Margeada por casas antigas, cafeterias, padarias, bares e pubs, a rua Coronel Fernando Machado é uma das vias mais atrativas de Porto Alegre. Um imóvel centenário em frente à escadaria João Manoel contrasta com as cores vibrantes dos degraus — é a Casa Mal Assombrada, que logo abre as portas para desenterrar o passado macabro que espreita sob o nome de "rua do Arvoredo".
O Porto Alegre Mal Assombrada, primeiro turismo macabro da capital gaúcha e o segundo do Brasil, explora, desde 2019, a história oculta da cidade. A iniciativa cocriada pelo músico André Neto e pela fotógrafa Martina Mombelli agora forma raízes na Casa Mal-Assombrada, na rua Cel. Fernando Machado, nº 513, oferecendo atividades culturais, livros temáticos e café.
Baseado nas lendas urbanas de Porto Alegre, o espaço não é literalmente mal-assombrado e não foi palco de nenhuma história macabra. No entanto, ele fica nas proximidades dos crimes da rua do Arvoredo. Diz a história que o assassino José Ramos, com a cumplicidade da esposa Catarina Palse, destinava as vítimas ao açougueiro Carlos Claussner, que vendia linguiças de carne humana à alta sociedade da época. Mas o casarão, na verdade, pertencia a uma chapeleira e mãe de Christina Balbão, grande nome da cena artística local. Ela foi uma das pioneiras nos projetos MARGS e uma das primeiras mulheres a lecionar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
"A casa é de 1915 e traz um ar macabro, mas tem uma história artística por trás", conta Martina. "O tema é baseado nas lendas de Porto Alegre. A livraria vai ser temática, com literatura fantástica e contos daqui. Mas também vai ser um espaço cultural, onde autores independentes vão poder vir aqui lançar seus livros. Vai ter pocket shows, saraus literários, conversas, debates e mais", enumera.
Há quem se interesse pelo macabro pelo aspecto bizarro, mas André acredita que as lendas urbanas dizem muito sobre a cultura e a história da Capital, e a Casa Mal Assombrada surge nesse sentido. A ideia é ter programações a cada mês para destrinchar cada conto, trazer reflexões e desmistificá-los.
"É história e estória, o místico e o mítico. Nas caminhadas, sempre peço para as pessoas questionarem tudo. Cada um tem uma versão das histórias; não tem uma verdade única. A Catarina Palse, por exemplo, relatou os crimes em detalhes. Mas a versão que nós temos é de que ela era louca e inventou tudo isso. Diante disso, entendemos como a nossa história é patriarcal", pondera.
O imóvel tem dois andares, um terraço, um porão e um jardim com um galpão – e cada canto plenamente aproveitado pelo negócio. "A fachada é original. No primeiro andar, ficava o comércio da chapeleira. Atrás, era o atelier e, em cima, onde ela morava. Nós vamos liberar tudo, do terraço ao galpão", diz André.
Ele adianta que o espaço inferior será destinado à cafeteria, com livros e espaços para leitura na entrada e foco em coworking na parte de trás. O segundo andar é destinado às atividades culturais. O galpão, que ali ficou após uma edição da Bienal, deve abrigar exposições e galerias de arte rotativas.
Quanto ao cardápio, além do café, serão servidos salgados, doces, chás e bebidas, com opções para intolerantes à lactose e glúten, vegetarianas e veganas, entre outras. André, inclusive, foi um dos vencedores do Batalha dos Cozinheiros, reality show apresentado pelo "Cake Boss" Buddy Valastro, em 2016. Apesar do conhecimento gastronômico, a intenção de André é deixar a cozinha em outras mãos e apostar nos pequenos produtores locais.
"Eu quero algo bem caseiro e colaborativo — a Dona Rita, que faz um bolo de fubá gostoso. O seu Hélio, que faz pão integral caseiro. Minha mãe, por exemplo, faz bolos sem glúten porque tem intolerância. Quero privilegiar e dar protagonismo para essas pessoas. Vou usar minha 'expertise' para degustar e curtir”, conta.
A Casa Mal Assombrada ainda está em desenvolvimento. Martina e André bancam a iniciativa com o próprio bolso, mas também contam com o forte apoio da comunidade, tanto em doações (monetárias e de mobília) quanto para os trabalhos manuais.
"Às vezes, dá vontade de aparecer um investidor grande para bancar tudo. Mas aí se perde a autonomia sobre as decisões e uma coisa orgânica, da comunidade participando ativamente e construindo junto. Essa é a ideia — saber que nós estamos decidindo e dando cada passo", relata André.
O desejo de Martina e André é abrir as portas o quanto antes. O processo de soft opening começa a partir de setembro, mas a inauguração oficial está prevista para outubro.
O Porto Alegre Mal Assombrada surgiu após uma viagem de André à Segovia, na Espanha, onde participou de um tour macabro. Fascinado pelo oculto, o cantor da banda Lítera importou a ideia e a executou com Martina parte da comunicação da banda.
"É uma linha muito tênue. Uma coisa é o terror — uma coisa que choca, horrorosa. Outra coisa é o assombrado, que é um aspecto espiritual, vitoriano, da alma. É quase romântico. A história do Drácula, por exemplo, é uma história de amor com um impasse filosófico – de ter a vida eterna e invejar o ser humano, que vive intensamente, porque morre. É o sofrimento sobre a complexidade da existência, que é algo tão humano. Esse é o ponto chave das caminhadas e da casa", reflete André.