Psicólogos voluntários realizam atendimento aos moradores do Vale do Taquari

Com o objetivo de exercer uma escuta atenta e acolhedora em um momento tão sensível, psicólogos voluntários têm se mobilizado para atender os moradores da região

Por Maria Welter

Enchente, ciclone, Roca Sales, Vale do Taquari, chuva, clima View of the damage caused by a cyclone in Roca Sales, Rio Grande do Sul state, Brazil on September 7, 2023. - The death toll from a cyclone that unleashed torrential rain and flooding on southern Brazil rose to at least 36 Wednesday, authorities said, as the region braced for more violent weather. (Photo by SILVIO AVILA / AFP)
As enxurradas que atingiram o Vale do Taquari causaram imensas perdas materiais e humanas. O trauma de quem viu os bens pelos quais lutou uma vida inteira serem carregados pela força da água ou de quem ouviu os gritos de vizinhos e familiares que perderam a vida na tragédia é inestimável. Com o objetivo de exercer uma escuta atenta e acolhedora em um momento tão sensível, psicólogos voluntários têm se mobilizado para atender os moradores da região.
Mesmo que profissionais da rede local estejam atuando, muitos também foram afetados pela tragédia. Então a iniciativa de voluntários é essencial para atender os moradores. O Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) e a Secretaria da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul decidiram unificar as ações voluntárias. Os profissionais que desejarem se voluntariar para atuar nas cidades atingidas podem fazer o cadastro através do formulário SOS Vale do Taquari - Cadastro de Profissionais Voluntários – que também busca voluntários das áreas de medicina, enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, entre outros setores da saúde.
"A iniciativa surge de uma das nossas atribuições enquanto conselho profissional, nós temos no nosso código de ética preceituado que, diante das catástrofes e dos desastres, o psicólogo tem o dever de intervir junto à sociedade prestando um serviço de qualidade pautado na ética e na técnica", explica Thaíse Mendes Farias, conselheira do CRPRS.

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Após efetuado o cadastro, o CRPRS irá verificar a regularidade dos profissionais, se estão inscritos no CRPRS e se não há impedimento ético na atuação dessas pessoas. Se estiverem aptos para realizar os atendimentos, os psicólogos serão convidados a atuar em hospitais, unidades de pronto atendimento e demais serviços de saúde.
"Esse cadastro é destinado àquelas pessoas que tenham disponibilidade de carga horária. Isso é bem importante porque, às vezes, temos o interesse em participar e nos voluntariarmos, mas não temos tempo. Então é importante essa disponibilidade de carga horária e que tenha também interesse em atuar nesse auxílio aos municípios atingidos pelas enchentes", destaca Thaíse.
Os profissionais irão receber orientações por webinários promovidos pelo conselho da categoria acerca da atuação em ambientes de emergência e desastres. "O primeiro vai se destinar apenas a quem se cadastrou como voluntária ou voluntário. Depois isso vai ser divulgado nas redes sociais do conselho para o resto da categoria e para a sociedade", afirma a conselheira do CRPRS.
A primeira orientação online aconteceu no último sábado (16) e foi conduzida por Bernardo Dolabella, pesquisador em Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres e Emergências em Saúde da Fiocruz, e Renata Miranda, conselheira coordenadora da Comissão de Psicologia de Emergências e Desastres de Minas Gerais.
O psicólogo Eduardo Monteiro abriu uma vaga para atendimento online gratuito às vítimas. "Eu coloquei um horário da minha agenda à disposição para o atendimento on-line para ver se chegava para quem precisasse no momento. Mas as pessoas ainda não restabeleceram por completo internet, não restabeleceram por completo a casa para conseguir fazer essa terapia", comenta Monteiro.
Neste momento, o profissional defende que a escuta e o acolhimento são essenciais, já que o paciente pode apresentar sintomas como a hipervigilância, que é um estado de alerta constante, neuroses, que enquanto fobia se refere ao sofrimento consciente com relação ao mundo externo, ou evitação, que está associado a deixar de enfrentar a situação. Todos esses sintomas podem ser indicativos de que o paciente está com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), mas é preciso acompanhamento psicológico para que seja feito o diagnóstico adequado. "Cada caso é um caso, precisamos sempre ter uma escuta individualizada, ver qual é a demanda, precisamos estar ali escutando", complementa Monteiro.

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Lucas Neiva-Silva é psicólogo e professor de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e coordenador do Centro de Estudos sobre Risco e Saúde (CERIS), e teve experiência em tragédias no atendimento de pessoas ligadas à tragédia da Boate Kiss. O profissional explica que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) possui um documento que orienta a atuação dos profissionais em casos de emergências e desastres. A cartilha estabelece que as intervenções de saúde mental e psicossocial devem ser acionadas nas primeiras horas pós-desastre, conforme quatro níveis de intervenção: 1) serviços básicos e segurança; 2) apoio à comunidade e às famílias; 3) apoios focados, não especializados; e 4) serviços especializados.
"Quando temos uma situação de desastre é muito interessante o funcionamento da mente humana. O nível básico são serviços de segurança, então a primeira coisa que a gente precisa fazer no atendimento a essas populações é a garantia da sobrevivência e da subsistência", explica o psicólogo. Essa etapa inclui a prioridade de garantia de moradia, vestuário, saúde e higiene.
"Estamos tão focados em sobreviver que não temos tempo para chorar nesse momento. Então não temos tempo para nos deprimirmos nesse momento, você vê que algumas pessoas são mais proativas e elas entram no modo de funcionamento automático e outras pessoas estão travadas", exemplifica Neiva-Silva.
A segunda etapa é a de dar apoio às comunidades e às famílias, que pode ser dividido em dois níveis, de apoio instrumental e emocional. O apoio instrumental é a ajuda concreta e ativa, que inclui a doação de objetos, materiais e serviços para quem precisa. Já o apoio emocional começa por volta do terceiro ou quarto dia após o desastre, e ainda é muito voltado às comunidades e às famílias.
"Ele ainda é em nível populacional, então, por exemplo, é uma organização seja em centros comunitários, às vezes em uma praça, porque as famílias ficam tão perdidas nesse primeiro momento que não tem o que fazer. Temos que esperar, por exemplo, a água baixar e isso pode levar dias", comenta o psicólogo.
A terceira etapa, de apoios focados e não especializados, é quando começam a ser oferecidos serviços mais focados em saúde mental. "São pessoas que apresentam um sofrimento clinicamente significativo, sofrimento de saúde mental em nível leve e moderado. Isso vai atingir entre 15 a 20% da população atingida", explica Neiva-Silva.
Na ponta da pirâmide, estão os serviços especializados, voltados aos cuidados para casos mais graves. Nestes casos, três caminhos são frequentes. O primeiro é o de desenvolvimento de uma sintomatologia depressiva. "Não necessariamente seja um quadro depressivo mais grave, é uma sintomatologia depressiva. Um dos pilares dessa sintomatologia depressiva é a desesperança, a falta de expectativas futuras e a falta de esperança, ou a crença de que só coisas ruins vão acontecer no meu futuro", diz o psicólogo.
Outra possibilidade é a sintomatologia ansiosa, dentre as quais está a TEPT, que é marcada pela revivência dos momentos de trauma. O último caso, e menos frequente, é que a somatória dos fatores seja tão grave que a pessoa começa a ter ideação suicida. "Quem desenvolve uma ideação suicida não quer acabar com a sua vida, quer acabar com seu sofrimento. Então é muito importante que tenhamos locais adequados para isso, como os Centros de Atendimento Psicossocial, os ambulatórios especializados, e também profissionais liberais como psicólogos, psiquiatras, profissionais da área de saúde mental e até mesmo assistentes sociais e enfermeiros com formação na área de saúde mental", defende Neiva-Silva.