Patrícia Lima, especial para o JC
Nada combina menos com a ideia de elaborar vinhos do que o fervilhar da cidade grande, a correria dos carros, os prédios e o asfalto, certo? Nem tanto. Já chegou a Porto Alegre uma tendência que se espalha por outras metrópoles do mundo e que está conquistando os corações e os gostos dos amantes do vinho: as vinícolas urbanas. Elas estão embrenhadas nos bairros mais movimentados, escondidas sob paredes de pedra, nas garagens, por trás dos muros, nas mentes de vinhateiros ousados. Dos seus tanques e barricas saem bebidas que provam que Porto Alegre, afinal, também pode ser a capital do vinho.
O conceito de vinícola urbana não é novo. Nos Estados Unidos sempre foi comum que se elaborasse vinho nas casas de cidades como Nova York e Los Angeles antes da Lei Seca, que atormentou os americanos no começo do século 20. As uvas vinham de parreirais cultivados nas cercanias das cidades e eram vinificadas nos porões das casas, de onde saía vinho para o consumo das famílias. As novas vinícolas urbanas surgiram em meados dos anos 1980, na Califórnia, quando um sujeito chamado Steve Edmunds resolveu trazer uvas para o coração da cidade de Berkeley e vinifica-las. A Edmunds St John existe até hoje e tem um portfólio atual de 13 rótulos.
Conceitualmente, uma vinícola é considerada urbana quando ela está longe do vinhedo, ou seja, o produtor coleta as uvas nas propriedades rurais e as transporta para as áreas centrais das cidades, onde fica a estrutura para a vinificação. O processo de elaboração da bebida é rigorosamente o mesmo: as uvas são prensadas, o suco extraído delas fermenta com ou sem as cascas, o líquido repousa em tanques ou barricas de madeira, a bebida pronta é engarrafada, rotulada e pronto. Habemus vinho. A diferença é que o produtor precisou ir às propriedades rurais para selecionar as uvas e, depois, transportá-las até o núcleo urbano que abriga a vinícola.
É exatamente o que faz o engenheiro Eduardo Gastaldo desde 2017, quando desceu a serra gaúcha em uma velha caminhonete transportando um tanque no qual armazenou 500 litros de mosto de uvas tintas. Ao chegar em Porto Alegre com seu primeiro lote de Cabernet Sauvignon, percebeu que o processo de fermentação já havia começado ali mesmo, na caçamba do veículo. Pouco tempo depois engarrafou pouco mais de 300 garrafas do João Pedro, seu primeiro vinho, batizado assim para homenagear o filho mais velho. Esse foi o primeiro produto da Ruiz Gastaldo, a primeira vinícola urbana clássica de Porto Alegre, localizada em uma rua tranquila do bairro Chácara das Pedras. "Aquele vinho ficou para os amigos e para a família, foi o passo inicial. Ficou surpreendentemente bom, considerando que foi minha primeira experiência", revela.
Incentivado pelo sogro argentino apreciador de vinhos, Gastaldo mal pôde esperar pela próxima safra. Ao menor sinal de um tempo livre, corria para as regiões produtoras de uva para planejar a compra da matéria-prima. A velha caminhonete e o tanque improvisado foram substituídos por um veículo refrigerado contratado especialmente para trazer os cachos a Porto Alegre. O que era uma espécie de brincadeira logo passou a ocupar os pensamentos e sonhos do engenheiro que agora só pensava em fazer vinhos. O registro veio em 2019, ano em que abriu oficialmente a Ruiz Gastaldo Vinícola Urbana, batizada assim para unir os nomes das famílias de Eduardo e da esposa.
Há um ano, o casal reformou parte da casa para abrigar a estrutura de vinificação, que conta com tanques para fermentação e estabilização e até barricas de carvalho, além de área para armazenamento de garrafas e envelhecimento. O empreendimento passou a contar também com uma pequena área receptiva, onde ocorrem as visitas e degustações sob agendamento. "Aqui recebemos cada vez mais pessoas curiosas para ver como funciona uma vinícola urbana. Elas ficam muito surpresas ao saber que se faz vinho no meio da cidade. Mas o que importa, realmente, é gostar da bebida. Porque o vinho tem que ser bom, tem que despertar o interesse, os sentidos. Não importa onde ele é feito", ressalta Gastaldo. Em suas explicações, ele gosta de lembrar que seus antepassados também faziam vinho na área central de Porto Alegre, nas proximidades da Independência.
Em 2021, a Ruiz Gastaldo produziu 4,2 mil garrafas na Chácara das Pedras. Em 2022, um discreto incremento: 4,5 mil garrafas. O vinhateiro afirma que a estrutura construída é capaz de suportar uma produção de 15 mil garrafas por ano, mas esse não é o objetivo. "Queremos crescer lentamente, para assegurar a qualidade do vinho e a proximidade que temos com os apreciadores", garante.
Nos rótulos dos vinhos aparecem paisagens e nomes de Porto Alegre. O pôr-do-sol, o Parque da Redenção e alguns prédios históricos estampam os rótulos e servem de inspiração para os seus nomes, assim como os filhos do casal - além do cabernet sauvignon João Pedro, a Luísa batiza um sauvignon blanc que é o xodó da casa, e o Matheus, filho do meio, empresta seu nome a um cabernet franc.
Tendência mundial se adapta à tradição
Adolfo Lona, nome bastante conhecido do mercado, há um ano, produz no Bom Fim
LUIZA PRADO/JC/Luiza Prado/JCO nome dele se confunde com a história do espumante brasileiro. Nos anos 1970, o enólogo argentino Adolfo Lona chegou à serra gaúcha para elaborar vinhos na prestigiada marca Baron de Lantier, onde permaneceu por mais de 30 anos e que hoje não existe mais. Quando deixou a de Lantier, em 2004, criou a sua própria marca de espumantes, que leva o seu nome, e desde então produz uvas em consórcio com variados produtores e vinifica sua produção em estruturas de vinícolas maiores. Tornou-se uma referência quando o assunto é vinho feito no Brasil e seus produtos têm reconhecida qualidade.
Há um ano, tomou coragem para dar uma guinada no negócio. Para estar mais perto das filhas e também do mercado consumidor dos seus produtos, decidiu trazer a produção dos seus melhores espumantes, aqueles elaborados pelo método champenoise, para o coração do bairro Bom Fim, na movimentada rua Vasco da Gama, em Porto Alegre. Por trás de uma porta de vidro e de um enxuto espaço para o varejo e para as degustações, estendem-se os pupitres (espécie de estante onde a garrafa de espumante fica inclinada), as áreas de envelhecimento e os tanques. O velho pioneiro da moderna enologia brasileira agora também faz parte da tendência. Adolfo Lona é, enfim, uma vinícola urbana.
As especificidades do negócio de Lona escapam um pouco do conceito clássico de vinícola urbana, já que ele não traz para a Capital as uvas, mas o vinho base para os espumantes já pronto. Os tanques posicionados onde antes ficava um pequeno jardim de inverno armazenam o vinho base e, dali, ocorrem todas as outras etapas, até que se chegue ao processo de amadurecimento, nas garrafas. "Não planejei ser uma vinícola urbana, apenas aconteceu. Estar aqui faz toda a diferença, pois estamos próximos dos clientes. As entregas ocorrem rapidamente, o fluxo melhorou muito", comenta Lona. Atualmente, são produzidos cerca de 5 mil litros de espumante na estrutura do Bom Fim, de onde as garrafas saem prontas, rotuladas, com rolha e gaiola, direto para o consumidor. Lona pretende aumentar a produção para até 30 mil garrafas por ano no local.
Os apreciadores que correm para conhecer a pequena vinícola do Bom Fim são mais numerosos a cada dia. Sempre com agendamento prévio, o enólogo recebe pequenos grupos e apresenta produtos, conduz degustações e compartilha suas histórias e experiências no mundo do vinho. As pequenas reuniões ocorrem em meio aos pupitres e às cerca de 14 mil garrafas de espumante e vinho tinto, armazenadas no espaço. Sim, Lona também envelhece em Porto Alegre um de seus vinhos tintos. Para ele, a possibilidade de aproximar as pessoas do universo vitivinícola, mostrando a elas o processo de fabricação, é um meio de divulgar a cultura do vinho, conquistando mais adeptos à bebida. "Pelo que vejo aqui, Porto Alegre ainda vai ter muita vinícola urbana. Todo dia mais pessoas se interessam pelo projeto, querem conhecer e aprender mais sobre o vinho. O caminho está aberto", salienta.
Safra surge de frente para o Guaíba
Dentista Carlo de Leo prepara a primeira linha comercial da sua Cave Poseidon, vinícola urbana montada em um belo casarão de 1939 reformado no bairro Vila Assunção, na Zona Sul de Porto Alegre
/Patrícia Lima/Especial/JCFazer vinho em casa, no meio da cidade, há muito deixou de ser um fetiche para se transformar em negócio. Nas grandes cidades ao redor do mundo já pipocam projetos em galpões, garagens ou em pequenas estruturas comerciais - como é o caso de Adolfo Lona, que instalou sua vinícola em um local que fora uma cervejaria e depois um salão de cabelereiro. Para a jornalista Lúcia Porto, sócia do projeto Brasil de Vinhos, plataforma digital que tem cadastradas cerca de 300 vinícolas e quase 200 lojistas em todo o Brasil, o crescimento dessa tendência é visível. Surgem com cada vez mais frequência projetos de vinificação em cidades, seja grandes regiões metropolitanas, como Porto Alegre e São Paulo, ou em municípios menores. "Há um enorme potencial neste tipo de negócio: além da demanda natural da cidade grande, as vinícolas urbanas aproximam o cliente do produto final e facilitam o acesso direto ao vinho, já que as pessoas não precisam ir até uma região vitivinícola para conhecer a produção. E pelo que temos degustado por aí, temos certeza de que essas vinícolas vão nos proporcionar belos vinhos", afirma Lúcia.
A tendência se confirma em outro canto de Porto Alegre, no alto do bairro Vila Assunção, na Zona Sul. Na garagem do casarão de uma rua tranquila e sombreada, o dentista Carlo de Leo prepara a primeira safra comercial da sua Cave Poseidon, projeto idealizado em 2020 e que teve a primeira safra experimental no ano seguinte. Em parceria com alguns amigos, ele tem feito os investimentos necessários para montar, na garagem de casa, a pequena vinícola de onde sairão, em 2023, 3,5 mil garrafas dos quatro rótulos da marca: um cabernet franc sem passagem por madeira, um franc com estágio em barrica de carvalho, um varietal de cabernet sauvignon e um blend elaborado com uvas merlot, cabernet franc e cabernet sauvignon.
Para elaborar suas bebidas, de Leo está sempre em busca de fornecedores de uva que atendam às exigências de qualidade. Ao longo de 2022 esteve em contato com produtores de variadas regiões, como Pinheiro Machado, Bagé e Encruzilhada do Sul, em busca de uvas que atinjam o grau perfeito de maturação e com grande sanidade. "A busca da matéria-prima é fundamental para a nossa proposta, que é elaborar vinhos com pouca interferência, com menos maquiagem, que reflitam o vinhedo, o campo. É um projeto purista", revela.
O vinho ainda ocupa as horas vagas do dentista, que segue a rotina com seus pacientes, no consultório. Os amigos que o acompanham nessa empreitada também dedicam as horas livres ao projeto. No começo, a ideia era fazer vinho por diversão e paixão. Mas transformar-se em uma marca comercial foi o caminho natural para o hobby que toma cada vez mais o tempo de todos.
"Aprendi com outros vinhateiros a fazer vinho por que sempre gostei muito. Agora, entramos em uma etapa comercial, que deve crescer organicamente, sem pressa, para que seja divertido e gratificante para todos", afirma de Leo.
O casarão de 1939 reformado por Carlo e pela esposa em cuja garagem fica a Cave Poseidon ainda não conta com estrutura receptiva. Isso significa que só os amigos podem conhecer de onde sai o vinho, pelo menos por enquanto.
Vinhedos ao lado de Porto Alegre
A Quinta Barroca da Tília, em Águas Claras, produz cerca de 25 mil quilos de uva
/Quinta Barroca da Tília/Divulgação/JCNem só de vinícolas urbanas vive a cena vitivinícola de Porto Alegre. Bem pertinho da cidade, a poucos quilômetros da área central, é possível encontrar bodegas tradicionais, que cultivam seus vinhedos e elaboram seus vinhos do mesmo jeito que qualquer outra, nas mais prestigiadas regiões do mundo e do Brasil. É o caso da Quinta Barroca da Tília, localizada em Águas Claras, Viamão. Idealizada pelo agrônomo Eduardo Giovaninni, que foi professor dos principais cursos de enologia do Estado e que atuou por décadas em vinícolas tradicionais, os vinhedos eram um sonho antigo. Depois de procurar terras em regiões variadas, gostou da possibilidade de plantar uvas viníferas em Viamão. O terreno é arenoso e pobre, mas, segundo Giovaninni, serve ao cultivo de videiras desde o século 18.
Há 12 anos, Giovaninni e a família experimentam o terroir para descobrir as variedades que melhor se adaptam ao solo. Mais de 20 cepas de vitis vinífera crescem no local. "Uma meia dúzia se deu super bem, temos resultados ótimos em alguns vinhos. Com outras obtemos vinhos medianos. E outra meia dúzia só deu porcaria", diverte-se o vinhateiro. Um dos maiores destaques é a nebbiolo, uva de origem italiana que é a base de um dos vinhos mais prestigiados do mundo, o Barolo, feito na região do Piemonte. A nebbiolo de Viamão já venceu um concurso como a melhor do Brasil e segue surpreendendo a cada safra. Outras variedades tintas como mouvèdre, marselan e alicante também têm se destacado. Entre as brancas, Giovaninni se derrete pelas uvas alvarinho, de origem portuguesa, e vermentino, outra italiana.
Dos quatro hectares de vinhedos plantados na propriedade saem anualmente, em média, 25 mil quilos de uva, o que resulta em mais ou menos 20 mil litros de vinho. Giovaninni e a esposa vivem em cima da vinícola e nunca prepararam uma estrutura receptiva para acolher os amantes do vinho que desejam visita-los. Depois da pandemia, porém, o casal tem visto o interesse do público crescer exponencialmente pelos vinhos e pelo local em que são feitos. O fato da vinícola estar pertinho de Porto Alegre aumenta ainda mais a procura. "Não temos salas de degustação, mas sempre recebemos quem deseja nos visitar. Sou eu mesmo que acolho os visitantes, junto com a minha esposa. E não tem programação especial. O pessoal chega aqui, a gente fala de vinho, provamos algumas coisas. E é isso", explica Giovaninni, que também alerta a necessidade de reservar um horário.
Vinhedos e produção de vinhos não são novidade em Porto Alegre e região. Relatos históricos revelam que ainda se cultivava uva para vinho em variadas regiões da cidade no começo do século 20. Bem mais recentemente, um projeto pioneiro manteve a Zona Sul de Porto Alegre como o polo vitivinícola, com os vinhedos cultivados na Villa Bari, vinícola localizada na Estrada do Belém Velho, na Vila Nova. Durante anos, se fez vinho de boa qualidade por ali, sob o comando de Luiz Barichello. Há algumas safras a vinificação foi interrompida, mas os vinhedos seguem produtivos, fornecendo uvas para variados vinhateiros.