Na manhã em que desapareceu, Adriano Matos saiu de casa apenas com a identidade e dois maços de cigarro. Vestia a roupa do trabalho - vendia produtos coloniais nas ruas de São Leopoldo. Despediu-se da irmã, como fazia todos os dias, e nunca mais foi visto.
“Já vai fazer três meses. A gente ainda tem esperança, mas a dor é constante”, diz Cristiane Mattos, que mora em Nova Hartz e tem sido o ponto de apoio da família desde o sumiço do irmão. “Ele já tinha se afastado por causa de recaídas do vício em drogas, mas sempre dava algum sinal. Agora, ninguém sabe de nada”, completa.
O drama vivido pela família Mattos não é exceção. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, o Rio Grande do Sul registrou 7.424 desaparecimentos em 2023 - 68,2 a cada 100 mil habitantes. Foi o segundo estado com mais casos no País, atrás apenas de São Paulo. A média nacional assusta: 219 pessoas desaparecem por dia no Brasil.
Em contraste, o Estado também teve 7.236 pessoas localizadas no ano passado. Para o diretor do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Mario Souza, esse número revela a eficácia de uma política pública que incentiva o registro de ocorrências e integra diferentes instituições na busca ativa. “Aqui, orientamos as pessoas a procurarem ajuda. O número alto de registros não significa mais desaparecimentos, mas menos subnotificação. E o dado mais importante é que a maioria das pessoas desaparecidas é encontrada”, afirma.
Segundo Souza, a existência de uma delegacia especializada na Capital, o reforço em protocolos de investigação e o canal 0800-642-0121, exclusivo para informações e denúncias, demonstram o compromisso da segurança pública com o tema. Ele ressalta que desaparecimentos nem sempre estão ligados a crimes: “Temos casos de idosos desorientados, pessoas em sofrimento psíquico ou mesmo aquelas que escolhem se afastar da família”, diz.
Para o professor Rodrigo Azevedo, da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), o aumento nos registros pode indicar uma melhora nos sistemas de notificação, mas também reflete uma realidade dura: populações vulneráveis seguem desprotegidas. “Crianças negligenciadas, idosos com transtornos cognitivos, mulheres em situação de violência doméstica, pessoas em situação de rua e usuários problemáticos de drogas estão muito expostos ao risco de desaparecer”, aponta.
Ele defende a criação de uma Política Estadual de Pessoas Desaparecidas, com ações intersetoriais entre saúde, assistência social, educação e segurança. “É preciso investir em prevenção, tecnologias de reconhecimento facial, interoperabilidade entre bancos de dados e capacitação de agentes públicos. E garantir apoio jurídico e psicológico às famílias, que vivem uma angústia prolongada”, segue.
É o caso de Cristiane. Desde o desaparecimento de Adriano, a rotina da casa mudou. O cunhado, os filhos - um deles autista - e até os tios tentam lidar com o vazio. “Meu tio não dorme mais, fica procurando de um lado pro outro. A gente divulgou na TV, nas redes sociais, foi à polícia. Mas a incerteza consome”, relata.
Apesar dos esforços da família e do trabalho da Polícia Civil de São Leopoldo, o paradeiro de Adriano segue desconhecido. “Talvez ele esteja em Porto Alegre, em algum abrigo, CAPS, ou hospital. Mas não sabemos se a polícia procurou por esses lugares. Às vezes penso em ir pessoalmente, mesmo confiando no trabalho deles”, finaliza.
Outro desaparecimento recente que ainda angustia familiares é o de Romeu Müller, de 76 anos. “Já passaram-se mais de dois meses”, conta o filho, Marcos. “Foi no dia 13 de fevereiro. Ele saiu de casa no bairro Amaral Ribeiro, em Taquara, e foi até uma parada mais distante da residência. Pegou um ônibus para Canela por volta das 11h e depois outro para Rolante/Riozinho. A polícia conseguiu imagens dele em Canela, mas na rodoviária de Rolante ele não aparece. Pode ter descido antes ou depois daquele ponto.”
Desde então, a busca não parou. “Procuramos a polícia logo no primeiro momento. Hoje, mantemos contato com os delegados duas vezes por semana. Mas nós, junto com meus primos, amigos e familiares, seguimos em busca, perguntando por ele nas ruas de Rolante e Riozinho”, relata. O sentimento é de desamparo. “É angústia, apreensão. Já não sabemos mais o que fazer.”
O luto da dúvida
No papel, o desaparecimento de uma pessoa é um boletim de ocorrência. Na vida de quem fica, é um luto suspenso. A psicóloga Lisiana Saltiel, especializada em traumas e perdas, explica: “Chamamos de perda ambígua. Não há confirmação da morte, nem ritual de despedida. Isso impede o início do processo de elaboração do luto.”
A mente, então, oscila entre a esperança e o desespero. “A ausência de respostas gera culpa, raiva, melancolia. A família revira as possibilidades. Foi um crime? Um acidente? Um surto? E como não há resposta, o sofrimento se volta para dentro, gerando sintomas traumáticos profundos”, finaliza.