Apesar da brevidade de sua passagem pela vida, palcos e estúdios de gravação, a talentosa cantora, compositora e multi-instrumentista Ana Maria Mazzotti deixou sua marca como um bólide iluminando o céu numa noite de trevas. A incandescente trajetória que a caxiense nascida em 17 de agosto de 1950 então cumpria teve sua melodia repentinamente abreviada em 1988, pelo impiedoso câncer que ceifou-lhe a vida precocemente aos 37 anos. A prodigiosa menina começou a tocar acordeão aos cinco anos de idade, antes que passasse para o aprendizado do piano. Quando fez 21 passou a liderar o principal coral religioso de Bento Gonçalves, município onde recebeu sua criação.
Em meados dos anos 1960, a jovem Ana notabilizou-se na época ao liderar um conjunto de versões para músicas dos Beatles, o Merseybeat Ensemble, que tinha em sua formação apenas integrantes mulheres. Quatro anos depois, em 1968, a empoderada bandleader assumiu a liderança do octeto Desenvolvymento, criado ao lado de seu companheiro, o baterista e produtor cearense Romildo Teixeira Santos. Em reportagem publicada em 1975 na revista O Cruzeiro, o grupo foi considerado o "mais sofisticado" em atuação naqueles dias no Rio Grande do Sul.
Embora prolífica compositora, a discografia de Ana Mazzotti resume-se a dois álbuns de estúdio lançados na década de 1970: Ninguém Vai Me Segurar de 1974 e o autointitulado Ana Mazzotti, de 1977. Neste mesmo ano, a faixa Canto de Meditação, de sua autoria, foi incluída na trilha sonora da novela da Rede Tupi O Profeta.
Em 1982, de forma independente, a compositora lançou o LP Ana Mazzotti ao Vivo, com gravação realizada no Festival de Verão do Guarujá. O talento de Ana começou a ganhar maior visibilidade e reconhecimento a partir de 2019, quando seus dois primeiros discos tiveram reedição em LP e CD pelo label inglês Far Out Records.
Na opinião do entusiasta de música brasileira Joe Davis, idealizador da Far Out, uma artista tão imaginativa e única quanto Ana Mazzotti não aparece com frequência. "Os dois discos deixados por ela são duas joias de samba-jazz fascinante, funk lisérgico e bossa nova alucinante que permaneceram relativamente obscuras ao longo dos anos", diz o britânico.
O professor de piano Guilherme Fronchetti Pelliccioli observa, entre outros atributos, que além de ser dona de uma voz afinadíssima, rebuscado gosto musical e fino trato ao piano, Mazzotti sempre buscou dialogar com as mais variadas tendências musicais em voga no decorrer de sua carreira. "Seja nas letras de suas geniais músicas, regravações e arranjos, em seus timbres modernos, seus improvisos criativos ou nas sofisticadas harmonias, Ana Mazzotti é atualíssima", enaltece Guilherme.
Já a cantora e compositora riograndina Paola Kirst diz ter descoberto a obra de Ana Mazzotti por intermédio do rapper Zudizilla, o qual sugeriu a ela certa vez que, do repertório dela, cantasse a música de letra antirracista Bairro negro. "A partir daí me apaixonei e fui procurar sobre ela", conta Paola. Uma das coisas que lhe arrebatou na arte musical de Ana Mazzotti, ela acrescenta, é o fato de que não apenas compunha com qualidade e bom gosto, mas era ainda uma grande cantora e intérprete e uma super pianista. Sem contar a postura provocativa nas performances ao vivo.
Tendo ao seu lado o compositor Antonio Villeroy em 2019 no espetáculo Concerto com Sotaque do Sul, Paola Kirst entoou uma interpretação sua para Brasis, canção de autoria de Ana Mazzotti que não possui nenhum registro oficial nos discos por ela lançados. "Brasis chegou pra mim através dos poucos registros que se tem em vídeo dela tocando e cantando ao vivo com seus parceiros. Nesta canção, Ana evidencia as maravilhas naturais do nosso País e traz muito da cultura indígena em uma letra que é uma verdadeira declaração de amor: 'Água-marinha jabuti /Porco piranha arara / Canavial ou bem-te-vi? virou inchada /Nós jerimum cocada / Manaquiri roçada /Todos hagás dos meus brasis'".
Inventividade documentada
Ana Mazzotti, em foto usada para a capa de documentário lançado em 2017: música da caxiense hoje é cult no exterior
FAR OUT RECORDINGS/DIVULGAÇÃO/JC
Com direção de João Boaventura e Breno Dalla Zen, o documentário Sou Ana Mazzotti de certa forma antecipou-se audiovisualmente ao culto estabelecido a partir da descoberta da tão sui generis quanto diminuta discografia da multifacetada artista caxiense. No filme lançado em 2017, o ponto de partida dessa história tem início na infância interiorana de Mazzotti e encerra-se em seus últimos dias no Rio de Janeiro. Para cobrir as imagens do filme nos seus 37 minutos de duração, os documentaristas dispuseram de um riquíssimo acervo fotográfico e documental, cedido pelo filho da cantora, Toni Mazzotti. Participam do documentário, entre outras importantes personalidades, nomes como Hermeto Pascoal, o produtor cultural Cláudio Troian e Lucinha Mazzotti, irmã de Ana e também cantora e compositora.
A respeito da popularidade da ilustre cidadã da região da Serra do Rio Grande do Sul entre seus próprios concidadãos, Breno Dalla Zen afirma que em Caxias do Sul quase ninguém conhece essa que é uma de suas filhas mais pródigas. "Exemplo disso é que o documentário Sou Ana Mazzotti é apreciado com grande interesse por pessoas de fora e (não desperta) quase nenhum interesse, seja por seus conterrâneos de Caxias do Sul ou Bento Gonçalves, seja no restante do Estado do Rio Grande do Sul". Dalla Zen acredita que isso aconteça justamente devido a uma "crise de identidade" típica do senso de pertencimento dos gaúchos, que no caso da música, ele discorre, está mais associada ao cancioneiro tradicionalista - o que, deste modo, acaba muitas vezes excluindo a possibilidade de se apreciar expressões artísticas mais diversificadas.
A realização do documentário, acredita Breno Dalla Zen, contribuiu sobretudo para que a história de Ana Mazzotti se tornasse minimamente mais conhecida, despertando interesse de mais pessoas no centro do País e até mesmo em outros países, onde a compositora construiu significativa base de fãs. O documentário Sou Ana Mazzotti, ainda observa, fez sua estreia antes de a Far Out Records ter realizado os relançamentos discográficos da cantora e compositora. "Antes disso, a discografia da Ana estava no limbo, não constando em plataformas de streaming e disponível de forma perdida no YouTube, com faixas fora de ordem e sem indicação de ano e álbum".
'Cálice sagrado'
Ana Mazzotti no começo da carreira, com o conjunto Merseybeat
ACERVO PESSOAL TONI MAZZOTTI/REPRODUÇÃO/JC
Principal e mais atuante empresa no ramo de produção de vinis no mundo abrangendo uma gravadora, uma fábrica de prensagem e uma revista online, a Vinyl Factory (que trabalha sob égide da tríade "álbuns perdidos, cálices sagrados e compilações que definiram gêneros musicais mundialmente") reconheceu de imediato o valor musical de Ana Mazzotti. A cada final de temporada, a Vinyl Factory (casa discográfica de artistas, por exemplo, como Pet Shop Boys) faz a divulgação, acompanhada de resenhas, de uma acurada lista dos que, segundo seus critérios, são os 30 melhores relançamentos do ano.
No ano de 2019, o relançamento que o selo Far Out Recordings fez de Ninguém Vai Me Segurar figurou na lista, colocando Anna Mazzotti e seu álbum ao lado de reverenciados artistas como Aretha Franklin e Patrick Cowley e seus respectivos discos Amazing Grace: The complete recordings e Mechanical Fantasy Box. O texto que acompanha a resenha sobre Ninguém Vai Me Segurar assinala que a multi-instrumentista e compositora Ana Mazzotti "trabalhou com membros dos pesos pesados do jazz-funk Azymuth, ao lado dos quais ela deveria ter sido lembrada como uma força formidável na música brasileira". "Lutando contra o sexismo institucional dentro da indústria, as gravações de Mazzotti nunca alcançaram o público que sua sofisticação merecia, mas agora passaram a representar um ponto alto em outro ano estelar de lançamentos musicais feitos pela Far Out Recordings", diz o texto da Vinyl Factory.
Gema dezoito quilates
Gravação de 'O filho do homem' foi encontrada em arquivos e virou elogiado single
ACERVO PESSOAL TONI MAZZOTTI/REPRODUÇÃO/JC
Com lançamento em 2021 pelo selo britânico especializado em obscuras preciosidades da música brasileira Far Out Recordings, a até então inédita canção O filho do homem saiu como single, sendo de imediato saudado como preciosidade pelos entusiastas da obra de Ana Mazzotti mundo afora. Caso do conceituado pianista paraibano Salomão Soares, o qual diz ter ficado completamente impactado quando ouviu o som da Ana Mazzotti pela primeira vez. "'Quem é essa mulher? De onde veio?' Fui correndo atrás de mais músicas dela e, quanto mais ouvia, mais impressionado ia ficando. Que pena que sua vida foi tão curta, porque, sem dúvida, ela é uma das artistas mais incríveis que já passaram por este mundo", elogia.
Trata-se O filho do homem da única gravação de estúdio realizada por ela na década de 1980 de que se tem conhecimento, e inclui-se na safra de composições inéditas que Mazzotti e banda apresentaram em programas de televisão daqueles tempos, como o há muito extinto Especial MPB (cuja transmissão era feita na época pela TVE do Rio de Janeiro).
Essas apresentações evidenciam, por sua vez, que àquela altura de sua breve carreira Ana Mazzotti, sempre aberta e afeita às mutações sonoras, havia adicionado doses de ousadia e experimentalismo em sua música - sem que, com isso, ficassem comprometidos os componentes principais de samba, jazz e funk que caracterizaram os dois álbuns de estúdio por ela gravados ao longo da década de 1970.
A partir da renovada apreciação do legado musical da compositora e das reedições de seus dois álbuns de estúdio, seu filho Toni Mazzotti foi compelido a reexaminar o arquivo de artefatos que ele herdou de seus pais. Entre os LPs, folhas de acordes, fotos e gravações em VHS, Toni tropeçou em um misterioso rolo de fita, que ele rapidamente despachou para o escritório da Far Out em Londres. No caso de O filho do homem, Toni e a equipe da Far Out ficaram encantados ao descobrir que a fita misteriosa era uma nebulosa joia de jazz-funk, gravada por sua mãe durante o crepúsculo de sua curta carreira.
Ninguém segura Ana
Foto escolhida para a capa do álbum independente Ana Mazzotti Ao Vivo (1982)
ACERVO PESSOAL TONI MAZZOTTI/REPRODUÇÃO/JC
Em 1974, Ana Mazzotti fez a gravação de Ninguém Vai Me Segurar, seu primeiro álbum, recrutando para cuidar dos arranjos o requisitado maestro José Roberto Bertrami (tecladista da formação original do grupo brasileiro de jazz-funk Azymuth). Além de tocar órgão, piano e sintetizadores, Bertrami possui co-autoria em várias faixas presentes no repertório. O line-up de músicos que atuaram na gravação do disco ainda contou com as presenças do baixista Alex Malheiros (também integrante do Azymuth) e do percussionista Ariovaldo Contesini. A produção de Ninguém Vai Me Segurar ficou por conta do baterista Romildo Santos.
Com sessões de gravação realizadas no mitológico Estúdio Haway (onde também marcaram presença fundamentais nomes da música brasiliera de diferentes gerações como Cartola, Jamelão, Elza Soares, Fagner, Alcione, Fafá de Belém e Novos Baianos), o disco foi gravado na mesma época em que, nos mesmos domínios, o conceituado Azymuth fez o registro de seu primeiro e homônimo álbum. Não é de admirar-se, portanto, que a estética do grupo pioneiro do samba jazz-funk faça-se presente em vários detalhes sonoros, incorporados nas sensacionais canções criadas por Ana Mazzotti e tornando-as, assim, ainda mais bonitas e poderosas.
Passados três anos da concepção e gravação de Ninguém Vai Me Segurar, a compositora levou seu primeiro álbum de volta ao estúdio e de lá saiu com um autointitulado disco, que, em relação ao lançamento anterior, continha uma nova ordem de execução das faixas. Em sua cintilante capa, o LP Ana Mazzotti, por sua vez, apostou numa arte de clima noturno. O remodelado álbum ainda acrescentava ao repertório original uma nova faixa: a carnavalesca Eta, Samba Bom, substituindo no repertório original a versão de Ana para Feel Like Making Love (por muitos considerada a mais perfeita dentre todas as versões que a música ganhou através dos tempos), de autoria do produtor Eugene McDaniels e originalmente gravada pela soulwoman Roberta Flack.
O disco também inclui em seu repertório canções de Ana Mazzotti nas quais ela demonstra sua preocupação com temas como o racismo, caso de Bairro negro e sua letra com inspiração em um filme norte-americano: "Mas tão branca quando meu cantar / Troco os lados, sou traidora agora / Que adora a cor que não pode mudar /Louvo a terra que compôs teu nome / Louvo o pai que soube te pintar / Desta cor tão negra como a terra / Mas tão viva quanto o sol no mar /Esquece a raça, a cor, a desavença / Dá teu peito preu me consolar / Envolve em laços meu rosto pequeno / Esquece a dor, é hora de amar".
Ana Mazzotti recupera o ar refrescantemente descolado e cool que marcou o estilo vocal da cantora caxiense sem, no entanto, esvair de seus sulcos a mágica energia por ela retida em sua estreia discográfica. O segundo álbum resulta numa fascinante coleção musical na qual hábil e melodiosamente se enredam gêneros como samba-jazz, bossa psicodélica e funks de nacionalidade brasileira dos mais sofisticados. Conduzindo tudo isso, a exuberância melodiosa do piano elétrico dedilhado por Ana, a qual combina sobremaneira com a texturizada produção dada ao disco, que remete o ouvinte diretamente (e sem escalas) para a década de 1970.
O cometa Ana Mazzotti
Ana Mazzotti em uma das poucas fotos ao lado do grupo Azymuth (no caso, com o baixista Alex Malheiros), provavelmente datada de 1977
FAR OUT RECORDINGS/REPRODUÇÃO/JC
Por Lúcio Brancato (jornalista e responsável pelo canal Altos Play no YouTube)
Quando vemos um cometa na nossa órbita sabemos que ele percorreu um longo caminho, mas o que os nossos olhos assistem é o seu último brilho antes de se dissipar. Assim foi a trajetória da Ana Mazzotti. O começo de sua vida musical já é assombroso. Aos seis anos tocava harmônio nas missas de Bento Gonçalves, cidade para onde a família se mudou quando Ana tinha três anos de idade. Com oito, inicia os estudos de acordeom e participa como cantora no coral da igreja. Já com dez, acompanhava cantores líricos tocando órgão em casamentos. Aos quatorze anos assume como organista oficial do coral da igreja. Com apenas dezoito anos, já era regente de seis corais na região de Bento.
É incrível como até hoje a música instrumental brasileira é sempre mais reconhecida e valorizada no exterior. Os eternos pesquisadores e colecionadores da nossa música, na última década, descobriram também os poucos discos dela lançados oficialmente - foram dois álbuns de estúdio e um ao vivo. Os álbuns originais viraram itens de colecionador no mundo inteiro, atingindo verdadeiras fortunas no mercado. As cópias cada vez mais raras ganharam um fôlego com o relançamento dos dois primeiros discos pelo label britânico Far Out Recordings, do pesquisador e entusiasta da música brasileira Joe Davis.
Desde sempre a música brasileira foi mais valorizada no exterior, principalmente a música instrumental. O número de pesquisadores e interessados na nossa música parece muito maior lá fora. Como o mercado nacional de discos parou nos anos 1990 - e só retomou com força depois da primeira década dos anos 2000 - muitos discos ficaram no limbo por aqui e nunca mais foram relançados. Essa cultura do vinil nunca parou em outros países na Europa, EUA e Ásia. Acredito que pesquisadores e selos independentes começaram a vasculhar novidades para atender essa demanda de música brasileira mais "nichada" para colecionadores e entusiastas da nossa música, atendendo essa fatia de mercado.
Ana Mazzotti atende muito bem os amantes da nossa música instrumental e da nossa canção. Ela tem qualidade na harmonia e na melodia, onde, mesmo não entendendo a letra, a riqueza melódica - somada ao improviso e harmonia - contempla perfeitamente quem busca qualidade. Pra mim, segue um mistério como o interesse nela voltou com força no exterior, refletindo somente há poucos anos aqui no Brasil, e ainda assim em pequenas bolhas. Com isso, os poucos discos originais que ainda existem foram tão valorizados - e, seguindo uma tendência mundial, selos independentes começaram a relançar esses trabalhos, garantindo um preço final menor dos que os originais e dando acesso a essas obras para um público ainda maior.
A bólide trajetória do cometa Ana Mazzotti infelizmente interrompeu-se abruptamente com a precoce morte da artista aos 37 anos, porém, não houve percalço do destino capaz de impedir o vitorioso desígnio que foi cumprido nos anos seguintes por sua distinta obra musical. A talentosa compositora gaúcha virou cult e os discos por ela gravados, por sua vez, converteram-se em preciosos objetos de desejo de colecionadores de música brasileira pelo mundo.
Capas dos álbuns 'Ninguém vai me segurar' (1974, esq) e 'Ana Mazzotti' (1977), dois únicos trabalhos de estúdio lançados pela artista em vida
REPRODUÇÃO/JC
* Cristiano Bastos é jornalista e autor de Julio Reny – Histórias de amor e morte (Prêmio Açorianos de Melhor Livro em 2015), Júpiter Maçã: A efervescente vida e obra, Nelson Gonçalves: O rei da boemia, Nova carne para moer e Gauleses irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Também publicou, em 2023, a obra de jornalismo e artes gráficas 100 grandes álbuns do rock gaúcho: influências e vertentes (Nova Carne Livros).
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