A pandemia do novo coronavírus, definitivamente, já marcou uma geração. Milhares de vidas perdidas, economia mundial abalada. Há quem acredite que nada será como antes, que a relação do ser humano com a natureza irá mudar. Há quem ache que tudo continuará do mesmo jeito, e que a lição que o vírus trouxe não será aprendida. Ainda que o cenário seja totalmente diverso, é possível olhar para trás e ver como a maior epidemia do século passado afetou o mundo inteiro, dizimou milhões de pessoas e deixou uma marca indelével na forma de vida das jovens sociedades industriais.
O ano era 1918. O mundo estava enterrado naquela que foi a primeira guerra global, envolvendo todos os continentes, ainda que travada principalmente nos campos de batalha europeus. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou um saldo de mortos que varia entre 17 milhões e 19 milhões de pessoas, entre militares e civis.
Pois, se não bastassem os horrores da guerra, com o uso indiscriminado de armas químicas e biológicas, um novo inimigo surgiu - nas trincheiras e fora delas - para deixar um rastro de vidas perdidas pelo caminho. Desta vez, porém, era um inimigo silencioso, um inimigo invisível, microscópico, mas não menos letal que as balas dos rifles e as bombas dos canhões.
A Gripe Espanhola - como ficou conhecida a doença que varreu o planeta entre 1918 e 1919 - foi devastadora. Na época, não havia dados confiáveis a respeito do número de pessoas contaminadas e de óbitos. Assim, as estimativas a respeito da mortalidade da pandemia variam de 17 milhões até 50 milhões. Algumas análises apontam que a doença pode ter matado mais de 100 milhões de pessoas.
O nome o qual a pandemia global de 1918 recebeu é enganoso. Não foi na Espanha que ela surgiu. Tampouco foi lá que ocorreu a maioria das mortes. O que aconteceu foi que, por não participar da guerra, a imprensa espanhola não estava sob censura do governo. Assim, a disseminação da doença foi mais noticiada na Espanha, o que resultou no nome que a tragédia sanitária recebeu.
Até hoje não se sabe com certeza onde surgiu o vírus. Uma das hipóteses aponta para o acampamento militar britânico de Étaples, na França, onde funcionava uma espécie de hospital de campanha. No local superlotado existia um viveiro de aves usadas como suprimentos, o que reforça a possibilidade de ter surgido ali a doença. Outra indica para o estado norte-americano do Kansas, com acampamentos militares já tendo registrado casos ainda em 1917. Uma terceira possibilidade aponta para a China e diz que o vírus teria chegado na Europa por meio da mobilização de trabalhadores chineses para atuarem atrás das linhas britânica e francesa na guerra.
Um vírus que voltou às manchetes em 2009
O vírus responsável pela pandemia mortal de 1918, que causou uma das maiores tragédias sanitárias da história humana, é um conhecido que, recentemente, voltou a nos visitar, trazendo grande apreensão, mas com muito menos força do que no início do século passado.
O H1N1 causou a primeira pandemia do século XXI e se alastrou por mais de 200 países entre 2009 e 2010. Os números provam isso: na sua aparição mais recente, o H1N1 contaminou, em quase 16 meses de pandemia, menos de 500 mil pessoas e causou na casa de 18,6 mil mortes em todo o mundo, conforme a Organização Mundial de Saúde.
Não há uma certeza acerca das origens do vírus, mas é quase certo que ele migrou das aves para os humanos. "Certamente, alguma ave aquática migratória o eliminou nas fezes e, por algum meio, alcançou o homem", afirma o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor do livro "Pandemias, a humanidade em risco" (Editora Contexto, 2011, 216 páginas).
Conforme o especialista, as aves são os reservatórios naturais do influenza, pois permitem que grandes quantidades do vírus se repliquem em seu corpo sem adoecerem. "Provavelmente, ambos coevoluíram, e as aves se tornaram resistentes ao ataque viral, além de funcionarem como transportadoras virais para longas distâncias", diz Ujvari.
"Os vírus eliminados nas fezes permanecem em solo úmido, represas, lagoas e açudes à espera de outro animal para infectar. Os suscetíveis ao influenza são o cavalo, a baleia, o homem, a ave e o porco. Hoje, sabemos que o vírus da Gripe Espanhola se originou de um vírus presente em alguma dessas aves", completa.
As três ondas da pandemia
Hospitais de campanha, como este no Kansas (EUA), se tornaram comuns
/ACERVO/MUHM/DIVULGAÇÃO/JC
A pandemia se deu em três ondas. A primeira ocorreu no primeiro semestre do ano, e se caracterizou por ser muito contagiosa, mas menos letal, e atingindo principalmente os Estados Unidos e a Europa.
A segunda onda, no segundo semestre de 2018, foi arrasadora. Com início entre agosto e setembro, atingiu o mundo inteiro. As condições insalubres nas trincheiras da guerra - chuva, lama, ratos, estresse, desnutrição, piolhos, doenças outras como tifo e tuberculose - derrubavam a imunidade dos soldados. Não bastasse tudo isso, a gripe veio para abater tropas inteiras. A grande movimentação de militares e de civis - facilitada pelas novas formas de transporte - foi decisiva na disseminação da doença.
A terceira onda se deu no final de 1918 e no primeiro semestre de 1919. Menos intensa, atingiu a Austrália em janeiro de 1919, se espalhando para a Europa e os EUA, onde permaneceu até junho.