O tempo passa e mulheres seguem precisando provar que podem, sim, estar em diferentes ambientes e ocupar os mesmos cargos que homens. Mas é inegável que, em alguns segmentos, há ainda mais adversidades para as mulheres, principalmente se tratando de cargos de liderança. De acordo com pesquisa realizada pelo Sebrae-RS em 2024, cerca de 10% das mulheres empreendedoras do Rio Grande do Sul iniciam no empreendedorismo para dar seguimento aos negócios da família. Isso porque, geralmente, a sucessão ocorre entre pai e filho homem. Parte dessa pequena porcentagem, Eva Paiva, 29 anos, é a primeira mulher a fazer parte da sociedade do negócio da família, a Oficina Paiva.
Apesar de ter sido criada dentro da oficina - fundada por seu avô Jorge, que passou a empresa para seu pai, Paulo Paiva -, Eva nunca planejou seguir os passos de seus antecessores. Com dois irmãos mais velhos, parecia evidente que a mecânica seguiria na família com um deles. Sendo assim, quando se formou na escola, Eva foi estudar Ciências Contábeis. Em 2019, enquanto trabalhava na área de contabilidade de uma multinacional, a empreendedora engravidou de Fernanda, sua primeira filha, e foi demitida da empresa. "Não tinha mais trabalho, não tinha mais como pagar a faculdade e tinha uma filha para criar. Tive de trancar os estudos e entrei em uma depressão profunda que durou uns dois anos. Foi quando voltei a trabalhar na oficina com o meu pai", lembra Eva.
Quando retornou para a mecânica, que havia crescido de um terreno na frente de casa para um pavilhão de 600 m² e precisava de uma gestão, Eva notou que poderia aplicar no negócio do pai o que havia aprendido na área contábil. "Comecei a identificar diversos pontos onde poderia aplicar meu aprendizado e entendi que a oficina mecânica era o meu legado, uma oportunidade. Foi quando comecei a estudar sobre a indústria mecânica num todo e descobri que ela era bilionária. Logo, pensei 'se movimenta tudo isso, não é uma área tão pequena'", rememora.
Durante a pandemia de Covid-19, o faturamento da Oficina Paiva triplicou. Eva observa que foi capaz de incrementar diferentes processos no negócio. Contudo, sentia que poderia ir ainda mais longe se compreendesse mais sobre a prática da mecânica. "Sentia essa dificuldade mais prática, precisava entender mais sobre os carros para poder aplicar métodos em processos, orçamentos, compras, melhorar a produtividade. Pensei que, se eu tinha essa dor, outras mulheres no meio mecânico também deviam viver isso", conta. Pensando em criar um grupo de apoio e troca de informações entre mulheres do setor automotivo, Eva criou, em 2021, o Gaúchas Car, agora chamado de Instituto MV8, que faz referência ao motor V8.
O grupo iniciou com 14 mulheres gaúchas e, hoje, conta com mais de 560 mulheres de seis estados do Brasil. "A proposta do instituto é trazer mais inclusão, desenvolvimento e capacitação para mulheres. Para isso, promovemos eventos, workshops, treinos, palestras, visitas a fábricas. Tudo isso para quem já está no setor automotivo ou tem interesse em entrar", explica.
Em breve, a empreendedora planeja realizar também ações com jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Para Eva, trabalhar em um setor majoritariamente masculino é, de diferentes maneiras, desafiador. "Meu maior receio em voltar para a oficina era aquela sensação de pertencimento, como se todos os meus sonhos estivessem indo por água abaixo. Ainda falta trazer essa identidade de que uma oficina mecânica também é lugar de mulher. Se entrava um cliente e me olhava meio torto, aquilo já me deixava para baixo. Mas, hoje, compreendo que é meu legado, que é graças à oficina que consigo e estou conseguindo realizar todos os meus sonhos. É um mundo de oportunidades", orgulha-se.
O conselho que a empreendedora compartilha com as mulheres que participam do instituto, e que julga ser cabível para diferentes segmentos, é posicionar-se. "Tu precisas ter senso da tua própria identidade, dominar teu posicionamento e entender que aquilo, inicialmente, até pode ter sido o sonho de outra pessoa, mas a partir do momento em que tu assumes, passas a ser teu sonho também", ressalta Eva.
"As mulheres vieram para ficar no agro", diz pecuarista
Ainda que o cenário do agronegócio tenha mudado muito ao longo dos anos, o setor ainda é um dos menos explorados por empreendedoras. Segundo dados divulgados pelo Sebrae-RS, apenas 3% das mulheres empreendedoras atuam no ramo no Rio Grande do Sul. Indo contra as estatísticas, Mariana Franco Tellechea, 61 anos, quebra paradigmas ao ser a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Associação Brasileira de Angus.
Mariana segue o legado da família ao ser nomeada para presidir a entidade. Nos anos 1960, seu pai, Flávio Tellechea, foi presidente da associação, e seu irmão, Neco Tellechea, também presidiu a entidade em 1984. "É muito gratificante. Tenho um carinho muito especial pela associação, me criei participando de todas as etapas dela. A associação foi fundada no ano em que eu nasci, meu pai sempre nos levava, lembro da primeira sede lá em Esteio. Existe uma dedicação muito grande, foi uma alegria imensa ter sido chamada. Me sinto em casa na associação", define Mariana.
Em 1989, Neco faleceu em um acidente de carro e, em 1990, Flávio não resistiu a um ataque cardíaco e também faleceu. O momento difícil fez com que Mariana, que, na época, tinha dois filhos pequenos, tivesse de assumir mais responsabilidades na empresa. "Até então, eu fazia mais a parte de registro dos bovinos e ovinos no escritório, muito em função das crianças, porque era mais difícil de ir até o campo. Mas aí ficamos só eu, minha mãe, minhas irmãs e minha ex-cunhada. Como eu era a única que morava em Uruguaiana, fiquei atendendo às estâncias e foi se iniciando a sucessão", lembra sobre o processo.
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Mesmo orgulhosa em dar continuidade ao nome da família, Mariana admite que o cenário no agronegócio nem sempre foi tão receptivo às mulheres. "Foram momentos difíceis. Nós não tínhamos muita experiência, mas não foi fácil porque as pessoas, com certeza, sabiam que não tínhamos tanto domínio e existia, além de uma resistência por ser mulher, uma resistência por faltar experiência", comenta. Mariana passou 20 anos administrando o negócio ao lado da mãe, Lila Franco Tellechea, até fecharem o espaço em 2009.
A partir daí, o foco foi trabalhar e desenvolver a sua propriedade, a Cabanha Basca, especializada em bovinos Angus e Brangus. Hoje, Mariana comanda o negócio ao lado da filha Lila Tellechea e do genro Henrique Gonzalez. "É uma alegria ver que a dedicação de tantos anos vai ter uma continuidade, que temos uma nova geração no agro com novas ideias, novas tecnologias, que vão renovar os processos", diz.
Mais do que uma nova geração, Mariana enxerga um novo cenário para as mulheres no agronegócio. "Vejo muitas mulheres no agro hoje, nos mais diversos setores. O papel da mulher está cada vez maior e crescendo nesse setor, temos uma aceitação bem melhor hoje em dia. As mulheres vieram para ficar no agro e em qualquer outro segmento da economia. Nosso potencial é enorme, existe muita dedicação e muito talento. Sou muito feliz em poder conhecer, admirar e aprender com outras mulheres", considera.
"Mulheres não são vistas como uma possibilidade", afirma especialista
Foi quando viveu na pele as dificuldades de assumir um negócio familiar que Elisa Oca Bertaso, consultora de empresas e herdeira da editora e Livraria do Globo, decidiu estudar sobre o assunto e iniciou o mestrado em Administração de Organizações, na Ufrgs. O estudo tomou maiores proporções e, em 1997, Elisa publicou o livro A Batalha das Herdeiras na Herança Familiar.
Bisneta de José Bertaso, um dos sócios da tradicional Livraria do Globo, que operou no Centro Histórico de Porto Alegre de 1883 até 2007, Elisa admite que passou por dificuldades ao tentar assumir a gestão da livraria. Mesmo com o diploma na mão, a administradora conta que não tinha suas ideias e projetos levados a sério pela equipe que integrava o negócio na época. "Tudo que eu trazia de inovação, que iria ajudar muito, tinha esse entrave. Esse foi o principal motivo de querer estudar sobre a sucessão, porque estava vivendo isso", lembra. Após o fim da dissertação, Elisa seguiu no ramo da administração como consultora de empresas. Mas, até hoje, aplica no seu dia a dia os aprendizados do estudo. "É um assunto importante e que ainda é um tabu, porque lida com morte, afastamento. O presidente, fundador, que está na gestão do negócio, não quer falar sobre o dia que vai precisar se afastar", pontua Elisa.
Além de ser um assunto pouco explorado, outro motivo explica a falta de mulheres na sucessão familiar. Se há a possibilidade de um filho, sobrinho ou irmão assumir a empresa, essa será sempre a primeira opção. "A escolha é sempre pelo primogênito homem e, se não é homem, vai para o segundo filho, terceiro, até chegar no homem", expõe.
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Se a passagem de bastão ocorre entre pai e filha, por exemplo, na maioria dos casos, diz Elisa, é porque a mulher é a única opção disponível. "Mulheres não são cogitadas para serem sucessoras. Como não eram vistas como uma possibilidade, elas também não eram preparadas para isso", reflete. Nesses casos, inevitavelmente, a sucessora vive dificuldades, além de precisar lidar com preconceitos acerca de ser uma mulher na liderança.
Para Elisa, a principal dica nesse processo é ter paciência. "Estamos inseridos nessa sociedade, é cultural. Não dá para mudar batendo perna. É preciso ter paciência, foco no que quer, onde quer chegar e como vai fazer para isso acontecer", diz. Sejam grandes ou pequenas empresas, se o processo de sucessão está no horizonte, Elisa ressalta a importância de um profissional que esteja encarregado somente disso. "Se fizer no amadorismo, a escolha também vai se dar de qualquer jeito, sem levar em conta a competência e as habilidades."