Apesar da eliminação precoce do Brasil na fase de grupos, a Copa do Mundo Feminina 2023 é um marco na história da modalidade. Mais de 450 mil pessoas estiveram nas arquibancadas para assistir à primeira rodada da competição. Nas telinhas, a Fifa estima que 2 bilhões de espectadores devem acompanhar o torneio.
Mas nem sempre foi assim. "Treinávamos duas vezes por semana, no período da noite, porque a maioria das meninas também trabalhava", lembra Duda Luizelli, ex-jogadora do Internacional e da seleção brasileira. A lei que proibia mulheres de jogarem futebol ficou em vigor de 1941 até 1979. Na época, Duda já batia bola nos corredores do prédio onde morava, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. "Quando comecei a caminhar, já me deram uma bola", brinca, rememorando os primeiros momentos no esporte.
O Inter também esteve presente na vida de Duda desde cedo. Na infância, ela era vizinha de Valdomiro, craque histórico do colorado e inspiração para a garota apostar na carreira nos gramados.
Aos 14 anos, ela ingressou na equipe profissional do Inter. Apesar da pouca idade, a estreia dela ocorreu naquele mesmo ano, na disputa de terceiro lugar do Campeonato Brasileiro de 1985. "Na primeira bola, a goleira deu um balão e dei um rabo de vaca nela. Fiz aquele gol que o Pelé não fez", diz Duda, sobre a bucha que desempatou a partida e consagrou o Inter como terceiro colocado daquela edição.
A ex-atleta também atuou por outros clubes. No início dos anos 1990, foi transferida para o futebol italiano. Quando voltou da temporada europeia, decidiu montar uma escolinha de futebol feminino.
"Tínhamos muitas meninas e precisávamos dar oportunidade para elas jogarem. Na primeira semana, montamos uma escolinha no Partenon Tênis Clube e juntamos 400 meninas numa quadra de futsal", recorda Duda. A empreendedora estima ter sido uma das primeiras - senão a primeira - a ter investido forte no segmento no Rio Grande do Sul.
Hoje, Duda Luizelli é gestora de projetos já consolidados, como a Escola da Duda e ABC da Bola com as Meninas. "Nem se compara ao que era antigamente. Hoje, as meninas são profissionais. Sempre lutamos por isso que está acontecendo: grandes clubes de futebol feminino, patrocínios e estádios lotados", destaca a ex-atleta.
Com cerca de 150 alunos e alunas, a Escola da Duda oferece aulas particulares de futebol para jovens de todas as idades. "Hoje, vemos as meninas pequenas, com seis, oito anos, querendo jogar bola. O mais legal de tudo é saber que, agora, elas têm onde praticar o esporte", entende Duda.
Da parte lúdica ao trabalho técnico e físico, as aulas acontecem na HD Sports Complex (rua Lauro Müller, nº 850) e na Prime Sports (avenida Cavalhada, nº 2421). As mensalidades partem de R$ 170.
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Para além da iniciativa paga, Duda investe em projetos sociais, como o ABC da Bola com as Meninas. As atividades são totalmente gratuitas: uniforme, agasalho, tênis, caneleira e até lanche são fornecidos às gurias.
O programa atende mais de 350 alunas em Porto Alegre, Barra do Ribeiro, Eldorado e Guaíba. "Damos oportunidade para as meninas se divertirem e fazerem aquilo que mais gostam", enfatiza Duda.
Um novo processo seletivo do ABC da Bola com as Meninas foi aberto nesta semana. São 60 vagas para garotas de Porto Alegre entre 10 e 17 anos. As beneficiárias deverão, obrigatoriamente, estar matriculadas na rede pública de ensino do município atendido. Mais informações e inscrições em lffsb.com.br.
"Temos que fomentar o futebol feminino nas escolas, fazer com que existam mais campeonatos", compreende Duda. Diversas craques, aliás, têm surgido a partir desse incentivo. Esse é o caso da zagueira Mônica, que fez parte da seleção durante a Copa do Mundo Feminina 2023. "O sentimento é fantástico. Ela é uma pessoa sensacional", orgulha-se a idealizadora dos projetos Escola da Duda e ABC da Bola com as Meninas.
Essa inspiração é o que mantém a empreendedora firme no ramo. Apesar das dificuldades sociais e físicas - como a falta de campos para a prática esportiva em Porto Alegre -, Duda planeja continuar investindo no futebol feminino. "Queremos ser um exemplo para o resto do Brasil", sonha a ex-atleta, que, em breve, deve anunciar um novo projeto no Rio de Janeiro.
As gurias gremistas
Como o Grêmio enxerga o futebol feminino
Mesmo enfrentando preconceito, falta de apoio e até mesmo anos de criminalização, o futebol feminino vem crescendo. O público nos estádios só aumenta e o número de telespectadores também não fica para trás. A transmissão da estreia brasileira na CazéTV bateu o recorde mundial de audiência simultânea em um jogo de futebol feminino no YouTube. Neste contexto de evolução de uma modalidade que por anos foi sucateada, o GeraçãoE conversou com representantes da dupla Grenal para entender como é a realidade do futebol feminino nos dois maiores clubes do Estado.
Em 1980, um ano após o término da proibição, o Grêmio foi o primeiro clube no Brasil a ter um departamento feminino. Assim como em muitos outros grandes clubes do País, o departamento foi descontinuado, mas voltou em 2017, quando a Confederação Brasileira de Futebol reformulou o futebol feminino.
A modalidade dentro do clube vem se estruturando ao longo dos últimos anos. Em 2017, o tricolor montou uma equipe às pressas para ter um representante gaúcho no Campeonato Brasileiro. No ano seguinte, jogou o equivalente à segunda divisão nacional da modalidade. Em 2019, retornou à elite do futebol nacional e, desde então se, mantém-se como uma das principais equipes do país.
Hoje, as gurias gremistas já contam com centro de treinamento próprio. O Vieirão, antiga sede do já extinto Cerâmica Atlético Clube, abriga o CT feminino, incluindo um departamento médico e academia feitos exclusivamente para as atletas. O CT exclusivo para o futebol feminino, criado em 2018, foi um divisor de águas para a modalidade dentro do tricolor gaúcho. É o que conta Álvaro Ramos, coordenador do departamento de futebol feminino do Grêmio. "Trouxe uma nova perspectiva para a modalidade. Com o CT, melhoramos a questão do departamento médico, aparelhagem física e material para as meninas, a quantidade de uniformes por ano, de competições que participamos e, até mesmo, o número de atletas no elenco. Realmente melhorou o desenvolvimento da modalidade internamente, em consoante com o mercado", explica Álvaro.
As categorias de base também passaram a receber mais atenção nessa nova fase. As meninas do Sub-20 treinam no mesmo espaço das profissionais. Do Sub-17 para baixo, treinam no CT do Cristal, na zona sul de Porto Alegre.
O orçamento do futebol feminino do Grêmio é separado do masculino. Segundo Álvaro, a orçamentação no futebol feminino, assim como no masculino, é feita antes do início da temporada, considerando os objetivos traçados para as equipes naquele ano. Sem citar valores, o coordenador explica que o orçamento de uma equipe de futebol engloba muito mais que os salários das atletas e garantiu que o valor investido pelo Grêmio está de acordo com as expectativas do clube para a modalidade. "A orçamentação para 2024 é de acordo com o que a modalidade exige e do que pensamos para o próximo ano", afirma.
Uma das dificuldades do Grêmio é a necessidade de investir em estrutura. Apesar dos avanços, o clube ainda acredita que precisa melhorar suas instalações e isso limita o investimento em atletas. "Queremos dar um outro passo na estrutura e tentar melhorar algumas outras condições, para que, no ano que vem, a possamos investir mais em atletas do que em estrutura", explica Álvaro.
As gurias coloradas
Como o Inter enxerga o futebol feminino
O departamento de futebol feminino do Inter foi criado em 1983, quatro anos após o término da proibição, mas, como aconteceu no Grêmio e em muitos outros clubes do País, sofria com descontinuidades. Em algumas gestões, o departamento retornava, mas nunca como um projeto duradouro. Foi assim até 2017, quando, com a supervisão da ex-atleta Duda Luizelli, o departamento foi reestruturado.
No início, o futebol feminino do Inter sofria com a falta de estrutura e limitação orçamentária. Por vezes, as atletas não tinham local próprio para treinar e os salários oferecidos eram bem abaixo do que são hoje em dia. A modalidade foi evoluindo com o passar do tempo, mas foi em 2020, com a reforma do estatuto do clube, que teve seu principal avanço.
"Com a mudança no estatuto, o departamento de futebol feminino, que era vinculado com a vice-presidência de relacionamento social, passou a ser vinculado com a vice-presidência de futebol. Isso realmente foi um marco muito grande para a modalidade no clube, já que ela passou a ter a mesma atenção, recursos e governança que o futebol masculino, tanto na base quanto no profissional", conta Leonardo Menezes, coordenador do futebol feminino no Internacional.
Outro ponto relevante para o avanço no futebol feminino no Inter foi a parceria com o Sesc Porto Alegre. Localizado na rua Protásio Alves, o local serve como a sede das gurias coloradas.
"O departamento passou a ter uma casa. A partir desse momento passamos a ter um espaço para realização dos jogos, para os treinamentos, para tratamentos médicos, para hospedagem e alimentação das atletas. Hoje, podemos dizer que o Internacional tem uma estrutura que não deixa nada a desejar para nenhum outro clube do Brasil no futebol feminino", ressalta Leonardo.
O Inter também tem um orçamento separado para o futebol feminino e masculino. Atualmente, o orçamento do time feminino colorado é de R$ 7,7 milhões, o que representa 1,75% do orçamento das despesas do clube. Apesar disso, de acordo com Leonardo, o valor ainda fica atrás dos clubes dos principais pólos do futebol feminino no País, como São Paulo e Rio de Janeiro. Uma das formas que o Internacional encontrou de contornar essa desvantagem orçamentária é investir nas categorias de base. Além de formar jogadoras de qualidade, o clube espera poder capitalizar com a venda de atletas para o exterior.
"Temos uma base campeã de todos os torneios que já disputou. Somos os atuais campeões brasileiros Sub-17 e bicampeões brasileiros Sub-20. Então, essa é uma forma que a gente encontra para lutar contra essa desvantagem financeira. A venda de atletas ainda está muito distante do mercado masculino, mas a tendência é que comece a acontecer cada vez mais. Inclusive, no ano passado, o Internacional realizou duas transações internacionais com atletas. Isso demonstra que a base é uma fonte importantíssima de receita para os clubes", explica o coordenador.
Apesar de todo o avanço da modalidade no País, Leonardo conta que grande parte dos clubes ainda não alcançou a autossuficiência financeira com seus departamentos de futebol feminino. Uma das causas apontadas por ele é a falta de repasse das cotas de televisão. Mesmo com um aumento significativo da audiência, o valor das transmissões televisivas ainda fica 100% com a CBF, que utiliza esse montante para cobrir os custos das competições nacionais.
Mesmo com todas as dificuldades, Leonardo garante que o futebol feminino é uma das prioridades do clube, e que o projeto colorado, que já tem colhido bons frutos nos últimos anos, tende a evoluir ainda mais.
"Digo que, hoje, é uma política institucional do clube o apoio, incentivo e o fomento ao futebol feminino", afirma.