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Publicada em 23 de Setembro de 2021 às 20:47

Chamamé une as culturas fronteiriças no RS, Argentina e Paraguai

Casais dançam o ritmo no teatro Ciudad Gran Conex em Buenos Aires

Casais dançam o ritmo no teatro Ciudad Gran Conex em Buenos Aires

FERNANDA MARCON/DIVULGAÇÃO/JC
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João Vicente Ribas, especial para o JC
João Vicente Ribas, especial para o JC
O chamamé é um dos ritmos mais apreciados no meio musical gauchesco, embora tenha despertado ao longo do tempo uma série de controvérsias. Em meados do século XX, era considerado não tradicional, ou não pertencente às raízes do gaúcho brasileiro.
O regulamento da Califórnia da Canção Nativa, por exemplo, vetava o chamamé ao lado do tango, da zamba e da chacarera, por considerá-los estrangeiros. Mesmo assim, o gênero não deixou de permear as edições do festival ao longo da história e até vencê-lo, como ocorreu em 1990 com Veterano (Antonio A. Ferreira/Ewerton Ferreira).
Hoje não há mais proibições categóricas e o chamamé se consolidou no Estado como uma cultura transfronteiriça, compartilhada com Argentina, Paraguai e Mato Grosso do Sul. No mercado musical gaúcho, muitos se inspiram no seu compasso, a exemplo de um dos maiores clássicos do cancioneiro regional, Canto alegretense (Bagre Fagundes/Nico Fagundes). Outros sucessos memoráveis são Batendo água (Luiz Marenco/Gujo Teixeira) e Baile de Fronteira (Luiz Carlos Borges/Mauro Ferreira), na mesma batida.
Recentemente, o acordeonista argentino Alejandro Brittes tem fortalecido esse caráter transfronteiriço. Natural de Buenos Aires, vive em Porto Alegre há uma década, participando ativamente de gravações e espetáculos ao lado de músicos dos dois países. Neste mês, lançou um livro, ao lado da produtora e pesquisadora Magali de Rossi, que é resultado de uma vida de estudo sobre as origens guaranis e barrocas do chamamé.
Por isso, além de permear a identidade gaúcha, o gênero participa diretamente da configuração de uma identidade missioneira, pois sua gestação estaria no grande território histórico das Missões Jesuítico-Guaranis, no período colonial da América Meridional.
Com isto, não se estranha que o chamamé também seja considerado uma expressão tradicional da música sertaneja. Ao lado da guarânia e da polca paraguaia, é uma referência fundamental para a configuração identitária associada à cultura guarani no Centro-Oeste. No livro Polca paraguaia, guarânia e chamamé (2010), o professor Evandro Higa destaca que "os ecos dessa alma guarani ainda estariam ressoando em Mato Grosso do Sul, palco da implantação de povoados espanhóis e das primeiras reduções jesuíticas da então província do Paraguai destruídas pelos bandeirantes paulistas no século XVII".
Nesta reportagem do Jornal do Comércio, entrevistamos grandes expoentes dessa música, como Chango Spasiuk e Luiz Carlos Borges. Também consultamos especialistas que avaliam a construção do gênero, desde os rituais guaranis, passando por migrações na Argentina, até influenciar músicos populares em diversas regiões, e se consagrar como patrimônio imaterial da humanidade perante a Unesco, no final do ano passado.

O sapucay

Autores do livro A origem do chamamé, Brittes e Magali com Vherá Poty

Autores do livro A origem do chamamé, Brittes e Magali com Vherá Poty

FERNANDA MARCON/DIVULGAÇÃO/JC
"A mão vem me dando um soco
E eu prendo-lhe um sapucay
O pé pisoteia a marca
Que a alma arrepia em pêlo
E quase arrebenta o fole
Que torce, pra vida melhorar."
(Chamamecero - Mauro Moraes)
Um dos elementos mais marcantes da cultura do chamamé é o sapucay. Quando a dinâmica dos instrumentos fica intensa e improvisações na gaita atingem os registros agudos, tudo converge para uma explosão de emoção canalizada naquele grito característico de alguém no palco ou na plateia. É o sapucay. Quando as palavras não conseguem descrever o sentimento, então uma liberação elétrica produzida pelo corpo extravasa e o aproxima do cosmos, em uma espécie de transcendência.
Conforme a pesquisa de Alejandro Brittes e Magali de Rossi, com os guaranis da tekoá Água Grande, de Camaquã, a palavra sapucay deriva de xapucay, que na língua Mbyá Guarani significa grito. Muitas vezes ele é emanado dentro da opy, a casa de reza. "Ocorre no momento da cura dos enfermos como uma forma de aliviar a penosa caminhada do doente", relatam. Entende-se que o sapucay é o lançar a alma. Além da reza e da música, tem outros usos: na lida campeira, no luto ou na torcida de futebol. "Dizem que o chamamé nos eleva, mas quando você quer se elevar mais que a música, então vem o sapucay", destaca Brittes.
A antropóloga e professora da Universidade Federal da Fronteira Sul Fernanda Marcon, autora da foto acima, treinou o sapucay pesquisando em centros culturais correntinos na região metropolitana de Buenos Aires. Observou que o grito remete à infância, à família. Por isso, tem momentos propícios, tem que saber quando usar. Está na vivência, no inconsciente. "O sapucay aparece como elemento performático que traz um sentido de pertença. Você não dá um sapucay ao acaso, mas quando a música chama você", avalia.

Na Fronteira, se aprende a dançar o chamamé

Para Borges, persistência de nomes como Raúl Barboza (dir.) contribuiu para consagração do estilo

Para Borges, persistência de nomes como Raúl Barboza (dir.) contribuiu para consagração do estilo

LUIZ CARLOS BORGES/ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Era 1997 quando a banda Paralamas do Sucesso e o roqueiro Charly García foram escalados para participar do show de inauguração da ponte entre São Borja e Santo Tomé. A chamada Ponte da Integração vinha dinamizar a economia e as idas e vindas de chamameceros, que já se reconheciam além dos limites nacionais, via ondas de rádio, discos e shows compartilhados. Mas foi apenas 20 dias antes do evento inaugural que a escalação dos artistas mudou.
Luiz Carlos Borges enviou uma carta ao governador do Estado na época, Antonio Britto, buscando sensibilizá-lo, pois os chamameceros tinham que estar presentes naquela inauguração. "Na construção desta ponte, cada um de nós colocou um tijolinho", escreveu. Sua carta nunca foi respondida oficialmente, mas os músicos locais de ambos os lados do rio Uruguai foram incluídos na programação. "Finalmente, convidaram os tocadores de baile de fronteira", recorda Borges.
Esse episódio ilustra a dedicação do missioneiro ao chamamé, defendendo sua bandeira ao longo da carreira. Borges tinha nove anos quando começou a tocar profissionalmente em São Luiz Gonzaga. Nos lugares que permitiam, interpretava temas do acordeonista correntino Ernesto Montiel. "Na época tinha bailes que proibiam, outros nem se davam conta quando se tocava o chamamé", lembra. Naqueles anos, o Movimento Tradicionalista começava a definir seus conceitos. Hoje, Borges avalia que há mais abertura: "O chamamé se tornou o irmão gêmeo do vanerão, dividindo o repertório nos bailes do Rio Grande do Sul".
Em pesquisa sobre a percussão nos bailes de toda Região Sul, o músico e professor da Universidade de Passo Fundo, Márcio Kbecinha Tolio, observou uma divisão anímica nos ritmos: "O vanerão é pra dar risada; na hora do chamamé, é uma coisa mais nobre". Tolio explica que na dança do chamamé é possível mostrar fluência e pequenas coreografias. Quem não sabe o passo em três tempos fica perdido no salão. Tolio já acompanhou grupos como Os Monarcas e Os Serranos e observa que de uns anos pra cá, no Sul e no Centro-Oeste, mudou muito a dinâmica de baile. Com exceção das bandas mais tradicionais, diminuiu a presença do chamamé.
Por outro lado, especialmente nos últimos 30 anos, houve a consagração do gênero no mundo todo, culminando com o reconhecimento da Unesco. "Não é só um ritmo, é um aglomerado de culturas, não é de um lugar só", avalia Luiz Carlos Borges. Hoje o compositor revela sentir que não foi em vão sua dedicação. "O chamamé era um cancioneiro de bailanta e não tinha entrada na alta sociedade. Mas aí vem a postura de persistência de Cocomarola, Tarragó Ros, Raúl Barboza, e muitos outros nomes que todo chamamecero que se preza tem que conhecer", pontua.
Fora do circuito de bailes, o gênero também se fortaleceu no Centro-Oeste. Artistas como Almir Sater são pantaneiros chamameceros. Borges já gravou com ele e outros nomes daquela região, como Ivo de Souza e Guilherme Randon, no disco Do Pampa ao Pantanal (2001). "Tem um sabor diferente. Almir Sater fala chamamé [com som de xis], enquanto os gaúchos falam com sotaque castelhano", observa.

Baile de Fronteira

(Luiz Carlos Borges/ Mauro Ferreira)
"É num baile de fronteira
que a gente pode aprender
Esse balanço safado de
se dançar chamamé
Tem que ter manha no corpo,
pra sapatear tem que ter
Tranco de sapo baleado
e jeitão de jaguaretê"

Intercâmbio com os hermanos

Antonio Tarragó Ros se apresentou no festival de folclore argentino de Cosquín, em 2009

Antonio Tarragó Ros se apresentou no festival de folclore argentino de Cosquín, em 2009

/JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC
Na fronteira argentina, a parceria tem sido produtiva. A amizade sempre abriu portas para Luiz Carlos Borges. Aos 15 anos, trouxe Raúl Barboza ao Brasil, após conhecê-lo em um festival em Santo Tomé. Depois conheceu Antonio Tarragó Ros, com quem gravou o álbum Fronteiras abertas (1991). "Foi o primeiro fonograma gravado após assinatura do Mercosul, lançado dias depois, fortalecendo a ideia", ressalta Borges.
Já no disco Con amigos argentinos (2010), contou com participações especiais dos próprios Barboza e Tarragó Ros, além de Liliana Herrero, Juan Falú, Teresa Parodi e o ícone Mercedes Sosa, entre outros. "Ao longo da vida, Mercedes gravou mais de 50 chamamés, contribuindo para consolidar o gênero", diz Borges. Agora em 2021, outra parceria binacional se consolidou no lançamento do álbum Cosa de Hermanos, com Yamandu Costa e os irmãos Rudi y Nini Flores. Recheado de chamamé, claro.
No mercado brasileiro, sua primeira parceria com Mauro Ferreira rendeu o maior sucesso entre os chamamés. Borges compôs Baile de Fronteira como um tema instrumental e caiu no gosto do jornalista Glênio Reis, que o incentivou a buscar um letrista. Logo a canção foi registrada por Rui Biriva, em 1990, e muitos outros. Após toda essa trajetória dedicada ao gênero, Borges afirma: "Hoje eu sinto que criei a minha forma de tocar chamamé".

Dicas

capa do disco 'Cosa de Hermanos, de Borges, Yamandu e os irmãos Flores

capa do disco 'Cosa de Hermanos, de Borges, Yamandu e os irmãos Flores

/Joaquin Althabe/Reprodução/JC
  • Podcast Enramada
Chango Spasiuk apresenta um podcast, gerado a partir da rádio Folklórica Nacional, em que aborda assuntos culturais, entre eles o chamamé. Episódios disponíveis no Spotify.
  • Álbum Cosa de Hermanos
Encontro de gigantes gravado em 2010 e lançado no início deste ano. Os brasileiros Luiz Carlos Borges e Yamandu Costa dividem os arranjos com os irmãos Rudi e Nini Flores. No repertório, predomina o chamamé. Disponível nas plataformas digitais.
  • Livro A origem do chamamé
Pesquisa recupera construção do gênero e relatos de indígenas sobre a matriz ancestral. Projeto financiado pela Lei Aldir Blanc, edital da Fundação Marcopolo/Sedac-RS. Disponível em e-book.
  • Songbook El Taita del Chamamé
Obra completa de Mario del Tránsito Cocomarola, com partituras e tablaturas do ícone do chamamé correntino, autor de Kilometro 11. Disponível para download no Instituto Nacional de la Música, da Argentina.
 

As origens guaranis de um compasso transcendente

Livro A origem do chamamé é resultado da pesquisa de Magali de Rossi e Alejandro Brittes

Livro A origem do chamamé é resultado da pesquisa de Magali de Rossi e Alejandro Brittes

MARCOPOLO/DIVULGAÇÃO/JC
O gênero já foi chamado de compuesto guarani, aires correntinos, ramada, purajhey, polka campera, entre outras denominações. O musicólogo Mark Brill pontua no livro Music of Latin America and the Caribbean (2011) que esse tipo de música emergiu no Nordeste argentino, região de imigrantes alemães e poloneses, que trouxeram consigo o acordeon, a polca e a mazurka.
O contato com populações guaranis, no século XIX, teria gerado a polca correntina. Já no século XX, o termo chamamé passaria a denominar essa mistura, tocada por acordeonistas virtuosos, a exemplo de Tránsito Cocomarola.
Na atualidade, Brill menciona Alejandro Brittes como um dos principais chamameceros. Ele nasceu em Buenos Aires, filho de pais correntinos e avó guarani, viveu a infância em um edifício de migrantes, que compartilhavam a música e a comida típica de sua região. "Desde o berço sou chamamecero", orgulha-se Brittes. Aos 15 anos, convivia com grandes nomes como Fito Ledesma, Nini Flores e Isaco Abitbol. Há 20 anos, passou a fazer turnês no Sul do Brasil e acabou se mudando para Porto Alegre. Conhecendo os chamameceros gaúchos, ficou maravilhado: "Encontrei a mesma linguagem, com sotaques diferentes".
O resultado dessa trajetória está no livro A origem do chamamé: uma história para ser contada. A coautora Magali de Rossi produziu quatro edições do Encontro de Chamameceros em São Luiz Gonzaga ("Ali encontrei a mística do chamamé") e investiu na pesquisa das questões metafísicas, concluindo que a característica transcendental do ritmo 6/8 é um traço universal, que se percebe em diversas religiões. Juntos, investigaram os rituais de povos Mbyá-Guarani no Estado.
Especialmente com a liderança Vherá Poty, aprenderam que os compassos quaternário (4/4) e ternário (3/4) são divisões rítmicas usadas nas celebrações de pátio, rituais cotidianos. Ficaram intrigados, pois o chamamé costuma ser ritmado no binário composto (6/8).
Em conversa com Poty, descobriram que o 6/8 não pode ser tocado em público, usado apenas pelo pajé na opy (casa de reza) para falar com deuses. Essa relação com o sagrado é reforçada em Caraí Chamamé: Reza-Dança (2019), de Juliano Javoski.
Já o teólogo e professor da Faculdade Dom Bosco Renato Ferreira Machado afirma que "na origem, o chamamé não é um gênero musical, é um ritual guarani". Buscando entender a mística, ele observa a ligação com o mito da Terra Sem Males: "Houve uma grande enchente, e os guaranis subiram nas palmeiras para se salvar. Rezando para as divindades, receberam a mensagem de caminhar sobre as águas. O chamamé é a dança sobre as águas, o caminho para a Terra Sem Males".
Não há consenso entre os músicos sobre a grafia do ritmo do chamamé na partitura. Márcio Tolio explica que o acento que configura o compasso depende de onde se toca. "No Rio Grande do Sul, soa mais como 3/4, com um pulso mais marcado. O argentino soa mais como 6/8, é mais fluido", afirma. A visão de Tolio é da percussão, então reconhece que, do ponto de vista do violão ou da voz, pode fazer mais sentido a célula rítmica 6/8. "Tu não consegues escrever totalmente e grafar o sentido de uma manifestação cultural", conclui.

Festivais fortalecem laços

Gauchito Gil - Centro Cultural Los Cunumi Guazu, cidade de Rafael Castillo, Província de Buenos Aires

Gauchito Gil - Centro Cultural Los Cunumi Guazu, cidade de Rafael Castillo, Província de Buenos Aires

/FERNANDA MARCON/DIVULGAÇÃO/JC
Há uma série de eventos por toda a região missioneira. O mais recente, criado em junho deste ano, é o Festival Internacional de Chamamé das Três Fronteiras, transmitido online desde Puerto Iguazú. Participaram dele o argentino Chango Spasiuk, a paraguaia Myrian Beatriz e o gaúcho Jorge Guedes, que também é um dos idealizadores do Encontro de Chamameceros, que iniciou em 2004 em São Luiz Gonzaga.
O mais longevo é o Festival Nacional del Chamamé, realizado em Federal, província de Entre Ríos, desde 1976. O mais badalado tem sido a Fiesta Nacional del Chamamé, realizada em Corrientes há 30 anos.
A integração é intensa nestes encontros. Chango Spasiuk metaforiza que "o chamamé é a árvore inteira, com todos seus matizes". No tronco estão Cocomarola, Ernesto Montiel, Isaco Abitbol, Tarragó Ros, as famílias tradicionais. Mas desta árvore há um desenvolvimento de quase um século, que floresce toda uma diversidade de cores sonoras. A antropóloga Fernanda Marcon pontua que as regiões também têm influência: "Misiones tem tambores, Corrientes tem a festa, Entre Ríos tem relação com a chamarrita".
Marcon observa que no contexto de Buenos Aires, o chamamé é um gênero periférico. Chamameceros que migraram para a capital tiveram um papel importante na constituição do gênero. Mas por algum tempo havia preconceito, pois a capital portenha era elitista. Como uma forma de reação, os migrantes constituíram centros culturais, onde promovem bailes e procissões. "Não dá pra desvincular o chamamé de expressões religiosas como o Gauchito Gil, um catolicismo popular", pontua. A antropóloga se emociona com o sentido de coletividade que percebe na cultura do chamamé. "São músicas que falam destes movimentos das pessoas, que levam suas tradições para outros lugares e se enraízam ali", afirma.

"O chamamé é uma música esperançosa"

Chango Spasiuk é um dos maiores nomes do gênero na atualidade

Chango Spasiuk é um dos maiores nomes do gênero na atualidade

/Chango Spasiuk/ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Chango Spasiuk é um dos maiores nomes do gênero na atualidade. Natural da província de Misiones, já esteve em Porto Alegre algumas vezes, mas se ressente que por mais que o Rio Grande do Sul seja "sua terra", tão conectado a sua raiz, acaba viajando mais para dar concertos em Paris ou Madri. "São estas grandes contradições que temos nós sul-americanos. Estamos tão perto, culturalmente, e tão desconectados institucional e comercialmente", avalia.
Em entrevista, Spasiuk vai a fundo nos sentidos e sentimentos do chamamé. "Não é uma música triste, não é obscura, não é depressiva, nem alegre. O chamamé é uma música esperançosa", afirma. Também revela que está preparando um songbook e um novo disco, que deve incluir uma gravação junto a Luiz Carlos Borges em Buenos Aires, captada ao vivo há três anos.
Spasiuk enfrenta debates, opinando que há um mau conceito de tradição. "A tradição não é a repetição mecânica de algo que te foi dado, a tradição é uma ferramenta para ressignificar o presente, com um profundo conhecimento do que se herdou", conclui.
JC - Cada chamamecero tem um estilo?
Chango Spasiuk - Primeiro há os estilos de Cocomarola, de Tarragó Ros, de Isaco Abitbol, de Ernesto Montiel, de Blasito Martínez Riera. Depois aparecem Raúl Barboza, Fito Ledesma, Ramona Galarza, Los Hermanos Barrios, Loz Hermanos Cardozo, Los De Imaguaré. São ramificações. Pois para que exista um Raúl Barboza tem que existir um Cocomarola. É tudo como um desenvolvimento natural da música ao passar do tempo.
E esse desenvolvimento implica em ser contemporâneo ao tempo cultural e do país onde se está. Não é a mesma vivência de um Barboza que nasceu em Buenos Aires e depois se exilou na França, e que todo seu desenvolvimento estético está impregnado pelo lugar onde foi viver. Não é a mesma vivência de um acordeonista do interior de Corrientes, ou da minha própria, que nasci em um lugar onde em menos de 90 quilômetros tem a fronteira com o Paraguai, ou a fronteira com o sul do Brasil, de avós imigrantes ucranianos, cercado de uma diversidade de cores, que para mim é absolutamente natural.

JC - Essa diversidade está presente no teu disco Pino Europeo, com arranjos eletrônicos?
Spasiuk - A paixão dos músicos eletrônicos sempre foi a música andina e o tango, mas nunca a música do nordeste da Argentina. Como se não vissem glamour neste mundo sonoro. Por isso propus esse disco, quase como uma atitude de rebeldia, dizendo que vocês músicos eletrônicos namoram outras raízes, e por que não a minha? Então por sorte encontrei uma pessoa com a sensibilidade de Pedro Canale, com quem pude desenvolver tudo isso e abrir uma porta a mais para propor desafios estéticos. Mas meu centro de gravidade segue sendo o acordeon e esta tradição mestiça do chamamé, a convergência de uma soma de elementos diferentes que se cristalizam.

JC - Os festivais de chamamé recebem diferentes tendências musicais?
Spasiuk - O festival de Corrientes é o mais aberto de todos. E tem que ser. Porque se supõe que o chamamé é uma construção coletiva, de todos os possíveis olhares. Se não fosse um palco para comportar tudo isso, deveria se chamar de outra maneira.
Parece-me que por sorte é um palco que sempre está aberto a todas as possíveis tendências e me parece legítimo que assim seja. Não se trata de funcionar comercialmente dando ao mercado o que o mercado quer. Mas um espaço no qual se fortalecem todas essas buscas se fortalecem na medida em que há um espaço no qual podem se expressar.

JC - Você concorda que há um chamamé mais instrumental, tocado em concertos, enquanto há outro mais dedicado à dança, aos bailes?
Spasiuk - É toda uma arte tocar para que as pessoas escutem. Mas também é toda uma arte tocar para que as pessoas dancem. E é muito difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Apesar que Montiel e Cocomarola em seus últimos anos, quando tocavam em baile, as pessoas quase não dançavam. Mais os escutavam.
Sim, há estilos que são muito dançáveis e outros que são mais introspectivos, mas não tem a ver com o cantado ou o instrumental. Tem a ver com a estética de cada criador. São diferentes buscas. Eu não digo que sou músico de música instrumental. Eu sou um músico que faço meu próprio mundo sonoro, que passa por um monte de situações sonoras, entre as quais aparece a voz cantando poesia. O que me interessa é o quadro inteiro. Não me interessa estar fragmentando música cantada ou música instrumental, música tradicional ou música de vanguarda.

* João Vicente Ribas é jornalista, professor na Universidade de Passo Fundo e apresentador do programa Canciones para despertar en Latinoamérica, na Rádio UPF.

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