Iniciativas criadas a partir da demanda gerada com o desastre climático de 2024 seguem atuantes um ano depois

Startups gaúchas consolidam soluções de prevenção um ano após a enchente no RS


Iniciativas criadas a partir da demanda gerada com o desastre climático de 2024 seguem atuantes um ano depois

Um ano após a maior enchente da história do Rio Grande do Sul, a busca por soluções e mitigações aos danos causados são marcas de um Estado que ainda luta pela sua reconstrução. Com 95% dos municípios atingidos e um trauma histórico, empreendedores de vários segmentos uniram esforços para investir em serviços, produtos e ferramentas que trouxessem alternativas para lidar com as consequências das mudanças climáticas.
Um ano após a maior enchente da história do Rio Grande do Sul, a busca por soluções e mitigações aos danos causados são marcas de um Estado que ainda luta pela sua reconstrução. Com 95% dos municípios atingidos e um trauma histórico, empreendedores de vários segmentos uniram esforços para investir em serviços, produtos e ferramentas que trouxessem alternativas para lidar com as consequências das mudanças climáticas.
Nesta esteira, uma das iniciativas é a TideSat Global. Incubada no campus do Vale da Ufrgs, foi a única finalista da competição de startups do South Summit com uma inovação voltada à temática das enchentes. Com um sensor de monitoramento capaz de medir o nível d'água a longas distâncias, a TideSat existe desde muito antes de maio de 2024.
Como um projeto de pesquisa da universidade, a TideSat teve seu embrião em 2016. Vitor Hugo Júnior, mestre em sensoriamento remoto e cofundador da startup, está à frente da iniciativa. "Nasceu aqui nos laboratórios da Ufrgs. Somos todos pesquisadores ligados ao sensoriamento remoto, à geociência. Em 2020, conseguimos transformar isso em negócio", conta Vitor. O principal diferencial da TideSat é a funcionalidade do equipamento utilizado para o monitoramento. Durante a enchente de 2024, como conta o empreendedor, chegaram a ser os únicos que resistiram ao inédito nível atingido pelo Guaíba. Isso porque os sensores ficaram em locais altos, distantes da água, diferente daqueles utilizados oficialmente pelas autoridades, que tinham réguas dentro do rio e que foram completamente danificados.
O sensoriamento a distância é possível através de uma análise de diversos fatores. "Fazemos a medição do nível da água usando a reflexão do sinal do satélite GPS. Eles ficam mandando o sinal continuamente, que reflete na água e conseguimos fazer a medição", detalha Vitor Hugo.
Devido ao destaque durante aquele período, a TideSat passou a ser procurada por instituições públicas e privadas. A prefeitura de Estrela, cidade do Vale Taquari que foi devastada, contratou a startup para uma análise emergencial a partir da ameaça de uma nova alta do nível do rio Taquari, prevista para pouco mais de um mês após a tragédia de maio. "No meio da enchente, eles perderam a informação do nível e estavam medindo com um bastão para saber a logística dos abrigos. Ou seja, tinha gente que poderia estar auxiliando na gestão e estava no frio, na beira do rio, para medir manualmente. Lá, nosso sensor fica a uma altura de 45 metros, então a distância que nós podemos utilizar é bem grande", detalha Vitor.
Além de instituições públicas, a TideSat atua também com empresas privadas. "Nossa tecnologia acaba sendo um meio, então temos uma alta gama de clientes. Poder público, meteorologistas, portos, saneamento, navegação", comenta Vitor Hugo. "Como temos a intenção de democratizar o acesso aos dados, as prefeituras são ideais, porque eles trabalham com a divulgação", completa.
Além dos mapas de monitoramento, a ferramenta disponibilizada pela inciativa oferece dados complementares através de uma espécie de painel de controle. "Nossa ideia é que o cliente possa se preocupar somente em utilizar o dado no final", destaca Vitor.
Outro fator diferencial da TideSat é a simplicidade do equipamento, que conta com só três componentes: uma antena, uma caixa de componentes eletrônicos e um painel solar. Além de ter um custo baixo - de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil -, a instalação e a manutenção também são facilitadas. "É tão simples a instalação que nós estamos estabelecendo uma parceria com uma empresa de Minas Gerais, em que eles mesmos instalaram com as nossas instruções daqui, por chamada de vídeo", conta.
Vitor Hugo frisa que a iniciativa pode ser utilizada em diversas situações. "Não serve só para prevenção de desastres, o serviço é fundamental no dia a dia. Agora, estamos com um sensor no Canal de Itapuã, com a Portos RS, que está usando o medidor para planejar a rota dos navios como dado oficial. Por conta da estiagem, têm muitos bancos de areia, então eles aguardam a informação da subida do nível para poder passar as embarcações", exemplifica.

Através de mapeamento, startup prevê possíveis áreas de inundação

Durante as enchentes de 2024, era comum a busca por mapas de inundação capazes de prever, ao menos em curto prazo, quais ruas seriam alagadas. A dificuldade de encontrar essa informação se deu por conta da falta de serviços dessa natureza à época. A Smart Flood é uma startup que nasceu em Gravataí a partir desta necessidade.
Uma semana antes do início dos alagamentos em Porto Alegre e Região Metropolitana, o engenheiro Lucas Rangel Martins se reuniu com seu amigo e atual sócio, Mateus Zambiasi, para propor o início de um projeto para sanar um problema notado por Lucas. "Depois das enchentes de setembro de 2023, fiquei encucado por não existir mapeamentos de cheias, de áreas inundadas que seriam posteriormente atingidas, somente estudos meteorológicos, com mapas da Defesa Civil bastante grosseiros", revela.
A urgência surgida com a enchente fez o projeto sair do papel de forma antecipada. "A gente fazia as previsões manualmente, com base nos boletins do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) sobre as cotas do Guaíba, e aí começamos a lançar no site como isso ia afetar a bacia do rio Gravataí", conta Lucas.
As previsões da Smart Flood são feitas a partir de uma análise de dados colhidos de instituições importantes como a Agência Nacional da Água (ANA). "Pegamos também previsões meteorológicas de modelos globais para alimentar nosso sistema", explica Lucas. Um ano depois, a startup está finalizando sua primeira versão do sistema, que vai ser posta à prova no inverno deste ano. "Vamos poder conferir se aquilo que a gente prevê bate de fato com o que acontece", diz Lucas.
Ele compreende que há uma falta de preparo das instituições governamentais, mas entende que os investimentos feitos pelo governo do Estado após a enchente trarão benefícios. "De uma certa forma, eles entram como um concorrente para nós nos rios, mas entendo que muitos dos principais afluentes vão seguir sem o devido cuidado e precisarão de iniciativas como a nossa. Com esses investimentos, vamos ter uma base cartográfica que provavelmente nenhum outro estado do Brasil tem", ressalta Lucas.

Iniciativa desenvolve projeto de educação para desastres

Prevenção e mitigação de desastres devem passar pela educação. A Hopeful é uma iniciativa pensada para esse fim. Com cursos, workshops e eventos, a startup tem atividades voltadas para instituições e para indivíduos com foco na preparação para tomada de decisões efetivas antes, durante e após a ocorrência de desastres de qualquer natureza, inclusive hidrológicos.
CEO da Hopeful, o mestre em epidemiologia dos desastres, Abner Quintino de Freitas ressalta a importância de dar atenção à prevenção. “Todo mundo vai se envolver com desastre. A questão é se as pessoas vão escolher se envolver antes, durante ou depois. O problema de ser durante ou depois, é que as pessoas morrem. Então, quando chamamos a atenção para a prevenção, não é por capricho”, pondera ele. Nascida em 2017 no Tecnopuc como uma atividade acadêmica, a Hopeful se consolidou com o passar do tempo, registrando aumento na procura pelo serviço. “A Hopeful tem sete anos. Acumulamos prejuízo por seis, porque nossos potenciais clientes não enxergavam nosso serviço como algo pago. Como sociedade, colocamos o dinheiro na reparação, não na prevenção. Quando a gente se posiciona como uma empresa que se trabalha essencialmente com prevenção, é mais do que ser uma empresa, é tentar mudar uma lógica”, explica.
Sobre 2024, Abner ressalta que os danos causados pelo alagamento não poderiam ser evitados, somente reduzidos, mas alerta para a falta de preparação das entidades. “Os desastres têm variabilidade. Mas criar comitês de crise para decidir o que fazer em meio ao que está ocorrendo é amadorismo”, critica. O CEO compreende que o Estado ainda não amadureceu o suficiente para enfrentar um novo desastre de maneira eficaz. No entanto, o alerta gerado pela tragédia de 2024 aumentou a preocupação das pessoas. “Quando palestrava sobre desastres, tinha dificuldade em chamar a atenção das pessoas. Hoje, especialmente no RS, todo mundo tem uma experiência pessoal ou de alguém muito próximo”, afirma, ressaltando a necessidade de atenção em relação aos próximos eventos. “Há um estudo australiano que indica que entramos na era dos desastres. Estamos achando que nenhum desastre vai superar aquilo que nós já conhecemos. Maio de 2024 é um exemplo de que as coisas podem colapsar.
 
 

Tinder da solidariedade conecta setor privado com comunidades vulneráveis

Um dos marcos da enchente de 2024 foi a força do voluntariado. Um dos maiores desafios era organizar e conectar a oferta de auxílio às necessidades dos atingidos. Ainda nos primeiros dias, Caroline Vanzellotti, empreendedora à frente da RH Decola, começou um movimento que, mais tarde, resultou na ONG Bonanza, que presta serviço de inteligência humanitária a partir de suporte tecnológico e gestão de dados para ONGs e instituições.
Além de Caroline, presidente da ONG, Olimar Teixeira Borges, CEO da Skyvidya e vice-presidente da Bonanza, contribuiu para o desenvolvimento do projeto, que aconteceu no Tecnopuc. Cerca de 710 abrigos de Porto Alegre passaram a ser mapeados e, a partir disso, receberam doações de acordo com as demandas. "Mandávamos equipes para abrigos e eles nos avisavam de duas em duas horas o que o local precisava", conta Caroline.
Mais de 300 pessoas atuavam na equipe, que se tornou um "Tinder da solidariedade". "Fazíamos o que passamos a chamar de matchmaking, que era buscar as doações pra aquelas necessidades", explica Caroline. O projeto, idealizado para um momento de urgência, tornou-se uma ONG de mapeamento de necessidades em regiões vulneráveis. "Vamos em uma comunidade, estabelecemos um contato com o líder comunitário ou com uma organização da sociedade civil que atua naquela região, e fazemos o mapeamento", explica Olimar.
O sistema utilizado pela Bonanza foi desenvolvido pela Monday, que permite que as organizações criem aplicativos personalizados. "Eles são de Israel. Tínhamos licença para usar por um ano e, após o nosso trabalho, eles nos deram uma licença indefinida", conta Olimar. De acordo com Caroline, a empresa quer replicar a iniciativa criada no Estado em outros lugares do mundo. "Apoiamos em Valência, no Kentucky e em Los Angeles, tudo através da Monday", afirma.
A base de dados da Bonanza mapeia idade, presença de crianças ou pessoas com deficiência na residência, entre outras informações que contribuem para entender as necessidades de doação. "Essa base de dados ajuda a entender se a pessoa está desempregada e procura uma nova oportunidade, se tem criança em casa e precisa de creche, se há uma preocupação com drogas naquele território", explica Olimar. Os empreendedores explicam que a identidade de todos é preservada. "Quando uma companhia está interessada em realizar alguma ação ou doação, ela tem à disposição informações sobre o que aquele território precisa, não sobre uma pessoa em específico", comenta Caroline.
Um dos maiores desafios enfrentados pela Bonanza é a atualização destes dados. "A pessoa que fez o cadastro inicial conosco vai ter login e senha para atualizar seu próprio cadastro", destaca Olimar. A startup também oferece o serviço em escolas, com mais de 140 instituições cadastradas.
A Bonanza conta com parcerias do setor privado para viabilizar as ações. "Usamos dados para submeter projetos e ficamos com um percentual desse projeto. Executamos as ações com o dinheiro que arrecadamos. É assim que a gente se remunera", contextualiza Caroline. Pensando no futuro, a ideia é que a Bonanza se torne um Software as a Service para empresas que queiram fazer uma ação social. "Não há uma clareza sobre quais são as necessidades reais das comunidades. A ideia é dar transparência e clareza sobre o que está acontecendo naquela região", observa a empreendedora.