Duas frases de Nelson Rodrigues entram em choque ao se falar em Tânia Carvalho. A primeira é a de que toda unanimidade é burra. Tânia é uma unanimidade. E não há nada de burrice em reconhecer que esta unanimidade não surgiu no vácuo. Ela é resultado de uma trajetória profissional consolidada de quase seis décadas, acrescida de uma vida igualmente rica que fazem com que Tânia tenha granjeado toda essa admiração naturalmente. E aí entra a segunda frase de Nelson Rodrigues: "Se os fatos provam o contrário, pior para os fatos". Ou seja, o fato é que Tânia é - mesmo - uma unanimidade.
Próxima dos 80 anos, sem disfarçar e sem esconder a idade, Tânia foi o melhor presente que Bagé poderia ter ganho no Natal de 1942. Agora, aos 78, Tânia continua plenamente ativa, fazendo planos, esperando retomar algumas viagens a partir do arrefecimento da pandemia, se mostrando participativa nas redes sociais e, seguindo a tarefa unânime que lhe foi imposta: alegrar, instruir e aconselhar - proximamente e a distância - os milhares de seguidores que tem. "Meu celular e minhas redes não param. São centenas de amigos que diariamente querem meus conselhos, meu apoio, minhas sugestões ou simplesmente apenas conversar", explica ela. "E eu não posso me omitir, mesmo que às vezes eu cometa excesso de sincericídio."
Aos conhecidos, Tânia fala abertamente - não por acaso o nome de um dos programas televisivos que apresentou na década de 1990, na TVCOM. Aos que não a conhecem pessoalmente, Tânia não se nega ao contato, até mesmo quando eles vêm acompanhados de uma exagerada e instantânea intimidade, com selfies, declarações de admiração de parte a parte e memórias compartilhadas, muitas delas inexistentes. "É impressionante como algumas pessoas se aproximam e lembram fatos, com clareza de detalhes, do tempo em que foram minhas colegas no Colégio Santa Inês. E eu só estudei no Colégio Bom Conselho e no Julinho???!!!!", conta Tânia. "Mas eu não contrario. Fico em silêncio e faço uma cara de aprovação", resigna-se. Outro clássico são os que se apresentam dizendo que gostam muito de vê-la na televisão, que a acompanham diariamente. A esses também Tânia não contraria tampouco desmente, embora esteja há mais de uma década afastada de qualquer espaço televisivo fixo.
Tânia Carvalho com Tatata Pimentel na Rádio Itapema, ouvindo Peggy Lee
ACERVO PESSOAL TÂNIA CARVALHO/DIVULGAÇÃO/JC
A década de afastamento é a prova concreta que confirma a unanimidade e a força do carisma desta apresentadora que já fez de tudo e foi fundamental em dar uma cara e um estilo ao telejornalismo feito no Estado. Tânia passou pelos principais programas das mais importantes emissoras do Rio Grande do Sul, aí incluídas RBS TV (quando ainda era TV Gaúcha), Band (quando ainda era TV Difusora), Guaíba (quando ainda era propriedade de Breno Caldas), Pampa, TVE e TVCOM (durante quase toda a existência do canal). Desta, sua última casa profissional até ser demitida pela derradeira vez, ela se declara uma inconsolável viúva. Mais ainda pela maneira surpreendente com que foi pega pela notícia. "Eu tinha certeza que me passariam novas tarefas e até me dariam um aumento. Estava eufórica. Sábio foi o Tatata (Pimentel, 1938-2012) que previu e me alertou daquele jeito dele: 'Carvalho, vamos ser demitidos'". Não deu outra.
Mas se o fato novo era demissão, pior para os fatos.
Ser Tânia é um estado de espírito
Tânia Carvalho posa em sua casa, em Porto Alegre, ao lado de obra do artista Xico Stockinger
MARIANA ALVES/JC
O fim de uma longa carreira televisiva foi apenas detalhe. Tânia seguiu em frente e permanece muito envolvida com o que está ao seu redor. "Me comunico pelas redes", explica Tânia. "Tenho certo domínio da tecnologia e me sinto à vontade podendo opinar e conversar sobre os mais diversos assuntos com tantos seguidores e amigos".
Tânia também se envolve com o voluntariado na Casa de Apoio Madre Ana, com a Biblioteca Jardim das Letras, que hoje tem mais de 8 mil volumes todos doados pela comunidade através dos pedidos feitos por ela. Não por acaso, um de seus assuntos preferidos nos últimos tempos é a literatura, tema também da coluna que apresenta na Rádio Gaúcha, indicando livros. "Não sou crítica literária. Só falo de quem leio e de quem me agrada. E sei que a repercussão é boa. Meu termômetro pode ser medido pelas minhas idas às livrarias, quando muitos livreiros me confirmam que os livros sugeridos por mim sempre são bem vendidos".
Tânia é autêntica. Isso faz com que a pessoa pública se confunda com a Tânia da vida privada. "Ela sempre me ensinou que devemos valorizar os amigos e as pessoas em toda a nossa trajetória. Valorizar com educação e afeto, cuidado e atenção. O respeito sempre foi sua marca. E deixou um rastro de admiração em todos", conta Fabiano Del Rey, 54 anos. "A energia que ela tem é tão grande que todos recebem a mesma atenção e carinho. As pessoas que a conhecem na intimidade não me deixam mentir: a generosidade dela é característica", acrescenta Diogo Carvalho, 39 anos. Fabiano e Diogo são os dois filhos dela, talvez os dois maiores especialistas em Tânia Carvalho no mundo.
Fabiano é filho do primeiro casamento, com o ator baiano Geraldo Del Rey, falecido em 1993. Diogo é do segundo e permanente casamento com o médico pelotense Felício Medeiros dos Santos, o Felicinho, com quem ela mantém um harmonioso e divertido relacionamento há mais de quatro décadas. "Minha mãe é uma contaminação de afeto. E essa é a característica principal que passo, sem muito esforço, para meus filhos. É muito bom ter a certeza que é a melhor essência que poderia passar para eles", diz Fabiano.
"A Tânia-mãe e a Tânia-pessoa pública são exatamente iguais em todas as versões, seja publicamente, seja em casa, no contexto familiar", completa Diogo. "A autenticidade e espontaneidade dela seguem a mesma trilha. É rigorosamente o mesmo coração ambulante com brilho no olhar e bom humor, discorrendo com naturalidade sobre absolutamente todos os assuntos". E define: "Ser Tânia é um estado de espírito, o sonho de consumo de qualquer pessoa".
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Meninas da Liga Feminina de Combate ao Câncer/Glamour Girl (Tânia à dir.)
ACERVO PESSOAL TÂNIA CARVALHO/DIVULGAÇÃO/JC
Tânia começou a ser Tânia desde sempre. Primeiro, logo depois de concluir o segundo grau, trabalhando como secretária num curso de inglês. Depois, com um namoro, um noivado e um casamento instantâneos com Geraldo Del Rey, na época o Alain Delon brasileiro. Com ele, em meados dos anos 60, mudou-se para São Paulo e ficou próxima da turma do Teatro Oficina, do Tropicalismo e do Cinema Novo. Helena Ignez, primeira mulher de Glauber Rocha, era uma amiga querida; Anecy Rocha, irmã do cineasta, era íntima; Dona Lúcia, a mãe de Glauber, era a “Tia” de todos eles; Eva Wilma foi uma amiga por toda a vida. E mais: Nara Leão, Paulo Gracindo, Carlos Zara, Etty Fraser, Paulo Autran, Zé Celso Martinez Corrêa, Caetano Veloso... Todos faziam parte do cotidiano paulista de Tânia.
Tamanha alegria só não era completa porque vinha acompanhada de muitos aborrecimentos: a distância de Porto Alegre em geral e da mãe em especial, a situação política brasileira cheia de perseguições, torturas e delações – não foram poucas as vezes que o apartamento de Tânia e Geraldo se transformou num aparelho, abrigando amigos que estavam na clandestinidade. Assim, com o entorno em constante ebulição, a crise que começava a tomar conta do casamento com Geraldo não compensava algumas vantagens paralelas como um bom emprego na Editora Abril, onde se apaixonou pelo jornalismo, e uma vida social e cultural intensas ao lado do marido, inclusive com uma temporada na Europa, quando ele recebeu uma proposta para ir trabalhar em Portugal.
Por isso, no começo da década seguinte, já mãe de Fabiano, então com três anos, Tânia resolveu voltar. Queria diminuir o ritmo. Veio morar com o filho e com a mãe. “Eu não sabia bem o que eu ia fazer. Se tivesse ficado e São Paulo – ou até mesmo ido para o Rio de Janeiro – eu teria maiores oportunidades profissionais. Mas eu queria retornar, ficar mais perto de minha mãe – a pessoa que até hoje eu mais sinto saudade”, lembra Tânia.
A jornalista Tânia Carvalho
ARQUIVO PESSOAL TÂNIA CARVALHO/DICULGAÇÃO/JC
Deu a lógica. A parada foi curta e ela não ficou muito tempo sem fazer nada. Um dia, Tânia entrou na TV como entrevistada e saiu como entrevistadora. Foi em 1972, atendendo a um convite de Célia Ribeiro, Tânia foi à TV Gaúcha para falar sobre sua vida numa rápida entrevista. Saiu-se tão bem, de maneira tão espontânea, que na mesma hora Célia sugeriu que ela pensasse em ser comunicadora. Menos de seis meses depois, em junho, ela passou a apresentar o Jornal do Almoço, programa de jornalismo, esportes e de variedades que estava sendo lançado pela emissora. Tânia era pioneira e original. À frente do programa, ela permaneceu quatro anos na bancada do telejornal. “A contribuição da Tânia Carvalho para o desenvolvimento da televisão no Rio Grande do Sul se confunde com a participação da mulher dentro da história da TV. A Tânia nunca foi uma leitora de fichas ou dálias escritas pelos outros. Ela sempre teve opinião e conhecimento para pautar e provocar qualquer entrevistado, no confronto ou no afago”, avalia Alice Urbim, ex-editora da RBS TV e uma das pessoas que mais tempo trabalhou ao lado de Tânia.
Depois de deixar o Jornal do Almoço – numa confusa polêmica sobre uma cobertura do animado carnaval porto-alegrense – Tânia ficou fora da tela por alguns dias mas logo já estava integrada à equipe do programa PortoVisão, na TV Difusora, ao lado de nomes como Clóvis Duarte, Sérgio Jockymann e José Fogaça. “A Tânia foi a mãe-fundadora do PortoVisão. Ela era a âncora do programa. E era a garantia do sucesso. A Tânia trouxe para a TV do Rio Grande do Sul uma linguagem espontânea, criativa, bem-humorada, cheia de carisma. Fazia no PortoVisão uma espécie de talk-show em que conversava com todos”, destaca Fogaça, na época professor de cursos pré-universitários, letrista de música popular e comentarista do PortoVisão. “Naquele período, eu lembro dela pessoalmente por várias razões. Eu tinha 28 anos e o país vivia momentos de turbulência. Ela soube ser solidária e amiga nas horas mais difíceis que enfrentei naqueles tempos. Nossa amizade ficou para sempre”, ressalta o futuro deputado, senador e prefeito de Porto Alegre por duas vezes. “Na época que eu trabalhava como produtora no Jornal do Almoço, o nosso grande concorrente era o PortoVisão. E a grande estrela era a Tânia, uma mulher audaciosa e irreverente que chegou a aparecer na tela tomando banho de espuma dentro de uma banheira”, explica Alice.
Com Felicinho, ela mantém harmonioso e divertido relacionamento há mais de quatro décadas
GILMAR LUÍS/JC
A década de 1980 entraria para Tânia repleta de novidades. Primeiro, ela estaria à frente do Guaíba Feminina, um dos destaques da grade de programação do novo canal que surgia em Porto Alegre, a TV Guaíba. Na mesma época, Tânia oficializaria seu relacionamento com Felicinho, um casamento que se confirmava depois de um longo namoro. “Conheci a Tânia no Guaíba Feminina, em 1981 quando passei a integrar a equipe que fazia produção. Além da Tânia, o programa era apresentado também pela Marina Conter, Liliana Reid, Magda Beatriz e Aninha Comas. Foi amor à primeira vista pela profissional que ela é e sempre foi: crítica, acolhedora, ousada, curiosa, inquieta”, lembra a jornalista Lelei Teixeira.
A temporada na TV Guaíba foi intensa porém curta devido aos problemas financeiros que já invadiam os corredores da Companhia Jornalística Caldas Jr. e levariam a empresa à derrocada. Assim, Tânia começaria novas temporadas na Pampa e na TVE, onde comandou o Estação Cultura, até que em meados da década seguinte – com o filho menor já adolescente e o mais velho já formado – Tânia se encantou pela TVCOM. “Quando soube que estava sendo criado um canal com esta proposta, de falar das coisas da cidade, na mesma hora eu liguei para o Nelson (Sirotsky, então diretor-presidente da RBS) me oferecendo para trabalhar”, conta Tânia. A oferta não foi aceita de imediato, Nelson ficou de pensar, mas em menos de um ano, Tânia já fazia parte do elenco da emissora. No novo canal, Tânia ficou mais de uma década, à frente de três programas: Falando Abertamente, Café TVCOM e Gurias de Quinta. Vivia sua maturidade como profissional e, como foi dito lá em cima, sentia-se segura, até ser pega de surpresa com a sua demissão. Mas até nisso ela conseguiu ver algo positivo. “A demissão veio no momento certo. Se não me parassem, eu não saberia quando parar”.
Feminista sem nunca ter precisado empunhar bandeiras, política sem nunca ter tido filiações partidárias (embora tenha sido convidada dezenas de vezes para concorrer aos mais diversos cargos), Tânia faz de sua ideologia uma atitude prática. “Pela sua trajetória no jornalismo, pela inquietude, coragem, solidariedade e capacidade de se reinventar, Tânia é uma profissional que fez e faz a história da comunicação”, destaca Lelei. Empoderamento nunca esteve no seu vocabulário, nem para lutar exclusivamente pelas causas femininas nem também por outras causas que abraçou, como a campanha pelas eleições diretas na década de 80. “Eu ia lá e fazia. Me metia, me interessava, tentava ajudar. E para mim era tudo muito natural. Nunca me senti discriminada. Me sentia, sim, uma mulher que estava no lugar certo e na hora certa. Fazendo o que precisava ser feito”.
Hoje ela quer uma vida mais tranquila e menos badalação. Continua dedicando as temporadas de verão para sua casa em Torres (a que o casal tinha em Gramado foi vendida) e durante o ano se sente feliz vendo a casa no Morro Ricaldone sendo tomada pelos dois filhos, as duas noras e os quatro netos nos churrascos de finais de semana. “A estrela do meio-dia televisivo se tornou minha amiga, confidente, uma avó protetora de seus netos e uma espécie de minha irmã mais velha”, analisa Alice. Assim, à distância, Tânia pode continuar passando a seus seguidores e admiradores toda a sabedoria acumulada em quase oito décadas de vida bem vivida. Pode ainda fazer toda essa espécie de curadoria, esse coach de bem viver, mantendo-se feliz e relaxada. Será mais um feito na existência despudoradamente feliz que ela decidiu levar.
Afinal, ser Tânia o tempo inteiro também cansa.
A entrevistadora é entrevistada:
Apresentadora no Talk Show Dia da Mulher de 2020 no Teatro do Grêmio Náutico União
NÍCOLAS CHIDEM/arquivo/JC
JC - A maior influência na TV?
Tânia Carvalho - Te juro que nunca copiei ninguém. Acho que comecei uma nova maneira de apresentar TV e rádio.
JC - A melhor entrevista que fizeste?
Tânia - Bah! Muitas. Não gosto de escolher as melhores. Algumas engraçadas, outras trágicas, outras muito importantes.
JC - A entrevista que gostaria de ter feito?
Tânia - Com os Beatles.
JC - O melhor programa que fez?
Tânia - O Café TVCOM.
JC - O programa que gostaria de ter trabalhado?
Tânia - Estúdio i, com o Artur Xexéo.
JC - Um livro?
Tânia - Odeio listas "dos melhores". Adoro descobrir novos escritores e boa literatura.
JC - Um escritor?
Tânia - O que eu ainda não li.
JC - Um filme?
Tânia - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
JC - Uma música?
Tânia - As brasileiras de boa qualidade.
JC - O que acha da TV atual?
Tânia - Vejo muita notícia, Netflix. Não acho nada.
JC - O que te dá prazer hoje em dia?
Tânia - Estar com meu marido, filhos, noras e netos. E alguns poucos amigos. E basta!
JC - O que ainda gostaria de fazer?
Tânia - Ainda estou fazendo: aulas de inglês, história da arte e lerrrrrrrrrrrrrrrrrr sem parar.
JC - A maior saudade?
Tânia - Da minha mãe.
Tânia na TV
Participantes no início do programa Jornal do Almoço em 1972
/ACERVO PESSOAL TÂNIA CARVALHO/DIVULGAÇÃO/JC
- Jornal do Almoço (TV Gaúcha/RBS TV)
- PortoVisão (TV Difusora)
- Guaíba Feminina (TV Guaíba)
- Câmera 2 (TV Guaíba)
- Estação Cultura (TVE)
- Falando Abertamente (TVCOM)
- Café TVCOM (TVCOM)
- Gurias de Quinta (TVCOM)
* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.