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Publicada em 03 de Abril de 2025 às 18:14

Escritora Valesca de Assis celebra 35 anos de carreira na literatura

Patrona da Feira do Livro de 2017, Valesca de Assis é uma das principais escritoras ligadas à temática feminina no País

Patrona da Feira do Livro de 2017, Valesca de Assis é uma das principais escritoras ligadas à temática feminina no País

THAYNÁ WEISSBACH/JC
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Rafael Gloria
Desde 1990, quando publicou o seu primeiro romance, a escritora Valesca de Assis vem produzindo uma obra envolvente, recebendo reconhecimentos como os prêmios da Associação Gaúcha de Escritores e da Associação Paulista de Críticos de Arte. A autora, que por muitos anos trabalhou na área da docência como professora de história, foi também patrona da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2017.
Desde 1990, quando publicou o seu primeiro romance, a escritora Valesca de Assis vem produzindo uma obra envolvente, recebendo reconhecimentos como os prêmios da Associação Gaúcha de Escritores e da Associação Paulista de Críticos de Arte. A autora, que por muitos anos trabalhou na área da docência como professora de história, foi também patrona da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2017.
Refletindo sobre a sua trajetória nesses 35 anos de carreira literária, Valesca acredita que o que une todo o seu trabalho é a tentativa de se colocar no lugar do outro. "O que hoje se chama empatia, embora essa palavra esteja meio batida", diz. Ela também acredita que o ato da leitura pode ser transformador. "Eu acho que o escritor não pode dizer, sinceramente, que não escreve para ninguém, só para ele mesmo. Porque a complementação da obra é a leitura. E o público lê e faz conexões que, muitas vezes, o escritor nunca imaginou", aponta.
O crítico literário e doutor em Literatura Vicentônio Regis do Nascimento Silva é um dos organizadores do livro Incursões pela ficção de Vales de Assis: Os pampas das mulheres, que analisa, a partir de diversos artigos de diferentes pesquisadoras, as representações do feminino na produção literária da autora. Ele destaca uma mudança textual e estilística desde a publicação do seu primeiro romance, A Valsa da Medusa, até o mais recente A Ponta do Silêncio, de 2016, que trata sobre violência contra a mulher. "A concisão, a precisão e a potência da construção sintática sustentaram o modelo semântico e imagético de impacto, atingindo alta performance da dúvida, por exemplo, sobre a autoria do assassinato do esposo da protagonista. Em um país como o nosso, em que a prolixidade, a retórica e o vazio convergem na comemoração do nada, uma obra concisa, objetiva e repleta de significados, como a de Valesca, sobressai por discutir a complexidade numa linguagem direta e simples", diz.
Refletindo sobre suas personagens femininas, Valesca diz que observa que todas elas tentaram não se apagar. "Algumas conseguiram, outras enlouqueceram, que é uma maneira de não morrer. De suportar. Então, eu estava pensando que elas não foram pessoas conformadas", afirma.
A escritora Marô Barbieri diz que Valesca tem um texto muito elegante e sensível. "E ao mesmo tempo o seu texto também é como ela: muito forte e decidido. Ela até não acha que seja contadora de histórias, mas eu acho que ela tem muitas histórias para contar e ela está fazendo isso nos seus livros. E essa obra maravilhosa que ela tem é uma obra de quem de fato é escritor", comenta. As duas autoras dividem a profissão de educadores. " E somos professoras que gostamos muito de dar aula. E a gente se dá muito bem tratando com os alunos, então essa nossa vocação como professoras é algo que partilhamos com muito gosto. A Valesca é uma pessoa de uma delicadeza, de uma sensibilidade enorme", aponta.
Para a escritora e editora Laís Chaffe, Valesca se destaca por um olhar atento ao outro. "Valesca vem dando o melhor de si quando escreve, se posiciona, interage de forma solidária. Olhar esse que também aparece em sua postura pública, nas causas que defende e em um projeto que idealizou e foi realizado pelo Instituto Estadual do Livro em 2013 e 2014: o Prosa na Estrada. Em duas edições, quase duzentos mil folhetos com contos e crônicas de dezenas de autoras e autores circularam em ônibus intermunicipais do Rio Grande do Sul", relembra.
Laís acredita que a obra de Valesca transita entre o romance e a narrativa breve com a mesma maestria. "É nas entrelinhas que a voz do texto se eleva, e com um ritmo que nos dá o tempo necessário para refletir e desfrutar o prazer da leitura. Nada de gritos, nada de pressa. Essas qualidades da romancista também estão em suas narrativas breves. Valesca é boa em maratonas e em 50 metros livres, vence tanto por pontos como por nocaute", diz.
 

Primeiros anos, primeiros livros

Valesca de Assis escreve histórias marcadas por protagonistas femininas que enfrentam a opressão e violência patriarcal

Valesca de Assis escreve histórias marcadas por protagonistas femininas que enfrentam a opressão e violência patriarcal

THAYNÁ WEISSBACH/JC
Nascida em 1945, em Santa Cruz do Sul, Valesca conta que costumava mudar bastante de cidade devido ao trabalho do pai. Ela encontrou seus primeiros livros na mala das Irmãs Paulinas, que vendiam exemplares infantis em suas visitas à cidade de Iraí, onde passou parte da infância. "Quando tu via aquelas duas irmãzinhas juntas, com a malinha, tu sabia que ia ganhar um livro", relembra.
A leitura também se tornou um laço familiar. Valesca passou a ler para um irmão mais novo. Os livros da família também despertaram sua curiosidade, mas na época a maioria não estava disponível para a leitura. Sua mãe, no entanto, lia para ela um poema de Mário Quintana, chamado Canção de domingo, que se tornou uma memória afetiva ligada à infância.
Na adolescência, Valesca teve seu primeiro contato com um romance adulto ao ler O Resto é Silêncio, de Erico Veríssimo. "Eu tirei da biblioteca da escola e encapei com papel de pão", revela. Na época, os livros eram vigiados pela moral e bons costumes, e a literatura considerada inadequada para jovens muitas vezes era escondida.
Mudando-se frequentemente de cidade, Valesca encontrou na escrita uma forma de expressão, ainda que, segundo ela, sem técnica ou confiança. "Escrevia bastante, mas nada que eu gostasse", diz. A escrita literária viria anos mais tarde. Antes, se formou em Filosofia pela Ufrgs, em 1968, durante a ditadura militar. Na época, a formação permitia atuar também como professora na área da História, que ela exerceu por cerca de trinta anos.
Ao longo dos anos atuando no magistério, foi diversificando as metodologias de ensino, sempre trabalhando com a escrita ou a literatura. Um exemplo foi o uso do livro No Caminho dos Sonhos, de Moacyr Scliar, no ensino. Em parceria com uma professora de português, a docente propunha uma abordagem interdisciplinar: enquanto a colega trabalhava a parte gramatical do texto, ela criava uma linha do tempo com os alunos, explorando os acontecimentos históricos presentes na narrativa. "Os estudantes gostavam desse método. Eles compreendiam a história de maneira mais viva", relembra.
A voz literária retornou quando participou da primeira turma da oficina do escritor Luiz Antônio Assis Brasil, seu marido e companheiro há mais de quarenta anos. Foi ele que sugeriu que ela participasse. "Eu achava que não tinha condições. Mas era pura falta de técnica", relembra. Na época, o casal mantinha discrição. "O único que nos conhecia era o Jaime Cimenti (colunista do JC). A gente entrava e saía separado para ninguém saber que éramos casados", rememora. A Oficina completa 40 anos em 2025, como uma das mais prestigiadas do País, tendo revelando diversos autores.
Durante o processo, Valesca percebeu a importância da técnica literária. A oficina também impulsionou um desafio: a escrita de uma novela, que acabou se mesclando com um outro projeto, a busca por suas origens. A pesquisa a levou a sua terra natal, Santa Cruz do Sul, onde o diretor do museu local passou a abrir o arquivo histórico para ela. Foram esses levantamentos que resultaram na elogiada obra de estreia, A Valsa da Medusa, lançada quando Valesca tinha 45 anos, em 1990.
O romance é ambientado nos primeiros anos da colonização alemã em Santa Cruz do Sul, a partir de 1849. A narrativa inicia com Tristan Waldvogel, um ex-Brummer (mercenário alemão que lutou na guerra contra Rosas), embarcando em um vapor em Porto Alegre com destino a Rio Pardo e, posteriormente, à colônia de Santa Cruz, onde assumirá o cargo de professor, se envolvendo em um complicado romance mais tarde. De certo modo, as marcas da imigração alemã, em particular a atuação das mulheres, permanecem em quase todos os livros de Valesca.
 

As mulheres de Valesca

Capa de edição recente da obra "A valsa da medusa", romance de estreia de Valesca de Assis

Capa de edição recente da obra "A valsa da medusa", romance de estreia de Valesca de Assis

THAYNÁ WEISSBACH/JC
Professora da área da Letras da Universidade Estadual do Paraná e também organizadora do livro Incursões pela ficção de Valesca de Assis, Wilma Coqueiro diz que ficou impressionada com a qualidade estética e as discussões ideológicas presentes em seu trabalho. Entre as características da obra de Valesca, ela destaca o uso da narrativa em primeira pessoa, que destaca o protagonismo feminino. "A autora aborda temas extremamente atuais, como a opressão e a violência contra as mulheres, que presenciamos diariamente nos noticiários", diz.
Mas como são as personagens femininas na obra de Valesca? Para Wilma, elas são retratadas como fortes e corajosas, ainda que sujeitas à opressão e à violência patriarcal. "Suas narrativas não apenas evidenciam a repressão que atravessa a vida das mulheres ao longo da história, mas também ressaltam a resistência, a coragem e os laços afetivos que as sustentam. Entre essas personagens, destaco Marga, de A Ponta do Silêncio, que, apesar de sofrer intensas violências, perder sua capacidade de falar e ser hospitalizada, encontra na escrita de cartas uma forma de expressão e de reivindicação de sua própria história. Através dela, a autora aborda temas como a violência contra a mulher, o apagamento social após o casamento, os papeis tradicionais impostos pela sociedade, a busca por subjetividade e a resistência feminina."
A pesquisadora Ana Maria Sukoski também participou do livro sobre Valesca, e diz que personagens fortes na literatura são aqueles "redondos", com grande profundidade. "As suas personagens, mesmo cercadas por um ambiente hostil, patriarcal, encontram meios de resistir. Eu gosto muito da Marga, que se usa do processo de escrita para resistir a esse casamento opressor. A forma como ela se encontra na escrita é muito significativa, porque reforça a escrita da própria personagem e também a escrita da Valesca enquanto mulher escritora", conta.
Para Vicentônio, as personagens de Valesca são várias e variadas. "Há a cômica - a mãe de Dom João; há a dúbia - recalcitrante e, depois, ousada - Marga; há a inspirada/inspiradora, a guria do diário/dicionário ou dicionário/diário", enumera. Ele conta que recentemente presenciou o silêncio de uma professora diante de uma pergunta antidemocrática e machista. "Imediatamente me lembrei da Marga Treibel, professora, titular de coluna de jornal, escritora, silenciando diante de atitudes machistas de um locutor de rádio... As várias Margas Treibel estão em todos os lugares. Esperando o momento certo para, mesmo depois de décadas de opressão, cantarem a liberdade e nos servirem de inspiração. São essas personagens, literariamente bem construídas, que marcam as nossas vidas", finaliza.
 

Ajudando a desbloquear ideias

Valesca de Assis: 'há uma brasa dentro de quem procura uma oficina'

Valesca de Assis: 'há uma brasa dentro de quem procura uma oficina'

THAYNÁ WEISSBACH/JC
Muitos escritores enfrentam o bloqueio criativo em algum momento da vida. No entanto, há técnicas que podem ajudar a superar essa barreira, como explica Valesca, que em suas oficinas se dedica a incentivar a criatividade de novos autores. "Eu digo sempre: há uma brasa dentro de quem procura uma oficina. O desafio é despertá-la", afirma. Para isso, ela utiliza diferentes exercícios, estimulando os participantes.
Uma das técnicas, Valesca explica, consiste em brincar com as letras do próprio nome, formando novas palavras que servem como ponto de partida para a imaginação. "Digamos que o nome da pessoa seja Maria Brasil. Separamos algumas letras e criamos um novo nome, como 'Masil'. A partir daí, perguntamos: quem é Masil? Onde vive? Qual sua história?" O exercício leva os participantes a desenvolverem personagens e enredos de forma espontânea. "Pode surgir um espião russo, uma bailarina ou um médico que salva vidas em um reino distante. A ideia é tirar a pressão da escrita e deixar a criatividade fluir", explica.
Com muitos métodos diferentes para estimular a imaginação, ela acredita que o segredo está em apresentar desafios leves e instigantes, sem planejamento excessivo. "Muitas vezes, os alunos se surpreendem, mas eles só precisavam de um empurrão para perceber que a história já estava dentro deles", conta.
Valesca relembra um conselho que recebeu de um escritor experiente quando ela mesma estava começando. Ela mandou uma de suas novelas para que Sergio Faraco lesse e avaliasse. A resposta veio por carta e não foi exatamente elogiosa. "Ele disse que os personagens eram muito planos, que a história tinha falhas. Mas também destacou um ponto positivo: apesar dos problemas, o texto fazia o leitor querer chegar até o fim", diz.
Em outro momento, Faraco compartilhou um conselho que mudaria a forma de Valesca observar a escrita. "Ele disse algo que parece óbvio, mas que na época foi um estalo para mim: ler a obra de um autor inteiro, depois outro autor inteiro. Isso ajuda a desenvolver um instinto de estilo", conta. O método foi incorporado à rotina da escritora. "Foi um aprendizado essencial. Comecei a me preocupar mais com a profundidade dos personagens e a forma como eles ganham vida no texto", diz.
Perguntada se está trabalhando em um próximo livro, ela diz que gostaria de escrever sobre o tema declínio. "Mas não é o meu declínio pessoal", revela. A ideia a acompanha há anos, mas o receio e as circunstâncias familiares a fizeram adiar a escrita. "O conhecimento da morte que, de repente, tu tem depois dos 40 anos, começa a te dar consciência de que tu não é eterno", comenta.
 

Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre

Valesca de Assis (em foto da época em que conduziu a Feira do Livro de Porto Alegre) define sua escolha como patrona em 2017 como "inesperada"

Valesca de Assis (em foto da época em que conduziu a Feira do Livro de Porto Alegre) define sua escolha como patrona em 2017 como "inesperada"

CLAITON DORNELLES/ARQUIVO /JC
Reconhecida pelo seu trabalho como formadora de leitores e pela trajetória literária consolidada, Valesca lembra com gratidão sua experiência na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2017, quando foi escolhida patrona do evento. "Não sou uma pessoa que tem muita mídia, vivo meio na sombra. Então, foi algo inesperado para mim", conta. Na época, a seleção envolvia cinco finalistas, escolhidos por livreiros, patronos e representantes de universidades.
A autora acredita que sua indicação refletiu o reconhecimento pelo conjunto de seu trabalho. "Participei de todos diferentes programas ligados ao livro e à leitura, sempre estive em contato com estudantes, dei cursos e oficinas na Feira do Livro por anos", explica.
Aliás, Valesca também tem uma produção literária voltada para os jovens, como livros como Um dia de gato, que conta a história de Tato, o gato, e seu amigo Bolão, o cão da família; e o livro Vão pensar que estamos fugindo!, que foi inspirado por uma pergunta, feita em sala de aula, à professora Valesca. Esse livro narra a chegada da família real portuguesa ao Brasil com ironia e leveza, tornando o tema mais acessível aos leitores.
Um dos livros dessa safra é o Diciodiário, no qual uma menina inicia a escrita de um diário para cumprir uma tarefa proposta pela professora de português, e vai desenvolvendo ideias e conceitos sobre pessoas e lugares. "É implícito que há a ditadura por trás, há coisas acontecendo que nunca são citadas, mas seguem como pano de fundo. É um livro que gosto bastante também, tem um itinerário muito bom", diz.
 

Livros de Valesca de Assis

Livro sobre a representação do feminino na obra de Valesca de Assis foi lançado em 2022

Livro sobre a representação do feminino na obra de Valesca de Assis foi lançado em 2022

Editora Jasvens/Divulgação/JC
- A Valsa da Medusa (Editora Movimento, 1990)
- A colheita dos dias (Movimento, 1992)
- O livro das generosidades (Artes e Ofícios, 1997)
- Harmonia das Esferas (WS, 2000)
- Todos os meses (AGE, 2002)
- Diciodiário (Artes e Ofícios, 2005)
- Um dia de gato (Libretos, 2010)
- Vão pensar que estamos fugindo (Libretos, 2012)
- A ponta do silêncio (BesouroBox, 2016)
- Bichos e Coleções (CLASS, 2019)
- Caderno de Histórias (CLASS, 2020)

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.

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