As ruas de Porto Alegre são cheias de história. Em alguns casos, o passado surge em meio ao concreto e vidro de prédios mais modernos, enchendo os olhos de quem tira alguns instantes para a observação. Em outros, porém, o que surge é o descaso com a Porto Alegre de outros tempos, em edificações caindo aos pedaços que, em outra situação, poderiam ser o orgulho de uma cidade mais cuidadosa consigo mesma.
Cuidar do patrimônio histórico não é fácil, e são comuns as situações onde as visões divergentes de poder público, proprietários e Justiça tornam essa tarefa ainda mais difícil. Com a revogação do texto que disciplinava o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis de Porto Alegre, no final do ano passado, criou-se um vácuo na legislação municipal - que, se depender da prefeitura, será preenchido com uma nova (e polêmica) lei, já em tramitação na Câmara da Capital.
Para discutir os muitos aspectos envolvendo os imóveis históricos de Porto Alegre, o Jornal do Comércio começa a publicar, nesta edição, uma série de dez reportagens sobre o patrimônio que surge - ou que, aos poucos, desaparece - em meio à crescente transformação imobiliária da cidade.
Leia todas as reportagens da série:
Cidade conta com 5,5 mil imóveis de interesse histórico
Dependendo de como se olha os números, Porto Alegre pode tanto ficar devendo quanto estar cuidando bem demais de seus prédios históricos. Segundo dados de 2015, São Paulo tinha cerca de 1.700 bens tombados pelo município; o Rio de Janeiro lista, no site oficial da prefeitura, 355 tombamentos. Em comparativo, Porto Alegre tem, no material disponível em sua página oficial, 68 entradas do tipo. Somadas aos decretos assinados pelo Estado e pela União, chega-se a cerca de uma centena de imóveis e logradouros protegidos nessa modalidade.
O total de estruturas efetivamente protegidas, porém, é muito maior. Segundo Eduardo Hahn, coordenador de Memória Cultural da Secretaria da Cultura da Capital, a cidade tem algo em torno de 5,5 mil locais considerados de interesse histórico.
Ao contrário da maioria das grandes cidades brasileiras, Porto Alegre trabalha com uma política incomum para o patrimônio histórico. Além do tombamento, previsto na legislação federal, o município admite também a listagem no inventário como um mecanismo de proteção, em duas figuras distintas.
Os bens inventariados como de estruturação são considerados de interesse histórico, dignos de preservação em sua totalidade. No momento, a Capital conta com mais de 3,1 mil imóveis nessa categoria, que podem ser, futuramente, tombados. Mas há também os chamados imóveis de compatibilização, presentes no entorno imediato de obras arquitetônicas mais significativas. Sua função é de manutenção da paisagem - ou seja, é possível modificar completamente a estrutura interna da edificação, desde que seja preservada sua aparência externa e certos índices, em especial a altura, sejam respeitados. No momento, cerca de 2,3 mil entradas do tipo estão oficializadas, segundo Hahn.
Apesar dos problemas visíveis em várias edificações, o coordenador afirma que a situação geral do patrimônio da Capital não é tão trágica quanto parece. "Existem, claro, algumas centenas que apresentam problemas", admite. "Mas a maioria está em situação razoável, e sendo utilizada inclusive."
A falta de uso regular da estrutura é, segundo ele, um dos principais disparadores de problemas. "Na medida em que pessoas estão lá, vai ter alguém tirando o pó, trocando uma telha... Normalmente, os imóveis em mau estado foram abandonados, ou estão fechados. E quando se inicia o processo de degradação, dependendo do caso, ele pode avançar bastante rápido."
'Não temos uma cultura de manutenção predial', lamenta presidente da seção gaúcha do IAB
Prédios como o da Riachuelo estão em bom estado; outros, como Casa Azul, caem aos pedaços
CLAITON DORNELLES /JC
"A má conservação de imóveis é regra no País, sejam tombados ou não", diz o presidente da seção gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Rafael Pavan dos Passos. "Não temos uma cultura de manutenção predial. Isso se agrava no caso do patrimônio histórico, pois as intervenções são mais caras", descreve.
Pela lei, cabe aos proprietários tomar as medidas necessárias para manter a saúde do imóvel em dia. Um cuidado que, alegando custos proibitivos, alguns acabam deixando para trás - como, por exemplo, na hoje notória Casa Azul, entre as ruas Riachuelo e Marechal Floriano, que corre risco de desabar.
Ao todo, 41 bairros de Porto Alegre contam com bens inventariados pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural da Capital (Epahc). Bairros como Bom Fim, Centro Histórico, Cidade Baixa, IAPI e São Geraldo já estão com inventário concluído. No Petrópolis, que encontra-se em fase final de inventário, o levantamento motiva revolta entre parte dos moradores, que desejam o desbloqueio de imóveis listados como de compatibilização.
Pavan, do IAB-RS, admite que o uso do inventário como mecanismo de proteção é controverso. Mas acabou se tornando um recurso para preservar as características de determinadas áreas, diante da especulação imobiliária - em especial após o fracasso na consolidação das Áreas Especiais de Interesse Cultural, previstas no Plano Diretor e que resultariam em um zoneamento específico para paisagens urbanas.
"Se olhar quantitativamente, alguns dirão que são muito mais imóveis do que outras capitais. Como não estamos usando dos instrumentos que poderiam proteger coletivamente essas áreas, então parece demais, mas há uma justificativa, que é evitar a descaracterização", argumenta Pavan.
Confira na próxima segunda-feira: Centro Histórico, a área com maior concentração de imóveis na Capital