Em uma entrevista concedida ao Boletim Informativo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em 1987, a artista Maria Lídia Magliani (1946-2012) diz: "Costumo ignorar as fronteiras. (...) Sou natural de todas as estrelas que posso ver e minha curiosidade é ver o outro lado delas. () O lugar sou eu em qualquer parte. É em mim que as coisas acontecem ou esquecem de acontecer." Talvez, em razão desta postura incapturável, seja não apenas difícil, mas arriscado delimitar uma figura como ela. Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora, figurinista, cenógrafa, atriz, diagramadora: Magliani é todas e nenhuma.
Considerada um dos maiores nomes das artes visuais do Rio Grande do Sul - e para muitos, do Brasil - Magliani é uma unanimidade entre os profissionais da área. Filiada a uma estética neo-expressionista, seus quadros exibem figuras humanas de proporções volumosas - grotescas, por vezes - carregadas de cores fortes, escuras. Imagens que transmitem a solidão, a complexidade das relações, a opressão política, a vulnerabilidade da condição humana. Em muitos desses trabalhos, estão mulheres deformadas, atravessadas por objetos, atadas por roupas íntimas e cordas.
O recorte de viés feminista identificado nas obras de Magliani foi uma das razões que chamou a atenção da galerista Tina Zappoli que, desde a década de 1970, vende quadros da artista, com quem afinou uma amizade no decorrer dos anos.
"Quando eu a conheci, Magliani trabalhava há pouco tempo a nível profissional, e ela já tinha uma marca, uma linguagem própria. O seu trabalho era reconhecível, não precisava assinar." Tina lembra do impacto que sentiu ao se deparar com uma obra da pelotense pela primeira vez: "Levei um choque. Na época, eu tinha 17 anos, estava começando a minha vida, quando me deparo com aquelas figuras roxas e verdes. Me arrebatou".
São muitos os fãs da linguagem usada por Magliani, a pegada expressionista, a deformação dos personagens, a pintura critica, aponta Tina. “Gestos da solidão, Na madrugada insone: era tudo autobiográfico. Tinha gente que não queria arte para colocar em cima do sofá ou no quarto de criança, como a artista advertia, queria Arte, e isso ela oferecia”.
Nascida em Pelotas, em 25 de janeiro de 1946, filha de Antonio Magliani e Eugenia dos Santos Magliani, Maria Lídia se muda com a família para Porto Alegre em 1950, no bairro Sarandi. Além dela, dois irmãos mais novos: Maria da Graça Magliani e Manuel Antonio Magliani.
Em 1963, Magliani ingressa no curso de Artes Plásticas no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De origem humilde, monta as suas primeiras telas de pintura com sacos de açúcar e de farinha, recebendo a ajuda do pai. Era contra deduções precipitadas a episódios semelhantes a esse - as quais corriam o risco de restringi-la a uma narrativa - que a artista devolvia respostas como a que abre a reportagem. Suas vivências não podem ser apagadas, porém, Magliani é mais rápida e tenta escapar da rede mais uma vez.
A pelotense se destaca desde os primeiros anos de faculdade. Participa do Salão de Alunos do Instituto de Artes da Ufrgs, em 1965, e ganha Menção Honrosa. No ano seguinte, promove a sua primeira exposição individual na Galeria Espaço, tendo o pintor e professor Ado Malagoli como grande incentivador. Magliani se forma em 1966 em Pintura (Artes Plásticas). É uma das primeiras mulheres negras a se formar pelo Instituto de Artes. Quem abre o caminho é a porto-alegrense Beatriz Araújo Moreira da Silva, em 1964. Entretanto, diferente da primeira, é Magliani quem se dedica a vida inteira à carreira artística.
O desenho e a palavra
Maria Lídia Magliani, em foto de Luiz Carlos Felizardo
LUIZ CARLOS FELIZARDO/DIVULGAÇÃO/JC
Magliani ingressa em 1967 na pós-graduação em pintura com Ado Malagoli (1906-1994), e na formação pedagógica pela Faculdade de Filosofia, as duas na Ufrgs. Foi neste período que a pelotense conhece aquele que seria um dos seus amigos mais próximos, o escritor Caio Fernando Abreu. Em entrevistas, Magliani conta que acreditava ter sido uma das primeiras pessoas a ler textos de Caio, que os mostrava e pedia sugestões a ela.
Pessoas próximas contam que a presença da literatura era marcante em sua rotina, o que ficava evidente no conteúdo das cartas que escrevia, e em sua obra. Além dos poemas presentes em alguns de seus quadros, os próprios títulos dados a eles carregavam forte lirismo, como por exemplo, o óleo sobre tela A inútil impureza nascida de dois silêncios (1967). O artista e colega de trabalho de Magliani, Julio Castro comenta a voracidade de leitura da amiga. “Era uma pessoa muito culta, capaz de ler até bula de remédio nas noites de insônia, caso lhe faltassem opções”, comenta.
Outra amiga, antiga colega de Artes Plásticas de Magliani, Laís Marques, lembra com afeto do período compartilhado com a pelotense. Conta que, desde o início na faculdade, Magliani revelava talento e originalidade, tanto que foi incentivada e apoiada por colegas e professores. “Pintávamos, conversávamos, trocávamos poesias e reflexões. Inventávamos palavras, algumas das quais, criadas por ela, foram parar nas pinturas. Um lirismo poético e original incorporado às texturas e veladuras com que ela compunha seus personagens sensíveis e solitários”, recorda Laís. “Éramos jovens, podíamos tudo e qualquer coisa. Música, teatro, literatura, dança, pintura, escultura, queríamos ao mesmo tempo tudo, misturados, ou não”.
Em 1971, o jovem Luiz Carlos Felizardo era violonista, estudante de arquitetura e começava a fotografar. Participava de um grupo de amigos – incluindo Magliani e Laís Marques - interessados em arte em geral. Estavam centralizados na figura de Madeleine Rouffier, regente do Coral da Faculdade de Filosofia da Ufrgs. Magliani não cantava nem tocava, mas era uma apreciadora. Em certa ocasião, Felizardo decidiu fazer um ensaio fotográfico para investigar “as alterações que alguns procedimentos provocavam no grão e na cor das fotografias preto e branco”. Para isso, convidou Magliani para servir de modelo.
O trabalho foi realizado no antigo Colégio Anchieta, na rua Duque de Caxias, já então abandonado. Almejava o fotógrafo captar a luz, que o instigava pela existência de grandes janelas e as paredes velhas do local. Magliani aceitou. “Pensei nela como desenho, não pelo fato de ser artista, mas sim por ser uma figura magra, expressiva, longilínea, negra”. Hoje, olhando para as fotografias, Felizardo diz sentir saudade daqueles tempos e de Magliani: “Não penso nas fotos como um ensaio, mas como um trabalho em separado, que têm, cada um, vida própria”.
Presença ramificada nos acervos
Núcleo Magliani catalogou 356 itens da artista, entre pinturas, desenhos, gravuras e estudos
FABIO DEL RE/VIVA FOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Dando continuidade à sua formação, a pintora Maria Lídia Magliani faz o curso de litogravura no Atelier Livre da prefeitura de Porto Alegre, em 1969. A participação dos seus trabalhos em eventos de arte é constante e numerosa. Um levantamento feito pela historiadora da arte e especialista em gestão cultural, Luanda Dalmazo, em seu trabalho de conclusão em História da Arte (Ufrgs) - Maria Lídia Magliani: uma trajetória possível - contabiliza que, entre individuais e coletivas, o número de exposições ao longo da carreira de Magliani ultrapassa os 100.
As obras de Magliani contam com uma significativa representatividade em museus e instituições públicas e privadas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo, sem contar as coleções particulares, aponta Luanda em seu trabalho.
O material, escrito em 2018, é o primeiro do meio acadêmico exclusivamente dedicado a Magliani, servindo de referência para demais pesquisas e inclusive para esta reportagem.
O professor do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação da Ufrgs, Paulo Gomes, contextualiza que os salões de arte que ocorriam entre as décadas de 1960 e 1980, em São, Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, por exemplo, mantinham projetos de aquisição. Isso permitia que os artistas tivessem representatividade de seus acervos.
Embora o trânsito do trabalho de Magliani seja considerável, Gomes não o considera exatamente justo. Na perspectiva dele, do ponto de vista local, isso não ocorre. Lembra de instituições onde há obras de Magliani - como no Margs, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Fundação Vera Chaves Barcellos - porém, questiona se na medida adequada à importância e ao talento da artista.
O artista visual Julio Castro, com quem Magliani compartilhou o atelier nos últimos anos de vida, no Estúdio Dezenove, no Rio de Janeiro, fala que ela sempre lidou com o mercado, e considera natural a institucionalização do trabalho da pelotense, já que, desde muito cedo ela fazia exposições em galerias e espaços públicos, principalmente no Rio Grande do Sul. "Ela sempre produziu muito e vivia do seu trabalho. A partir dos anos 1990 houve uma mudança no cenário e a arte de figuração expressionista, como era o seu caso, perdeu espaço para outras obras de caráter minimalista ou não figurativo". Mesmo assim, ressalta Julio, a artista seguiu adiante.
Maria Lídia Magliani morre em 2012, no Rio de Janeiro, vítima de uma parada cardíaca. Um ano depois, o Estúdio Dezenove cria o Núcleo Magliani, espaço dedicado ao acervo e à documentação da obra da pelotense. Ao saber da falta de condições da família de armazenar e preservar seus trabalhos, o coordenador da iniciativa, Julio Castro, procura os herdeiros e propõe a ideia. O Núcleo, portanto, passa a servir como um braço do Estúdio Dezenove, levando adiante a pesquisa, a preservação do arquivo físico e a formação de um banco de dados para ajudar a garantir o legado de Magliani.
Castro conta que, além do material de referência, o Núcleo Magliani catalogou 356 itens entre pinturas, desenhos, gravuras e estudos, em sua maioria obras em papel. Como um meio de fazer circular a obra, a liberação de uso de imagem foi uma das demandas, sendo o Núcleo o facilitador para as autorizações, permissões formais necessárias para a existência de publicações e projetos.
A obra nunca termina
Magliani participou de mais de 100 exposições ao longo da carreira
/CARLOS MAGNO/DIVULGAÇÃO/JC
A necessidade de Magliani se expressar artisticamente é traduzida nas diversas atividades às quais ela se dedicou em diferentes momentos de sua trajetória. A artista transbordava. Na década de 1960, o teatro entra na sua vida, através de ilustrações para capas de programações. Em seguida, surge a oportunidade de passar para a cenografia, chegando na atuação, entre 1970 e 1979. Fez parte de peças como La Celestina (1970), de Fernando Rojas, e As criadas (1969), de Jean Genet. Em O negrinho do pastoreio (1970), de Delmar Mancuso, foi protagonista. A pintora fazia parte do Grupo Teatral Província. Em parceria com Francisco Aron, no ano de 1969, cria o Espaço de Arte, no corredor do Teatro Aldeia II, onde expôs pinturas.
Outra atividade, a de ilustradora, levou o nome da artista à imprensa, entre os veículos, a Revista Tição (1978-1982), publicação alternativa de Porto Alegre voltada a pautas do ativismo negro. A jornalista e museóloga, Jeanice Dias Ramos, que integrava o grupo fundador da Tição, conta que Magliani trabalhava de forma intensa, em certos períodos, em mais de uma atividade simultaneamente. Por esse motivo, não participava das reuniões de pauta. "Mas bastava dar uma pincelada do que precisava, ela sacava e já fazia. Magliani era uma pessoa muito perspicaz, inteligente. A arte dela não era uma coisa bonitinha, certinha, enquadrada, era fora do padrão. As ilustrações também. Uma obra perene."
A editora da publicação na época, a jornalista Vera Daisy Barcellos, conta que, sabendo do talento de Magliani, a equipe a convidou para fazer parte da equipe, e, enquanto rememora os acontecimentos por telefone, comenta: "É como se eu enxergasse a Magliani na minha frente agora, enquanto falo: o cabelo black, a maquiagem marcante, as roupas pretas. Carregava os seus trabalhos em uma bolsa grande por onde andava".
O tempo que atravessa as obras da pintora pelotense se estendeu, também, geograficamente. Magliani se mudou diversas vezes. Cogita-se que, em parte, pelas mudanças no mercado da arte, que refletiu na queda de venda das suas obras. Dessa forma, nos anos 1980, ela se muda de Porto Alegre para São Paulo, onde permanece até 1989, quando vai morar em Minas Gerais. Em 1995, retorna a São Paulo e, dois anos depois, fixa residência no Rio de Janeiro. Nesta trajetória, além da pintura, Magliani também se dedica a esculturas de papel machê e à confecção de objetos.
Um pouco antes de morrer, Magliani passa por uma fase de novos desafios artísticos. Julio Castro diz que a partir de 2007, a artista investe em "uma pintura menos carregada de drama expressionista, embora ele estivesse lá". O gesto solto deu lugar a figuras recortadas em planos de cor vibrantes, como a série Cartas e My baby just cares for me, e também releituras de pinturas clássicas traduzidas na série Adormecidas. De Giorgione a Nina Simone.
No trecho de uma carta enviada a Tina Zappoli, Magliani escreve: "Então terminou? Não, não termina jamais. Sempre é começar tudo de novo, duvidar e recomeçar. Procurar eternamente o avesso." Questionada sobre tal afirmação, Tina comenta: "Acho que ela não tinha muita escolha. Era isso ou isso. O artista é aquele para quem a obra nunca termina. Não existe ficou perfeito. Então era uma procura eterna, até o fim da vida de Magliani."
Resgate por outro olhar
Perspectiva racial tem renovado interesse em torno da obra de Magliani
/FERNANDO ZAGO/STUDIO Z/VIVA FOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Nos últimos anos, o nome de Maria Lídia Magliani tem chegado com força às novas gerações, não apenas de artistas, como também de segmentos como historiadores da arte, pesquisadores e curadores. A diferença, se comparada à recepção de antigos grupos, é a perspectiva racial que passa a ser considerada. Magliani foi a primeira mulher negra a se formar na então Escola de Belas Artes da Ufrgs, em 1966, e a construir uma trajetória dedicada à arte.
Com isso, a pelotense passa a integrar exposições, mostras, mesas de debates e seminários que tratam da questão racial, seja em relação à trajetória pessoal da artista, seja à temática de sua obra. É neste ponto que começam a surgir divergências de leituras. Uma delas, provocada pela própria Magliani que, em entrevista ao jornalista Carlos Tiburski, em 1987, diz que ser uma pessoa de cor negra não interfere em nada em sua pintura, e questiona a razão de artistas brancos nunca serem abordados de tal maneira. "Por que sempre me perguntam como é ser negro e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo o mundo. A diferença quem faz é a mídia. É 'normal' ser branco e, portanto, é natural que o branco faça tudo."
O professor do Departamento de Artes Visuais da Ufrgs, Paulo Gomes, observa que, sendo uma mulher negra que vivia em um mundo machista e racista no sistema das artes, ficam evidentes estes vestígios em suas obras. No entanto, ele é reticente quanto à quase obrigatoriedade de se tratar Magliani como artista feminista ou militante das questões raciais. ''É uma abordagem que se justifica pela emergência das questões do Brasil, um país racista, misógino, profundamente marcado por preconceito. É evidente que o trabalho dela tenda a ser uma espécie de bandeira. Mas eu penso que é injusto, porque a gente está minimizando a artista, e transformando as suas imagens em discursos, e não é essa a questão".
Conflitos como esses costumam atravessar sujeitos racializados, e ganham a sua respectiva dilatação no campo das artes. No caso de Magliani, na perspectiva de quem observa os seus quadros, podem ser notórias as reflexões psicológicas, filosóficas, sociais, de gênero e raciais que eles propõem. A própria artista acredita que sua obra está aberta a interpretações de cada espectador. Magliani, assim como tantos artistas racializados, não merece a superficialidade, nem mesmo se sustentaria neste lugar. E foi justamente tal dilema que chamou a atenção da pesquisadora, curadora e graduanda em Bacharelado em História da Arte, Daniele Barbosa. ''Foi muito complexo para mim encontrar uma artista negra, que produziu em um período não tão promissor quanto tem sido os nossos dias - se é que a gente pode chamar desta forma - e que tivesse um posicionamento tão avesso ao que a gente considera como ideal hoje''.
Ao ler entrevistas e materiais de Magliani, Daniele passou a questionar o establishment de "um artista negro que seja militante". Para a curadora, o impacto de Magliani ocorre justamente por ajudá-la a "compreender a complexidade da realidade de uma artista negra colocada dentro de um mercado que impõe muitos posicionamentos e padrões a seguir". Ir contra um modelo que talvez tenha sido estabelecido pela própria população negra para o corpo dela, e não reproduzir este comportamento, é assunto que rende muita discussão, acrescenta a graduanda.
Por outro lado, Daniela ressalta que, como há poucas figuras negras representativas no ambiente da arte, elas precisam ser observadas com atenção no passado, em razão da estrutura racista. Para a pesquisadora, este resgate se dá por muitas razões, entre elas, pela maior quantidade de estudantes negros no ambiente acadêmico e pelo interesse dos agentes culturais racializados. O momento histórico e social é outro, o que vai atravessar os trabalhos que estão sendo feitos a partir do trabalho da artista. "Agora chega uma exposição da Magliani até nós. Ela vai entrar em pauta novamente, o debate vai ser levantado e haverá mais gente falando, e não apenas algumas pessoas".
Esse movimento é evidente no meio acadêmico. Em 2018, Luanda Dalmazo publicou o primeiro trabalho dedicado exclusivamente a Magliani. Antes, linhas do tempo, que organizavam cronologicamente a trajetória da artista já haviam sido formuladas por Julio Castro, através do Núcleo Magliani, e pelo marchand Renato Rosa. A historiadora acredita que este hiato se deve, em parte, a dificuldades de sistematização da artista em relação ao seu trabalho, o que pôde dificultar eventuais pesquisas. Além disso, considera influências da personalidade da artista - que mudou de estado muitas vezes, vendia as obras em períodos de dificuldade econômica - e, também, pelo contexto da época. “Atualmente os artistas têm uma noção maior de catalogar a obra, seja pelas redes sociais, pelo portfólio ou pela própria documentação. Sabe-se que é necessário construir um arquivo a respeito do próprio trabalho, o que décadas atrás não era tão corrente”.
Luanda aponta acrescenta que não se pode ignorar a maior procura por representatividade dentro das pesquisas acadêmicas. Com o avanço das políticas e de pessoas que não tinham acesso às universidades, a demanda por pesquisas por mulheres, negros e lgbtqi+ aumentou. Desde que concluiu o seu trabalho, Luanda percebe que muitos eventos e exposições foram dedicadas a Magliani. A maioria das pessoas que promovem tais iniciativas acabam procurando o seu TCC. Era esse o objetivo de Luanda, fazer uma sistematização, para que as pessoas conhecessem mais a fundo a pintora.
"Sinto muito, senhores, não é agradável"
Maria Lídia Magliani receberá retrospectiva na Fundação Iberê
FABIO DEL RE/VIVA FOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Entre os dias 19 de março e 31 de julho deste ano, amigos, admiradores e o público em geral poderão conferir a trajetória de Maria Lídia Magliani na retrospectiva promovida pela Fundação Iberê Camargo (avenida Padre Cacique, 2.000). Com o título Magliani, a mostra contará com cerca de 200 obras da artista pelotense, que ocuparão os 3° e o 4° pisos do prédio. Ali, estarão reunido trabalhos oriundos dos mais importantes museus do Brasil, bem como de coleções particulares - incluindo as obras reproduzidas nesta reportagem, cedidas pela Fundação Iberê.
A mostra adota um caráter retrospectivo, apresentando todas as fases do trabalho da artista, incluindo algumas referências ao seu trabalho no teatro e na imprensa, como ilustradora. Levando em conta que a artista manifestava grande interesse pela literatura, a exposição será permeada também por frases suas distribuídas ao longo do percurso da mostra, assim como imagens dela feitas por fotógrafos profissionais.
O responsável pelo acervo da Fundação Iberê Camargo e um dos curadores da mostra, Gustavo Possamai, comenta que, até então, a única artista mulher a ocupar os dois andares do prédio havia sido Regina Silveira, em 2011. Magliani, acrescenta Possamai, será a primeira artista negra a participar de uma exposição produzida pela fundação. Antes dela foram expostas, em 2019, obras de Wura-Natasha Ogunji e de Angélica Dass, em produções da Bienal de São Paulo e do FestFoto, respectivamente.
É de se convir que pensar um recorte para esta exposição a partir de uma obra tão profícua como a de Magliani torna-se um desafio - tanto para quem a conhece, quanto para aqueles que não tiveram contato com a artista. Denise Mattar, que divide a curadoria com Possamai, entende que a arte de Magliani não é fácil: "é feita para incomodar e fazer refletir." A pelotense se interessava pelas questões humanas, pelos problemas e sofrimento inerente à existência. O desencontro, o desamor, a hipocrisia da sociedade, o medo da solidão: tudo isso está presente em seu trabalho.
Por isso é inevitável para Denise fazer um paralelo com Iberê Camargo. "Ele dizia: 'Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói' (1993). A frase poderia ser de Magliani, que já em 1977 dizia: 'Eu gostaria de dizer às pessoas que veem os meus quadros: 'Sinto muito, senhores, não é agradável'."
Priscila Pasko é escritora e jornalista freelancer na área cultural. É autora do livro de contos Como se mata uma ilha (Zouk, 2019) - Prêmio Açorianos 2020 na categoria conto. Também integra a coletânea Novas contistas da literatura brasileira” (Zouk, 2018).