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Em Porto Alegre, professor de Harvard defende importância da atenção primária em saúde e elogia SUS
Robert Janett esteve em Porto Alegre para o Congresso Sul-Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, no centro de eventos da Amrigs
O médico consultor em Atenção Primária nos Estados Unidos e professor na Harvard Medical School, em Cambridge, Robert Janett, esteve em Porto Alegre na última sexta-feira (2) para uma palestra do VII Congresso Sul-Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, no centro de eventos da Amrigs, na zona leste da capital. Nesta edição, o mote do congresso foi “Atenção primária desafiada e a reinvenção do cuidado”.
O congresso, promovido pela Associação Gaúcha de Medicina de Família e Comunidade (AGMFC), reuniu profissionais que debateram durante os três dias de evento, em mesas-redondas, oficinas e conferências, as especificidades de cada área do setor. Segundo o presidente da AGMFC, João Henrique Kolling, o reencontro depois da pandemia foi um momento para celebrar. “A atenção primária é a base do sistema de saúde. É uma oportunidade de discutir os desafios e recarregar as energias. Este é um espaço onde reafirmamos a ciência e a importância de valorizar os conhecimentos técnicos na tomada de decisões políticas”, considerou. Kolling também ressaltou o destaque do Brasil na medicina da família. “A atenção primária de qualidade em países continentais como o nosso é uma experiência sem igual. É um exemplo para o mundo todo”, refletiu.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, o professor de Harvard afirmou que aprende muito com o Brasil e leva muitas ideias daqui para os Estados Unidos. Janett também comentou sobre as estratégias e os efeitos da pandemia de Covid-19 na atenção primária. “Ainda estamos sentindo os efeitos colaterais. Os profissionais também precisam de cuidado”, disse.
Leia a entrevista a seguir:
Jornal do Comércio - Você trabalha com Atenção Primária em Saúde na cidade de Boston, nos Estados Unidos, e também costuma vir ao Brasil com frequência para congressos sobre o assunto. Quais as semelhanças e diferenças que observa nos dois sistemas?
Robert Janett - Boston é uma cidade com com médicos e hospitais de alto padrão. Apesar disso, a atenção primária lá é vista como uma 'ovelha negra' da medicina, como acontece aqui. Trabalho há 40 anos e nós sofremos com falta de respeito dos especialistas. É um desafio, mas está melhorando, pois mudamos nosso sistema, principalmente depois da Covid-19, e a sociedade começou a ver a importância do nosso trabalho.
JC - Mas, quando você compara com o Brasil, quais as principais diferenças?
Janett - Bem, vocês têm o Sistema Único de Saúde (SUS). Essa ideia de acesso igualitário, mesmo que seja um objetivo que, muitas vezes, enfrenta problemas, é um grande diferencial, especialmente na atenção primária. Tenho o privilégio de visitar vários países e a diferença é brutal. Veja os Estados Unidos, alguns estados, como o Texas, chegam a ter 20% da população desassistida. É uma vergonha que um país tão rico abandone as necessidades dos mais pobres. Aliás, você sabia que, na Índia, um dos fatores vinculados a pobreza extrema é o endividamento das famílias com a saúde? Então, o Brasil tem essa joia rara de proteção social, a população inteira está assegurada. Admiro muito! Aprendo muito com o Brasil, levo ideias daqui para os EUA.
JC - Um dos seus objetivos é ajudar a ampliar a atenção primária. Como fazer isso?
Janett - Sei que tem desafios e quero ajudar a reformar e pensar os desafios de hoje. Estou comprometido com isso há 15 anos. Estou lutando para implementar a atenção primária de forma eficaz na saúde suplementar também. Por isso, estou muito feliz de ver a inovação que está acontecendo nesse setor privado. Esse esforço é muito importante porque muitas unidades pretendem oferecer atenção primaria, mas, na verdade, acabam oferecendo serviços de pronto atendimento, com horários restritos e de difícil acesso.
JC - Você falou, no início da conversa, que o Covid-19 mudou a forma de olhar para a atenção primária em saúde. Por que?
Janett - Foi um sofrimento, ficamos aterrorizados. Tivemos que nos adaptar da noite para o dia. Tivemos que montar sistemas de telemedicina, com triagem e centro de avaliação à distância. Tivemos uma equipe jovem e corajosa quando não tinha tratamento nem vacina. Foi assim que evitamos a superlotação de hospitais, o que não aconteceu em outros locais dos Estados Unidos e do mundo, como em Manaus, no Brasil. Isso mudou a forma das pessoas encararem a atenção primária.
JC - Vocês não utilizavam esses recursos antes?
Janett - Veja, a inovação principal foi a telemedicina. Em fevereiro de 2020 eu estive em Porto Alegre, onde pude estudar o TelessaúdeRS, da UFRGS. Isso foi muito inovador aqui no Brasil, eu passei muito tempo analisando o processo. Em março, a pandemia estourou nos Estados Unidos, e eu pude compartilhar o conhecimento que aprendi aqui com os colegas em Boston. Ninguém conhecia a telemedicina, nossa região foi experimental. Em duas semanas, tivemos 11 unidades que funcionaram com extrema potência e continuam até hoje!
JC - Hoje, esse sistema é utilizado para tratar outras doenças também, certo?
Janett - Sim, claro. A pandemia de Covid-19 produziu outras quatro pandemias. A primeira, é claro, foi a Covid aguda e a superlotação de hospitais. A segunda é formada por pessoas que não foram tratadas para outras doenças porque todos os esforços estavam voltados para a pandemia. A terceira onda é de pacientes crônicos que não foram tratar suas enfermidades por medo de contrair o vírus. E a quarta onda é a onda dos impactos psicossociais. Ainda estamos sofrendo as consequências dessa terrível doença e os recursos, como a telemedicina, têm nos ajudado.
JC - - Como estão os profissionais da saúde primária depois de tudo isso?
Janett - Precisamos de terapia, foi um transtorno pós-traumático... Eu, pelo menos, preciso de terapia.
JC - O que mais fazer para tentar amenizar esses problemas?
Janett - Primeiro de tudo, entender nosso próprio limite, aceitar que estamos trabalhando em um sistema quebrado. Perfeição é impossível agora! Além disso, compartilhar experiências com amigos, colegas, familiares. É preciso falar sobre tudo que vivemos. Também precisamos reestabelecer o orgulho de nossa profissão. Isso é muito importante porque outros desafios virão, a Covid-19 não terminou, não se esqueça.
JC - Faz parte da atenção primária desafogar outros serviços de saúde, como hospitais e emergências. Nesse sentido, é importante um papel educativo para que as pessoas não lotem esses locais sem necessidade?
Janett - Sim! O brasileiro tem uma peculiaridade. Falo porque trabalho com brasileiros em Boston. O paciente brasileiro decide que precisa ir num cardiologista, decide que precisa ir numa emergência, decide que precisa fazer algum exame, sem que esteja recomendado. Muitas vezes, ele não precisa de um cardiologista, ou de uma emergência, apenas de um remédio para o estômago, por exemplo. O médico da família, da atenção primária, cria um vinculo com o paciente e é esse médico que vai recomendar um especialista ou algum exame específico e vai ensinar em que situações o paciente deve procurar hospitais e emergências. O médico da família pode resolver até 90% dos problemas apresentados pelos pacientes.
JC - Em relação à confiança médico-paciente, em alguns locais do Brasil, especialmente em comunidades indígenas e quilombolas, a atenção primária é a única referência em saúde...
Janett - Nesses casos é preciso que o médico tenha um respeito profundo pela cultura e pela cosmovisão de mundo do paciente. O que esse paciente pensa sobre saúde, doença e terapia? O papel do médico não é negar a cultura do outro, é dialogar.
JC - Uma das categorias da atenção primária no Brasil é a do agente comunitário. Esses profissionais têm realizado protestos em algumas capitais brasileiras, como Porto Alegre e Maceió, por aumento de salário e melhores condições de trabalho. Ao mesmo tempo, são eles que realizam um importante trabalho no controle de endemias, como dengue, que só cresce no país no último ano. O que você observa dessa conjuntura?
Janett - Eu tenho muita inveja do Brasil nesse sentido. Nos Estados Unidos, não temos agentes comunitários. É raro. Eu acompanhei o trabalho desses profissionais aqui no Brasil, admiro muito. Em um país como esse, em que o atendimento à saúde fora dos grandes centros urbanos pode ser péssimo, são os agentes comunitários que identificam casos precoces, fechando brechas nos atendimentos, fazendo busca ativa. Nunca esqueçamos que o papel da atenção primária é justamente esse - fechar brechas na assistência médica. Para o Brasil é péssimo cortar recursos dessas pessoas ou não investir na área, porque o custo é baixo, comparado a médicos e enfermeiros, e a contribuição é enorme. Se eu pudesse, implementaria o serviço dos agentes comunitários em Cambridge.