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'Vivemos a angústia de que, se alguém precisar, não vai ter leito', desabafa presidente da Sotirgs
'Só abrir leito de UTI não resolve o problema. O custo pode ser mais mortalidade', avisa Nedel
WAGNER NEDEL/ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Patrícia Comunello
Estar dentro das UTIs na pandemia em Porto Alegre mistura dois sentimentos: pesadelo e alívio. As duas palavras foram usadas pelo médico intensivista Wagner Nedel, que atua nos principais hospitais de referência para casos críticos de Covid-19, o Hospital de Clínicas e o Conceição.
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Estar dentro das UTIs na pandemia em Porto Alegre mistura dois sentimentos: pesadelo e alívio. As duas palavras foram usadas pelo médico intensivista Wagner Nedel, que atua nos principais hospitais de referência para casos críticos de Covid-19, o Hospital de Clínicas e o Conceição.
Nessa sexta-feira (17), o painel de UTIs da Capital mostra que há 303 doentes, entre confirmados para o novo coronavírus (262) internados e 41 suspeitos. Porto Alegre está na bandeira vermelha do distanciamento controlado. A prefeitura começa a cogitar lockdown, após reunião com hospitais.
Sobre a condição de lotação que passou a ser constante, Nedel, presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do RS (Sotirgs), acrescenta: "É um pesadelo ter todas as posições lotadas. Vivemos a angústia de que, se alguém precisar, não vai ter leito. Liberar leito é um alívio". Na sexta-feira (10), Nedel e seus colegas chegaram à ocupação total, e ele definiu como um marco:
"É um momento delicado. Hoje é um marco bem relevante de chegar a ter lotação completa das UTIs para a Covid-19".
Uma UTI deveria operar sempre com uma ou duas posições disponíveis. "Se tiver uma situação mais dramática, não ficamos de mãos amarradas", justifica o médico.
Dois fatores vêm provocando a elevada ocupação, mesmo que estável há três dias. Maior demanda, associada a liberação de atividades que ocorreu em maio e junho, e a gravidade e permanência de doentes nas unidades. Há uma semana, houve novas restrições na Capital para frear a contaminação.
"Meu temor é que seja feito como em outros lugares: pacientes com mais idade e doença não tenham acesso a tratamento. Podemos passar por isso, se esse número de contágios não cair", apela o intensivista, e completa: "Não desejo isso para ninguém. Não é dizer quem vai primeiro, mas quem vai e quem não vai. Estamos tratando de seres humanos. Temos de trabalhar para que isso não aconteça".
O crescimento da mortalidade no Rio Grande do Sul, e com mais força na Capital, que chamou a atenção nas semanas recentes, reflete, em parte, as complicações de casos que estão há muito tempo nos hospitais.
O professor de Matemática da Ufrgs Álvaro Ramos, que acompanha toda a semana a evolução de casos e óbitos e faz análises em seu canal no YouTube, diz que o aumento de mortes está sendo maior percentualmente que o de casos. No Estado, a letalidade aparente passou de 2% a 2,6% nas últimas semanas. Mas o alerta maior está na Capital, diz Ramos. A letalidade reflete as mortes na população infectada.
"A letalidade passou de 2,5% para 3,6% em duas semanas. É muito acima, e com uma velocidade maior que a de casos", atenta o matemático. No confronto com a contaminação, a velocidade de perdas de vida é bem maior. O número de casos cresceu 8,3% entre 7 e 14 de julho (4,6 mil a 5 mil) e 14%, de 1 a 7 de julho (de 4 mil a 4,6 mil). Já os óbitos saltaram 28% na última semana (143 para 183, nessa terça-feira) e de 102 a 143, na primeira semana de julho, alta de 40%.
"Isso é muito preocupante. Atribuo essa situação à sobrecarga do sistema", observa o professor. "Alguém pode achar que 183 óbitos em Porto Alegre não é muito, mas para estas pessoas e suas famílias é bastante", opina o matemático, que renova o apelo para o isolamento social, indicando que a menor pressão por internação ocorreu em períodos de maior restrição.
Segundo Nedel, não tem ocorrido muita mudança em perfil de pacientes, com proporção de um terço com menos de 50 a 60 anos e poucas comorbidades. O que, sim, surpreende até um médico experiente é ter tantos jovens sem doenças anteriores, com menos de 35 anos, e recuperação lenta em UTI clínica.
UTI do Hospital Conceição tem 45 leitos e tem se mantido no limite de ocupação. Foto: Wagner Nedel
"Pacientes ficam 30 a 35 dias. Tem jovem em ventilação mecânica por 25 dias. A média, sem a pandemia, seria de sete a nove dias de internação e cinco a sete de ventilação, para casos mais graves", confronta o especialista.
Além da batalha individual para vencer o vírus, o paciente com estadia prolongada reduz a rotatividade de leitos, por isso cada vez fica mais difícil ter leito sobrando, nem para emergência. No caso do Conceição, o hospital tem 75 leitos no total, sendo que parte foi ampliada para atender apenas Covid-19 e há outro número de vagas que foi deslocado de outras áreas de atendimento, para a demanda do novo coronavírus. O que não tem sido suficiente. A semana termina com 45 das 46 posições (mais um leito foi acrescido à unidade) ocupadas.
Outro detalhe que começa a pesar é o limite da estrutura, da medicação e do suporte de profissionais. A medicação, como kit entubação, já se tornou um gargalo, que vem exigindo uso de remédios da área veterinária e apoio do Uruguai na aquisição.
"Os que estão morrendo hoje não é por falta de assistência, são casos graves que não respondem ao tratamento. Mas em fim de julho e agosto, se tiver crescimento exponencial, a correlação de ter profissionais com menor treinamento, locais no interior sem supervisão e uso de medicamentos e equipamentos de segunda e terceira linha e óbitos será maior", adverte.
"Estamos trabalhando no limite", diz médico
Outra preocupação que a categoria dos intensivistas e demais especialidades e profissionais também já agregou é o comportamento das localidades que passam à bandeira vermelha, que tem um dos fatores mais decisivos a ocupação de UTIS.
"Para sair da vermelha, prefeitos e gestores buscam reduzir o indicador abrindo leitos de UTI, só que não tem profissionais, equipamentos e medicamentos para um aumento indiscriminado. A qualidade assistencial vai cair", adverte, e reforça: "Só abrir leito de UTI não resolve o problema. O custo pode ser mais mortalidade."
Nedel cita que aumenta a cada dia a dificuldade para preencher as vagas das equipes com médicos, técnicos, enfermeiros, fisioterapeutas e nutricionistas. Na área de intensivismo, a especialidade ganha a cada ano 25 novos médicos. No Estado, são 600 intensivistas em atividade e já com carga de trabalho ampliada. "Não são tantos que estão à disposição ou tem como fazer escala adicional. Estamos trabalhando no limite, e muitos adoecem. Hoje tenho colegas intensivistas entubados", relata o presidente da Sociedade de Terapia Intensiva.
Ele fala por experiência própria. Foi infectado pelo novo coronavírus em fim de maio, possivelmente por um colega dentro de um dos hospitais em que trabalha, teve pneumonia e admite que, sabendo da história da doença, teve medo de evoluir para uma condição pior. "Foi um exercício de preocupação constante, aflitivo. Tive medo de evoluir mal. O dia que parou a febre, fiquei tão feliz que fiz meu Imposto de Renda", recorda, sobre o alívio que faz tanta falta neste momento.