O porto-alegrense Lupicínio Rodrigues (1914-1974) não se contentou com o status de maior compositor popular nascido no Rio Grande do Sul. Em 60 anos de vida e quase 40 de carreira, ele deixou a sua assinatura também como cantor, militante dos direitos autorais, empresário da noite, boêmio e pai-de-família, eventualmente desempenhando todos esses papéis ao mesmo tempo.
"Eu não sou músico, compositor, cantor, nem nada. Sou apenas um boêmio", desconversou em entrevista quando o seu coração já dobrava a última esquina. Modéstia. O fato é que a cadeira nunca está vazia quando se fala no maior autor de música popular brasileira parido pelo Rio Grande do Sul: depois dele, jamais surgiu na atividade outra assinatura de tamanha repercussão no mesmo Estado que gerou Radamés Gnattali, Conjunto Farroupilha, Teixeirinha, Elis Regina, irmãos Ramil e Adriana Calcanhotto, cada qual à sua mesa.
Doce e amargo, suave e intenso, direto e metafórico, simples e sofisticado, sozinho ou com seus 32 parceiros, o mestre da dor-de-cotovelo soube converter pequenos dramas - próprios e de terceiros - em pelo menos 286 sambas, valsas, sambas-canções, marchas, guarânias, xotes e outras bossas.
Essa produção abrange dezenas de joias hoje relegadas à poeira do esquecimento: Eu e meu coração, Eu não sou louco, Os beijos dela, Homenagem, Loucura, Maria Rosa, Cadeira vazia, Castigo e até mesmo a arrasa-quarteirão Vingança, gravada em 1951 e seu maior êxito comercial.
Muito por culpa de intérpretes preguiçosos para arriscar opções menos óbvias, outro tanto pelo ofuscamento diante das gemas de maior quilate: Felicidade, Se acaso você chegasse, Volta, Esses moços, Nervos de aço, Ela disse-me assim, Nunca, Hino do Grêmio. Essas permanecem na playlist do imaginário coletivo, esparramadas em plataformas digitais, discos, shows, trilhas sonoras e programas de rádio e TV, ainda que ouvintes desavisados possam supor que o cancioneiro do mais ilustre filho da comunidade da Ilhota se resuma a uma dúzia de "hits" - o que não seria pouca coisa, aliás.
Da obra geral, mais de 25% se desbotou até sumir, devido à falta de registros e pela morte de devotados guardiões orais como Johnson, Rubens Santos, Hamilton Chaves, Lourdes Rodrigues, Demosthenes Gonzalez, Zilah Machado, Valtinho do Pandeiro. Hoje não passam de meros títulos, dos quais se desconhece letra, música ou ambos. É o caso da marcha Carnaval, criada em 1927 por Lupicínio, um precoce guri de apenas 13 anos.
O assento de criador genial é mais do que merecido. Mas também pode ser pequeno para abrigar os vários Lupicínios que conviveram com o artista de jeito encabulado a rabiscar letras de música em pedaços de papel nos recantos da noite. Afinal, o boêmio criativo que tatuou o seu nome na história da música popular brasileira, mesmo sem tocar qualquer instrumento que não a caixinha de fósforos, multiplicou-se em cantor, funcionário público, militante dos direitos autorais, cronista de jornal, empresário da noite e até candidato a vereador. Às vezes, de forma simultânea.
Completam a folha-corrida as vivências de filho (o quarto de uma prole de 13 meninos e meninas do porteiro Francisco e da dona-de-casa Abigail), marido dedicado, pai por três vezes e avô em outras tantas. E amigo-do-peito, em uma lista de "camaradinhas" que abraçava músicos, empresários, jornalistas, políticos, funcionários públicos. Johnson, Adelaide Dias, Rubens Santos, Abraham Lerrer, Demosthenes Gonzalez, Hamilton Chaves.
A irmandade com este último é dimensionada pelo filho Ricardo Chaves, fotógrafo e editor da coluna Almanaque Gaúcho, do jornal Zero Hora: "Essa amizade começou quando ambos eram muito novos e gerou uma parceria musical e boêmia, apesar de Hamilton ser um abstêmio, adepto do guaraná. Em minha juventude, quando eu saía para beber um chope, não era incomum encontrar nos bares da cidade a mesma figura cuja casa eu já havia visitado com meu pai. Depois, com a câmera pendurada ao pescoço para a revista Veja, cobri o velório do Lupicínio e, pela primeira vez, testemunhei o velho chorando. Foi quando percebi, tarde demais: eu jamais havia feito uma foto de Lupicínio em vida, nem mesmo com o meu pai."
De bedel a cronista
Jovem militar, porteiro na Faculdade de Direito da Ufrgs e autor mestre da dor-de-cotovelo
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGA??O/JCSe acaso você chegasse na Faculdade de Direito em 1948, encontraria o compositor popular, ex-aprendiz de mecânico e ex-soldado Lupicínio Rodrigues, 34 anos, louco de sono e prestes a se aposentar precocemente do emprego de bedel (um misto de zelador e contínuo), por razões de saúde não esmiuçadas nos registros da universidade.
Tuberculose? Talvez. Coração? Com certeza sofrendo, de amores. E o cotovelo, como doía! Do lado de fora, havia desde 1946 o cargo de procurador regional da Sociedade Brasileira dos Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem) - que o acompanharia até o fim.
Também o aguardava uma carreira artística em ascensão, inaugurada "oficialmente" em 1936 com a primeira gravação de obra sua (o 78rpm de Triste história/ Pergunte aos meus tamancos) pelo parceiro gaúcho Alcides Gonçalves) e que atingiria o seu auge na primeira metade dos anos 1950, quando quase todos os medalhões da velha guarda já teriam inserido Lupi nos catálogos da Odeon, RCA Victor, Copacabana ou etiquetas de menor expressão. Fixado em Porto Alegre, mas com temporadas cada vez mais frequentes em São Paulo e Rio de Janeiro, ele via suas composições para lá de originais se alastrarem como coqueluche no País.
A guaiaca forrada pela arrecadação autoral (o melodrama Vingança lhe rendeu até carrão último-tipo) revelaria mais uma faceta: a de proprietário de bares, restaurantes e boates. Galpão do Lupi, Vogue Music, Churrascaria Lajes, Jardim da Saudade, Casa de Samba, o sugestivo Vingança. E os antológicos Batelão - com status de ponto turístico, instalado no sobrado nº 442 da avenida Cristóvão Colombo - e Clube dos Cozinheiros, onde o estalar de dedos substituía os aplausos, para driblar a falta de isolamento acústico na loja térrea de um prédio residencial da rua Garibaldi.
Lugares, por sinal, onde o dono nem sempre podia ser encontrado, apreciador que também era de casas concorrentes como os restaurantes Dona Maria e Treviso ou, mais tarde, os bares Adelaide's e Chão de Estrelas. Isso tudo somente de segunda a sexta-feira, porque Lupicínio era também um estrategista do assunto: registrada em papel-jornal nas 42 crônicas espirituosas que escreveu em 1963 para as edições de sábado do diário Última Hora, sua filosofia de botequim recomendava ao boêmio a saída de cena durante os fins de semana, a fim de recarregar a bateria. E enaltecendo a categoria: "Quase todo mundo caracteriza o boêmio como um indivíduo sem caráter, que não trabalha e vive a cometer desajustes. Nada disso. É um poeta, amoroso, admirador de serestas e da lua. Eu poderia citar uma grande relação de médicos, engenheiros, advogados e outros que também gostam das madrugadas. Boêmios, quase sempre, são artistas ou pessoas muito sentimentais. Há também mulheres boêmias, que sabem que é na noite que se faz música e o amor é mais amor. O Sol, com seu excesso de luz, parece não inspirar grandes idílios, o que a Lua consegue graciosamente com sua penumbra. Quanta gente só conhece a mudança da Lua pela folhinha!".
Pequena grande voz
Apesar do jeito encabulado, Lupi estrelou programas de rádio e TV e gravou discos elogiadíssimos
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCLupicínio Rodrigues foi, ainda, intérprete de sua obra (e de nenhuma outra), com uma performance que o recentemente falecido crítico Zuza Homem de Melio definiu em seu livro Copacabana (Editora 34, 2017) como "franzina porém contundente" naqueles tempos ainda presos à estética dos goeludos. Difícil imaginar alguém mais certeiro que Lupi em pessoa para dar voz - literalmente - a tantas dores-de-cotovelo "municipais", "estaduais" e "federais", na classificação inusitada do próprio autor, admirador confesso da suavidade do cantor carioca Mario Reis (1907-1981).
Menosprezado por ouvidos presos a padrões pré-bossanovísticos (um cronista gaúcho da Revista do Rádio chegou a acusá-lo de "se expor ao ridículo"), ele saía pela tangente: "Canto apenas para mostrar aos verdadeiros intérpretes como devem ser interpretadas as minhas músicas". Autoavaliação que não o impediu, contudo, de estrelar programas na antiga Rádio Farroupilha e emissoras paulistas como a Record, nos idos de 1952-1953, além de gravar discos como os elogiadíssimos Roteiro de um boêmio e Lupicínio Rodrigues e a Bossa Velha.
A boemia na política
Lupicínio Rodrigues, candidato a vereador
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCAinda sobraria disposição para letrar um jingle - rejeitado - para o magazine Guaspari (1948), compor o Hino do Grêmio (1953) e até se candidatar a vereador (1959). Convidado a entrar na disputa, Lupicínio achou que não tinha motivo nenhum para recusar uma tentativa de ingresso na política. Ela disse-me assim emplacava na voz do carioca Jamelão quando o boêmio número 1 de Porto Alegre entrou na disputa ao Legislativo municipal pelo Partido Republicano (PR), pequena sigla que dava guarida a diversas tendências de esquerda - inclusive a remanescentes do então extinto Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Sem gastar muito dinheiro, ele converteu o seu Oldsmobille preto em comitê ambulante, mandou colocar uma faixa na avenida Borges de Medeiros, participou de comícios e soltou declarações à imprensa. "Minha campanha é baseada na amizade. Sou conhecido por minhas canções mas nunca tive oportunidade de servir à minha terra. Se vencer, tratarei da criação de uma creche para as mães solteiras e poderei fazer alguma coisa pela gente da noite, com a qual passo as horas mais gostosas de minha vida. Caso eu perca, ao menos terei feito boa propaganda de minhas composições."
Em meio a outros candidatos sem vinculação à vida noturna e com reconhecida popularidade (Marino dos Santos, Larry Pinto de Faria, Alberto André), o resultado foi um fracasso nas urnas, com 396 votos insuficientes para a conquista de um mandato, no mesmo pleito que reconduziu Loureiro da Silva à prefeitura da Capital. No ano seguinte, a Revista do Globo chegou a mencionar uma possível ida de Lupi para a vereança como suplente, cogitação que não se confirmaria. Nem se Deus mandasse, nem mesmo assim, Lupi jamais voltaria a colocar o seu nome em uma cédula.
O boêmio não renuncia
Na casa na Otto Niemeyer, com horta e animais, preparava almo?o para mulher e filhos
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGA??O/JCTestemunha e protagonista de uma Porto Alegre hoje aposentada pelo tempo, Lupi entrou na década de 1960 produtivo, com antigas ou novas composições (Exemplo, Homenagem, Sozinha) e militando firme na área do direito autoral. E sem abdicar da presença em palcos paulistanos e cariocas, com plateias lotadas e críticas positivas, mesmo amargando certo ostracismo na sua própria terra, em meio à concorrência ostensiva com novidades que tornavam a sua geração obsoleta para os "brotos", mais interessados em opções como bossa nova, rock, jovem guarda, tropicália e a MPB politizada das canções de protesto.
Também soube, como poucos, conciliar os papéis de pai-de-família, trabalhador e frequentador da noite. "O verdadeiro boêmio não renuncia", já decretara em uma de suas crônicas. Em moto-contínuo, dedicava as manhãs ao descanso e às lides domésticas em sua casa na avenida Otto Niemeyer (Zona Sul), com direito a horta e animais de fazenda, preparava o almoço para mulher e filhos (nas panelas, o trivial caprichado como especialidade) e, depois da sesta, dirigia até o Centro da cidade, onde o escritório da Sbacem servia de ponto de partida para a "via sacra" pelos endereços da noite.
Até a pé nós iremos, para o que der e vier: no "lado B" das fotografias do sujeito sentado à mesa de casas lendárias (e há muito tempo extintas) como o bar Adelaide's ou os restaurantes Treviso e Dona Maria, estão relatos sobre o caminhante e motorista temerário das madrugadas, com Orlando "Johnson", Antoninho Onofre, Rubens Santos, Hamilton Chaves, Abraham Lerrer, Demosthenes Gonzalez e outros cúmplices. "Nem que fosse preciso enfrentar em casa, às 4h da manhã, os sermões de Dona Cerenita, sempre atenta ao relógio", relembraria Johnson em entrevista já na década de 1990.
Saideira
Obra do compositor foi revalorizada no começo dos anos 1970
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCPendurar as chuteiras? Nunca, nem que o mundo caísse sobre ele! Lupicínio, que não era de reclamar, seguiu rimando dores e amores em seu jardim da saudade, até ser revalorizado no começo dos anos 1970. Por uma dessas ironias do destino, um dos fatores decisivos para o novo impulso à carreira seriam justamente as regravações de sua obra por jovens artistas - Elis Regina, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Paulinho da Viola, Caetano Veloso. Até o próprio compositor voltaria aos estúdios para reprisar a sua voz em Dor-de-Cotovelo (1973), seu derradeiro disco de inéditas.
Não lhe faltariam, também, entrevistas e aparições na mídia, incluindo uma longa charla ao jornal alternativo O Pasquim e o protagonismo de uma edição do programa MPB Especial da TV Cultura, hoje uma das raras imagens do artista em plena ação. Mas a Dona Divergência entre vida e morte é infiel, com nervos de aço e sem sangue nas veias. Às 13h do dia 27 de agosto de 1974, ela pediu a saideira, no Hospital Ernesto Dornelles, faltando poucas semanas para os 60 anos do paciente, em 16 de setembro. Na comanda, complicações do diabetes e problemas no coração - sempre ele.
Passados 107 anos de seu nascimento e quase meio século desde que partiu, Lupicínio Rodrigues continua sem constar em qualquer placa de rua na Porto Alegre que tanto amou. Exceto pelo nome e sobrenome em uma vila popular, um centro municipal de cultura, uma praça e um auditório na Faculdade de Direito da Ufrgs, a cidade ainda não fez o merecido jus a esse personagem multifacetado como homem e artista. Enquanto isso, o seu endereço continua lá detrás do mundo, onde o pensamento parece uma coisa à toa.
Entra, meu amor, fica à vontade...
Boate Vogue e bar e restaurante Batel?o constavam na lista de estabelecimentos do compositor
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGA??O/JCBoêmio empreendedor, Lupicínio Rodrigues também esteve nas duas faces do balcão, como dono ou sócio de estabelecimentos da noite local entre 1948 e 1974. "Era como se uma pulga comprasse um cachorro só para ela", divertiu-se o parceiro Demosthenes Gonzalez no livro de memórias Roteiro de um boêmio (Editora Sulina, 1986).
A saga começou com uma churrascaria comprada de amigo, negócio atribulado por erros que se repetiriam em outras jogadas: além de empregar o ex-dono como gerente, fazia vista-grossa aos "penduras" e, pecado quase tão grave, insistia em frequentar a concorrência - como cliente. "Nossas finalidades são culturais, bebericais e culinárias. Religião e política é proibido discutir", desconversava.
Esse enredo paralelo chegou ao auge na segunda metade da década de 1960, tendo como sócio o também cantor Rubens Santos nos bares-restaurantes Clube dos Cozinheiros e Batelão, pontos turísticos informais e procurados inclusive por artistas forasteiros em turnê na capital gaúcha. Na entrada do primeiro, uma placa advertia aos pobres de espírito: "Quem fala quando alguém faz música, coloca a própria ignorância na vitrina - Provérbio chinês".
Veja a lista de bares, restaurantes e boates de Lupi:
ARTE/JC
O show não pode parar
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ANDRÉ FELTES/DIVULGAÇÃO/JCVida e obra de Lupicínio Rodrigues têm sido tema de discos, musicais para teatro, especiais de TV, curtas-metragens, reportagens, livros, ensaios e teses acadêmicas ao longo das últimas décadas. O que não deixa de ser uma ironia e tanto, em se tratando de um gênio musical e poético de instrução formal limitada aos anos iniciais do ensino primário.
Pelo menos dois projetos já em andamento prometem reacender os holofotes sobre o mais brasileiro dos compositores do Rio Grande do Sul: uma nova biografia e um documentário de longa duração. "Tenho recolhido informações e materiais sobre Lupicínio há 30 anos e ainda hoje encontro pequenas surpresas a todo momento", conta o músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria, que prepara para 2022 uma versão literária de uma tese de doutorado em Literatura Brasileira pela Ufrgs, a ser apresentada neste semestre, sob coordenação de Luís Augusto Fischer.
O outro mergulho é Nervos de aço, título provisório de um audiovisual da Plural Filmes, ainda sem data de lançamento. "Até agora, já realizamos 25 entrevistas e gravações e ainda tempos várias outras, incluindo Elza Soares, Caetano Veloso e Gilberto Gil", detalha a produtora-executiva Márcia Paraíso.
* Marcello Campos é formado em Jornalismo e Publicidade e Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem seis livros já publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues (Almanaque do Lupi, Editora da Cidade/SMC, 2015) e do Conjunto Melódico Norberto Baldauf. Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, locais e personagens porto-alegrenses. Em 2019, obteve o 2º lugar e uma menção honrosa no Prêmio ARI com duas reportagens culturais para o Jornal do Comércio.