No aniversário de 253 anos de Porto Alegre, a relação dos moradores com a cidade ainda carrega as marcas da maior enchente de sua história, ocorrida há menos de um ano. O Guaíba, que normalmente embeleza a paisagem, transbordou, invadindo ruas, casas, comércios e paralisando serviços essenciais. Foram 41 dias com o Mercado Público fechado, bairros inteiros alagados e milhares de famílias desalojadas. Mas o impacto da água foi além da destruição material: mudou a forma como os porto-alegrenses enxergam e vivem a cidade.
Essa transformação ainda se reflete no cotidiano. No Centro Histórico, onde o trânsito intenso e o comércio popular retomaram o ritmo habitual, as cicatrizes da enchente permanecem visíveis em fachadas desgastadas e lojas que nunca voltarão a abrir.
"A cidade não é mais a mesma", afirma Camila Medeiros, 31 anos, balconista de uma loja na Rua dos Andradas. "A gente sempre soube que chovia muito aqui, mas ninguém imaginava que Porto Alegre poderia ficar debaixo d'água daquele jeito. Agora, cada temporal já gera preocupação. Minha vida ficou instável e incerta por bastante tempo e, claro, tenho medo que isso se repita."
O temor por novas cheias, aliás, é um sentimento compartilhado por muitos. Eduardo Nunes, taxista há 17 anos, diz que os passageiros passaram a falar sobre o clima com mais frequência. "Antigamente, entravam no carro e, independente do tempo, puxavam conversa sobre futebol, política. Hoje, qualquer dia meio nublado alguém já comenta sobre o céu, se vai chover, se a prefeitura fez alguma coisa para evitar outra enchente. Parece que a cidade ficou mais desconfiada", analisa.
Os reflexos também aparecem na forma como os moradores veem a infraestrutura urbana. Larissa Andrade, 24 anos, servidora pública, conta que passou a reparar em detalhes que antes não chamavam sua atenção. "Eu nunca tinha parado para pensar em drenagem, por exemplo. Agora, quando vejo um beiro entupido ou uma rua sempre cheia d'água depois da chuva, penso no que pode acontecer se tivermos outro evento extremo. É algo que ficou na nossa cabeça, querendo ou não", relata.
Além da sensação de insegurança, há também um sentimento de desigualdade. "O que mais me marcou foi ver como algumas regiões voltaram rápido ao normal, enquanto outras ficaram meses esperando ajuda", avaliou Francisco Silva, 68 anos, morador do bairro Sarandi. "Quem tinha dinheiro, conseguiu reformar logo, comprar móveis novos. Mas tem muita gente que perdeu tudo e não tem nem onde morar direito até hoje", completou.
No entanto, mesmo em meio às dificuldades, há quem veja a tragédia como um ponto de virada. "A enchente foi um choque, mas também um alerta", afirma Regina Costa, 45 anos, dentista. "As pessoas começaram a falar mais sobre planejamento urbano e mudanças climáticas. A cidade já passou por muita coisa e sempre dá um jeito de seguir em frente, mas espero que dessa vez não seja só sobrevivência, e sim aprendizado", conclui.