Oito meses após a maior tragédia ambiental da história do Rio Grande do Sul, os impactos psicológicos do evento ainda são evidentes. Uma pesquisa conduzida pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) revelou que 24% das pessoas afetadas pelas enchentes ainda apresentam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Iniciado no auge das chuvas, em maio de 2024, o estudo, que deve durar três anos, já avaliou mais de 5 mil pessoas e acompanha mudanças no estado emocional ao longo desse tempo.
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Os resultados preliminares também apontam que 40% dos participantes apresentaram sintomas de depressão durante as cheias. Esse índice subiu para 50% no mês seguinte, antes de recuar para 35% após seis meses. A ansiedade seguiu um padrão semelhante, enquanto os sintomas de TEPT permaneceram estáveis.
A coordenadora do estudo, Simone Hauck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), destaca que jovens, mulheres e pessoas de menor renda estão entre os mais vulneráveis, expondo desigualdades no acesso. "A recuperação é muito mais difícil para quem perdeu tudo e não tem suporte emocional ou financeiro para se reestruturar", afirma.
A pesquisa também chama atenção para os efeitos psicológicos nos voluntários que participaram dos resgates, muitos dos quais enfrentaram situações traumáticas, como encontrar corpos e lidar diretamente com o sofrimento das vítimas. Essas pessoas representam uma parcela significativa daqueles com sintomas psicológicos persistentes.
Apesar de profissionais da área serem unânimes quanto ao aumento na busca por apoio psicológico nos primeiros meses após o evento, o governo estadual não possui dados consolidados. Em nota, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou que reforçou o atendimento em 105 municípios, contratando 197 equipes multiprofissionais. No entanto, segundo o HCPA, 30% das pessoas que relataram necessidade de suporte não conseguiram acessá-lo.
Flávia Cardozo de Mattos, coordenadora da Área Técnica do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS), avalia que eventos como o do ano passado destacam a necessidade de fortalecer a formação dos profissionais da área. "Foi um estalo para a categoria. Muitos psicólogos naturalmente não estavam preparados para lidar com situações dessa magnitude, o que aumentou as solicitações de auxílio ao Conselho. Essa preparação precisa ser parte da formação básica agora no futuro", observa.
Flávia detalha que a atuação dos psicólogos é necessária em todas as fases de um desastre: resposta imediata, reconstrução e prevenção. Durante as enchentes, eles atuaram em abrigos, pontos de resgate e hospitais. Na reconstrução, o foco passou a ser integrar atendimentos individuais com iniciativas coletivas, como políticas públicas. "O ideal seria atuar também na prevenção, ajudando comunidades a se prepararem para desastres, mas essa ainda é uma grande lacuna no Brasil", analisa.
Ela explica que reações como insônia, ansiedade, tristeza e pensamentos desorganizados são comuns nos primeiros momentos após um desastre, mas a maioria das pessoas tende a se recuperar sem necessidade de intervenção. "Diversos estudos apontam que 75% das pessoas superam situações como essa sem agravos, devido a recursos internos e redes de apoio. Nos outros casos, muitas já tinham condições prévias, como saúde mental fragilizada ou suporte emocional insuficiente", diz.
Neste Janeiro Branco - campanha de conscientização sobre saúde mental - especialistas destacam a importância de fortalecer políticas públicas que promovam uma cultura de cuidado e prevenção. Flávia alerta, porém, para os riscos de discursos fatalistas, que podem minar a confiança da população. "A mensagem deve ser de que é possível se recuperar, mesmo diante de impactos significativos como os causados por tragédias", enfatiza, ressaltando a necessidade de políticas que integrem apoio psicológico contínuo e acessível, além de estratégias preventivas para futuras emergências.
* Esta matéria integra uma série especial sobre o Janeiro Branco. Na quarta-feira (29), será discutido o impacto das questões de saúde mental na terceira idade.