Os porto-alegrenses estão vendo a história acontecer diante dos seus olhos. No futuro, quando seus netos e bisnetos estudarem ou ouvirem falar sobre a histórica enchente do Guaíba de 2024, os que hoje vivem esses dias de maio na capital gaúcha poderão falar que vivenciaram cada minuto da angústia de ver as águas do lago tomarem conta da cidade.
Berço e coração econômico da cidade, o Centro Histórico da Capital ficou submerso. As lojas, bares e restaurantes tiveram de fechar as portas, tentar salvar o que fosse possível da mercadoria e torcer para as águas pararem de subir. Mas elas não paravam. Às 8h de sábado (4), o nível do Guaíba era de 5,02m. Duas horas depois, às 10h, marcava 5,04m. Às 11h, chegava a 5,08m. Passada mais uma hora, ao meio dia, o nível já era de 5,09m. No início da tarde, às 13h, a medição marcava 5,10m. Às 15h, o nível já estava em 5,16m. Passadas mais duas horas, às 17h, era de 5,19m - 43cm acima do recorde anterior, registrado naquela que, até então, estava na memória da cidade como a maior cheia do Guaíba: a Enchente de 1941.
O Mercado Público foi esvaziado e fechado. No lado de fora, quem observava de longe ou chegava perto por meio de algum barco ou bote via as águas batendo quase na metade da altura das portas.
A reação das pessoas era um sinal de que o que estava acontecendo era absolutamente inédito e até inacreditável. Olhares atônitos, pessoas em silêncio apenas observando ou fazendo registros fotográficos e em vídeo. Entre as que conversavam, as expressões e frases de espanto se repetiam.
A reação das pessoas era um sinal de que o que estava acontecendo era absolutamente inédito e até inacreditável. Olhares atônitos, pessoas em silêncio apenas observando ou fazendo registros fotográficos e em vídeo. Entre as que conversavam, as expressões e frases de espanto se repetiam.
Fechado, Mercado Público tinha água batendo na metade das portas (Nathan Lemos/JC)
Pelas redes sociais e aplicativos de mensagens, os alertas das autoridades da prefeitura e do governo do Estado não paravam um minuto sequer. No fim da manhã, o pedido era para que a população racionasse água, visto que estações de bombeamento estavam embaixo d’água e foram desligadas por questões de segurança.
O histórico Edifício Ely, ao lado da Rodoviária, foi erguido entre os anos de 1922 e 1923, sendo, então, testemunha das duas maiores enchentes que assolaram a cidade. Ao lado dele, se esgueirando, um idoso caminhava com água acima da cintura. Buscando evitar uma queda ao pisar em um buraco submerso, usava uma bengala para manter o equilíbrio e tatear o chão que estava invisível aos olhos.
Na Praça Padre Tomé, águas avançavam em direção à Igreja das Dores (Nathan Lemos/JC)
Com todas as operações suspensas, a Estação Rodoviária se tornou uma verdadeira bacia, com as águas de cor marrom ocupando cada espaço. Com a elevação do nível do lago, a cada minuto mais um pedaço de asfalto ou de pedra ia sumindo, como na Praça Padre Tomé, em frente à Igreja das Dores, onde a água se aproximava das escadarias centenárias do templo religioso.
Também fora de serviço, o Trensurb teve suas estações no subsolo, como a Estação Rodoviária, totalmente tomadas pela água.
Na Praça da Alfândega, ponto que reúne diversos prédios de uso cultural, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Farol Santander e o Memorial do Rio Grande do Sul, os acervos tiveram de ser movidos para não serem danificados.
No final da rua Riachuelo, próximo à Usina do Gasômetro, a água no início da tarde de sábado batia no joelho das pessoas que subiam a barra das calças e tentavam seguir caminho.
Na Usina, o maior movimento era das dezenas de barcos, jet-skis e botes de resgate que faziam o translado de moradores das ilhas que ainda seguiam em suas residências completamente tomadas pela inundação. O local se tornou um QG para os trabalhos de resgate das famílias atingidas pela alta do lago.
Hospital Mãe de Deus teve de evacuar áreas em razão do avanço das águas (Tânia Meinerz/JC)
O Guaíba não invadiu apenas o Centro da cidade. Praticamente todas as áreas mais próximas às zonas de orla ficaram alagadas. No bairro Menino Deus, por exemplo, em algumas ruas ficou impossível transitar. O Hospital Mãe de Deus, na rua José de Alencar, teve de ser evacuado com a ajuda de Militares do Exército. O Shopping Praia de Belas sequer abriu as portas.
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Na região do Sarandi e 4º Distrito, o quadro era o mesmo: ruas intransitáveis para pedestres, comércio fechado e apenas veículos mais altos conseguindo trafegar. As comunidades no entorno da Arena do Grêmio eram das mais afetadas na cidade.
Ao todo, 2,6 mil pessoas tiveram de ser acolhidas em abrigos disponibilizados pela prefeitura. Além disso, 136 pets - cachorros e gatos, principamente - também foram levados a abrigos.
Na avenida Castelo Branco, o asfalto cedeu, abrindo uma cratera no trecho que fica acima da comporta 14, que rompeu na sexta-feira (3), dando vazão livre para as águas invadirem o bairro. Ninguém ficou ferido, pois a via já estava bloqueada.
Seguindo em direção à zona Sul, na nova orla, os espaços de lazer ficaram submersos e, no Extremo Sul, o nível das águas se somou às dificuldades de estrutura urbana já existentes na região, como vias de chão batido que ficaram intransitáveis, ilhando os moradores de bairros como o Ponta Grossa. No bairro Ipanema, avenida Guaíba, praticamente deixou de existir e se tornou parte do lago que lhe deu o nome.
Os prejuízos econômicos ainda não foram calculados e essa sequer era a preocupação dos órgãos públicos. Com a tragédia instalada, o foco estava na preservação da vida de quem corria risco. As previsões indicam que as águas devem começar a baixar a partir de domingo (5). As ruas e avenidas irão secar, as lojas reabrirão, as aulas serão retomadas, as pessoas voltarão em segurança para suas casas, a reconstrução das estruturas danificadas terá início. A tragédia climática irá passar, mas permanecerá para sempre marcada na lembrança daqueles que viveram esses primeiros dias de maio de 2024 em Porto Alegre, os dias da maior cheia da história do Guaíba.