro Menino Deus. O portão que cedeu na Avenida Castelo Branco e isolou a zona Norte da cidade não era uma comporta hidráulica — era apenas um portão comum.
Ainda assim, Meirelles defende que a base do projeto original é sólida e que, se estivesse operando como planejado, teria protegido ao menos Porto Alegre. Para o futuro, ele propõe reconstruir melhor: com atenção à topografia, ao levantamento batimétrico dos rios e à contratação de sistemas modernos de alerta por radar. Medidas que o Estado começou a implementar.
Mas o enfrentamento precisa ir além das cidades. A mudança climática é um processo global, lembra o especialista. "Mesmo que o governo estadual atue em medidas locais, como recuperação de solo e captação de carbono, isso é insuficiente. Precisamos que o Acordo de Paris (tratado internacional que visa limitar o aquecimento global) seja cumprido."
Entre as medidas locais citadas por Meirelles estão o pagamento por serviços ambientais a agricultores para preservação de áreas de infiltração, contenção da erosão e recuperação de matas ciliares. Esses esforços, ainda que não evitem eventos excepcionais, podem mitigar os impactos das cheias e também das estiagens, como a que já ameaça o Estado em 2025.
"Se tivéssemos mais capacidade de armazenar água no solo, enfrentaríamos melhor as secas. E nas cheias, haveria menos escoamento direto para os rios. É um sistema que precisa funcionar em equilíbrio."
A reconstrução já começou. Cidades como São Leopoldo estão elevando diques. Alvorada aposta em um sistema semelhante ao da capital, com casas de bombas e contenção. Mas Meirelles alerta que a proteção urbana não pode ser pensada isoladamente. "Não adianta resolver o problema de uma cidade e empurrar para a vizinha. A gestão precisa ser integrada, regional", conclui.