O debate sobre a saúde dos jogadores de futebol se faz cada vez mais presente ao longo dos últimos anos. O caso mais recente é o do zagueiro uruguaio Juan Izquierdo, que faleceu no dia 27 de agosto, cinco dias após sofrer uma arritmia cardíaca no jogo entre Nacional e São Paulo. Para que seja garantida, a integridade mental ou física dos atletas submetidos ao mais alto nível do esporte exige cuidados especiais por parte dos clubes.
É com esse intuito que um estudo realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) mapeou a saúde no coração dos atletas no Brasil. A pesquisa é fruto da tese de doutorado do educador físico Felipe Ferrari, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). No total, foram analisados 6.125 exames realizados entre 2002 e 2023, de profissionais entre os 15 e 35 anos, disponibilizados por 82 clubes de 18 estados e 56 cidades diferentes.
Trata-se do primeiro movimento em solo brasileiro de análise aprofundada sobre uma das principais causas de morte dentro das quatro linhas. A tese se chama “Avaliação do Eletrocardiograma do Jogador de Futebol Brasileiro: Um Estudo Observacional Multicêntrico”, e teve artigo publicado no British Journal of Sports Medicine – prestigiada revista britânica de medicina do esporte.
Ainda que o futebol nacional esteja recheado de estrangeiros nas principais divisões do País, o estudo abrange apenas jogadores brasileiros, das séries A, B, C e D. Dentre os mais de seis mil atletas cujo os exames foram analisados, 180 apresentaram eletrocardiogramas (ECGs) anormais – número equivale a 3% do total. Destes, 75 apresentaram inversão da onda T ínfero-lateral, que indica a possibilidade de doenças cardíacas. No recorte dos 180 nomes com ECGs anormais, todos tiveram seus ecocardiogramas transtorácicos (ECOs) analisados, sendo normal em aproximadamente 98% dos casos.
Ferrari destaca que seis jogadores foram diagnosticados com alguma doença cardíaca através da ressonância magnética. Quatro deles, no entanto, apresentaram ECOs normais. “Nosso estudo sugere que, na vigência de uma inversão da onda T no eletrocardiograma de jogadores, a ressonância deve ser o método de escolha para a avaliação dos atletas. Um ECO normal não descarta com certeza a presença de alguma doença cardíaca potencialmente maligna”, explica o autor da tese. “Em alguns clubes falávamos que o padrão ouro é a ressonância, mas os clubes menores não conseguem fazer o exame porque ele é muito caro. Além disso, alguns profissionais desconheciam a importância da ressonância. Por isso, o estudo também visa contribuir com a educação”, completa.
Estudo aborda o fator da cor parda dos atletas
Outro ponto de suma importância no estudo é a análise por raça. Em um país miscigenado como o Brasil, tal separação facilita o entendimento de alguns padrões. Na literatura internacional, não há nenhuma menção à etnia parda na análise em questão. Com o avanço do estudo, chegou-se à conclusão de que brancos e pardos possuem dados semelhantes, enquanto os negros são mais suscetíveis à inversão da onda T. A literatura, inclusive, coloca a negritude como um fator de risco para a maior incidência de morte súbita, assim como homens têm mais chances que mulheres.
Ademais, doenças hereditárias e históricos de morte súbita na família são alguns dos principais motivos para cautela e acompanhamento frequente em atletas de alto nível. “A principal causa de morte súbita em jogadores jovens (abaixo dos 35 anos de acordo com a literatura internacional) é a cardiomiopatia hipertrófica, uma doença genética. O atleta com histórico familiar de morte súbita, mesmo com o eletrocardiograma normal, é recomendado que siga na investigação para se descartar alguma doença que o exame de imagem possa observar”, afirma Ferrari.
Peça crucial nessa engrenagem, os clubes já têm a batida de exames nos jogadores como rotina no início da temporada. O segundo autor do estudo e médico cardiologista do Grêmio, Anderson Donelli, explica como é feito o procedimento: “pelas diretrizes europeia e norte-americana, a recomendação inicial é uma consulta clínica e um eletrocardiograma. A partir disso, se fazem outros exames direcionados. Só que no futebol, a presidência da Fifa e das federações são um pouco mais agressivas. Geralmente é feito eletro e ecocardiograma, avaliando o coração. Além do teste de exercício, seja o ergométrico normal, na esteira, ou o teste pulmonar, que eu faço no Grêmio, com a máscara que mede o consumo de oxigênio”. Os exames são realizados desde as categorias de base nos principais clubes do País e, ainda, nas transferências de jogadores em meio à temporada.
Clubes reforçam os cuidados desde as categorias de base
No caso dos atletas em formação, o cuidado é ainda mais especial quando eles chegam ao clube. O chefe do departamento de saúde do Inter, Marcos Marczwski, alerta para a importância da triagem nos juniores. “Muitos garotos vem de um clube financeiramente mais humilde, que, às vezes, não tem acesso ou nunca fez um exame cardiológico. Por isso tem que fazer uma uma avaliação ainda mais criteriosa, porque pega sem avaliações anteriores e que nem sempre vão ter sintomas. Em vários casos o primeiro sintoma é uma parada cardíaca”.
Hoje no profissional, Marczwski tem anos de experiência na base e destaca que, durante o período, precisou vetar a chegada de um jovem atleta por conta de anomalias nos exames. O primeiro apontamento veio através da ECO e, posteriormente, confirmado pela ressonância magnética.
A próxima etapa do estudo já está em andamento, com foco nas mulheres. Até o momento, são cerca de mil atletas do sexo feminino com os exames avaliados de 26 clubes de todas as cinco regiões do País. A meta final é de 2 mil atletas. O principal dado, até o momento, é que uma jogadora profissional apresentou inversão da onda T ínfero-lateral e teve doença cardíaca apontada pela ressonância magnética. A expectativa, então, é que ela precise se aposentar.