Desde que Porto Alegre passou a ser capturada pela fotografia, na década de 1850, o processo físico-químico (e posteriormente eletrônico) de fixar imagens resultou em um número incalculável de registros visuais de lugares, pessoas e acontecimentos públicos ou privados. Também revelou - o trocadilho é inevitável - mestres em aliar os aspectos documental e estético, fazendo de suas assinaturas uma referência em tempos de preto-e-branco. Luigi Terragno. Virgílio Calegari. Irmãos Ferrari.
Sioma Breitman. Léo Guerreiro. Pedro Flores. O amador Luiz 'Lunara' Ramos.
Por trás da câmera também atuou outro diletante: Jacob Prudêncio Herrmann (1896-1967), nascido na capital gaúcha e que tem a sua obra agora resgatada por meio de uma abrangente plataforma digital, após meses de trabalho a cargo de uma equipe multidisciplinar. São mais de mil cliques, a maioria retratando a metrópole e outros cenários das décadas de 1930-1940, sob o olhar aguçado de um contador que fez dos passeios com sua câmera alemã Zeiss-Ikon uma contribuição e tanto para a crônica visual de uma cidade em seus últimos suspiros pré-modernidade.
Nada mal para um "guarda-livros" que fazia da fotografia um passatempo sem fins lucrativos, conforme detalha o neto e artista plástico Jorge Herrmann, curador do acervo: "O fato de ter sido um fotógrafo de fins de semana, devido a seu cotidiano profissional, jamais o limitou. Foi registrando tipos humanos, costumes, eventos, paisagens e fatos do dia-a-dia com sensibilidade surpreendente para alguém cuja rotina profissional era lidar com números e cálculos. Talvez ele não tivesse exatamente essa ideia a seu próprio respeito, mas a análise de suas fotografias permite concluir que se tratava de um artista, ainda que intuitivo".
Outras qualidades são mencionadas pela pesquisadora Luzia Rodeghiero, da equipe responsável pelo projeto: "É possível que sua habilidade em serviços contábeis tenha contribuído para que Jacob tivesse um perfil metódico e extremamente organizado também como fotógrafo amador. Em cada um dos envelopes em que armazenava seus negativos de vidro, constam informações como local, data e horário, tempo de exposição e dados técnicos como abertura do diafragma da câmera. Tais características se uniam a uma grande capacidade de pensar formas e recursos necessários para capturar o instante".
Ela salienta, ainda, a participação de Jacob no Photo-Club Helios (1907-1949), fundado por imigrantes alemães ligados ao Turnerbund, renomeado Sociedade de Ginástica Porto Alegre (Sogipa) em 1942. Reunindo entusiastas da fotografia artística, o Helios teve em figuras como o próprio Jacob uma atuação fundamental inclusive para a sobrevida do grupo em meio às restrições impostas pelo governo do presidente Getúlio Vargas a atividades germânicas, italianas e japonesas em território brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Um passado colorido, traduzido em preto, branco e tons de cinza
Espaços icônicos da Capital, como a Ponte de Pedra, foram registrados por Jacob Herrmann nos anos 1930 e 1940
/JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
Imagem latente como a do papel fotográfico imerso em bacia de emulsão química sob a luz vermelha de um laboratório artesanal, a trajetória de Jacob Prudêncio Herrmann surge desfocada pela falta de dados mais precisos. Sabe-se que esse descendente de imigrantes alemães do Vale do Sinos era filho de uma dona-de-casa e de um especialista na confecção e reparo de colchões. Criou-se com os três irmãos na Zona Norte de Porto Alegre, foi casado, pai de três filhos e morador da rua Hoffmann (bairro Floresta), onde também trabalhava como guarda-livros na fábrica de bebidas Thofehrn, pertencente ao sogro.
Memórias familiares apontam para o contraste entre a sisudez da atividade contábil e uma sensibilidade artística manifestada desde a juventude. "Apesar de seu perfil reservado, meu avô atuou como percussionista de tímpanos na orquestra Club Haydn e sabia tocar cítara, além de escrever poesias humorísticas em alemão ou português, com desenhos de próprio punho e recitadas em casamentos, batizados e outras festas particulares", contribui a cantora e professora aposentada Marlene Goidanich. "Ele também recebeu prêmios por outro de seus hobbies, o cultivo de orquídeas."
Entre mais de mil fotografias do acervo de Herrmann, há registros da passagem do Zeppelin em Porto Alegre, em 1934
JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
A guinada de Jacob rumo à fotografia coincide com sua única viagem à Alemanha, em 1929, acompanhado da esposa e dos dois primeiros filhos. No país europeu em crise econômica no período entre-guerras, ele comprou uma câmera Zeiss-Ikon portátil, modelo com fole, estreada lá mesmo, em Berlim. Deflagrava-se ali, aos 33 anos, um envolvimento que resultaria em mais de mil imagens hoje conhecidas e cujo diálogo entre forma e conteúdo permite imaginar várias dessas peças emolduradas em galerias de arte.
De volta à capital gaúcha, Jacob fez da máquina uma companheira inseparável nos momentos de folga, inclusive durante viagens ao Interior e Litoral do Rio Grande do Sul e, eventualmente, Santa Catarina. Gente e lugares - ou ambos - não escapavam ao olhar aguçado, o clique oportuno e a técnica aprimorada com disciplina germânica, que logo evidenciaram o talento para traduzir em preto, branco e cinza o colorido de uma realidade capturada em flagrantes do cotidiano, retratos, naturezas-mortas e cenas especialmente montadas diante da lente.
Amador meticuloso
Herrmann retratou paisagens urbanas, como o Arroio Dilúvio na João Alfredo
/JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
Negativos - a maioria em chapas de vidro - e ampliações (feitas no pequeno laboratório improvisado em sua casa na rua Hoffmann, bairro Floresta) eram acondicionados em envelopes com pormenores típicos de um zeloso guarda-livros, sinalizando uma prática amadora, porém levada a bastante a sério. Sua foto mais icônica, de um menino no passeio coberto do Viaduto da avenida Borges de Medeiros (Centro de Porto Alegre), é citada pelo neto Jorge Herrmann, curador do acervo: "Consta na anotação que a criança é Curtz, seu filho do meio, clicado às 10h30min do dia 8 de janeiro de 1933, um domingo. Isso sugere que havia um estudo prévio para se obter o efeito de luz desejado, em um momento de pouca movimentação de pedestres".
Espaços hoje urbanizados - como a rua Carlos Huber, no bairro Três Figueiras - surgem bucólicos nos registros de Jacob Herrmann
JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
Paisagens urbanas, aliás, foram um dos temas preferenciais de Jacob. O arquiteto Analino Zorzi, membro da equipe responsável pelo resgate do acervo, destaca a contribuição para a memória dos elementos construtivos que deram o tom ao processo de transfiguração da cidade na primeira metade do século XX. "Entre a variedade de imagens clicadas, percebe-se o desenvolvimento de Porto Alegre, por meio de registros que colaboram para a conscientização sobre o valor cultural das ações humanas e para o fato de que somente pelo entendimento do passado construiremos o futuro".
Essa avaliação é corroborada por colegas da equipe. "Com imagens que são pura poesia, o acervo permite compreender a evolução de uma Capital que, se não existe mais, ao menos pode ser conhecida em suas mais diversas funções, morfologia e tipologias, bem como seus habitantes e costumes ao longo do tempo em que Jacob os fotografou", depõe a pesquisadora Kátia Becker Lorentz. As museólogas Eroni Rodrigues e Isabel Ferrugem seguem na mesma linha: "Trata-se de uma valiosa fonte primária de informações".
Câmera no armário
Jacob Herrmann também registrou cenas cotidianas no interior de residências
/JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
É uma pena que o esmero de Jacob Prudêncio Herrmann com o acervo não tenha se estendido a um registro testemunhal sobre a sua dedicação à fotografia. Tal lacuna dificulta o entendimento do motivo pelo qual cessou a atividade, na segunda metade dos anos 1940. Ao menos dois fatores são cogitados para explicar a interrupção: a escassez (e encarecimento) de insumos no contexto pós-Segunda Guerra Mundial e um possível desestímulo a partir da extinção do já mencionado Photo-Club Helios, no qual ele foi um dos membros mais ativos. "Ou, talvez, meu avô tenha sido atraído por outros interesses", supõe Jorge Herrmann.
Com a morte de Jacob aos 71 anos, dias após um acidente de carro na esquina da avenida Cristóvão Colombo com a rua Coronel Bordini, em 1967, o acervo permaneceu disperso entre pertences familiares. Até que, no início da década de 1990, o filho caçula, Bruno Herrmann (pai de Jorge), expôs algumas peças no Colégio Farroupilha. Em 2002, uma segunda mostra - bancada pelo Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte) - inaugurou a galeria Virgílio Callegari, na Casa de Cultura Mario Quintana. Novas luzes também seriam lançadas em 2018, com um trabalho de conclusão acadêmica de Eroni Rodrigues no bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Foto internas da casa na rua Hoffmann mostra técnica apurada de Jacob
JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
A iniciativa levou ao plano de um site capaz de proporcionar merecida moldura à obra e trajetória do fotógrafo. Realizado em parceria com o Cineclube Torres no papel de proponente, o projeto tomou forma durante a pandemia de coronavírus, avançando em 2022 com a obtenção de recursos dos governos federal e estadual, por meio da Lei Paulo Gustavo de incentivo à cultura. Uma equipe de especialistas se debruçou sobre o legado iconográfico, agora reunido, catalogado, digitalizado e compartilhado em jacobherrmann.com.br (NOTA: até às 17h45min do dia 25 de abril, o link ainda não havia sido colocado no ar).
Com acesso público e gratuito, a plataforma digital - que já pode ser conferida livremente pelo público - foi apresentada em primeira-mão na noite desta quinta-feira, 24 de abril de 2025, com um evento especial para convidados no Museu da Ufrgs, em Porto Alegre. A coleção que ressurge, contextualizada por referências históricas e análises interpretativas, proporciona novos flashes sobre um trabalho cujo olhar apaixonado de seu autor cruza as linhas do tempo na velocidade de um clique.
Equipe emoldurada
Uma das imagens mais icônicas de Jacob Herrmann, registrada no Viaduto Otávio Rocha em 1933
/JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
Sob o título Jacob Prudêncio Herrmann - O Olhar Revisitado, o projeto de resgate da obra de um dos mais inspirados fotógrafos amadores de Porto Alegre é resultado da dedicação de dez profissionais de diferentes áreas e merecedores de retrato na parede.
• Analino Zorzi: pesquisa arquitetônica sobre evolução urbana.
• Carolina Marzulo e Ana Vieira: gestão de divulgação em redes sociais.
• Claudia Herrmann e Jeff Minchef: organização e apresentação do projeto em escolas públicas de Porto Alegre.
• Eroni Rodrigues e Isabel Ferrugem: pesquisa museológica, indexação, reorganização e catalogação do acervo.
• Jorge Herrmann: digitalização do acervo, curadoria, pesquisa, coordenação interdisciplinar e palestras.
• José Nilton Teixeira: roteiro e locução do serviço de audiodescrição do site.
• Kátia Becker Lorentz: pesquisa histórica sobre processos fotográficos.
• Luzia Costa Rodeghiero: pesquisa histórica sobre o fotoclubismo no Rio Grande do Sul.
• Silvia Abreu: divulgação e assessoria de imprensa.
• Tommaso Mottironi: produção executiva, digitalização e acondicionamento do acervo, geração do website, diagramação e design gráfico de material impresso.
Registro de um gari, na Julio de Castilhos, é uma das imagens de Jacob Herrmann incluídas em plataforma digital
JACOB HERRMANN/REPRODUÇÃO/JC
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.
Continue sua leitura, escolha seu plano agora!