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Publicada em 27 de Março de 2025 às 19:20

Dinarte Valentini, o garçom que marcou a noite de Porto Alegre e virou advogado

Durante anos o garçom preferido da classe artística de Porto Alegre, Dinarte Valentini fez da cultura um instrumento de evolução pessoal, tornando-se concorrido advogado

Durante anos o garçom preferido da classe artística de Porto Alegre, Dinarte Valentini fez da cultura um instrumento de evolução pessoal, tornando-se concorrido advogado

JONATHAN HECKLER/ARQUIVO/JC
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Marcello Campos
Personagem indissociável da vida social de praticamente qualquer cidade, o garçom pode ser dividido em duas categorias no trato com a clientela: o discreto e o expansivo. Este último não costuma limitar sua reputação à competência de bem servir. Conta piadas. Repercute novidades. Dá e recebe dicas. Alguns tornam-se confidentes ou mesmo conselheiros, sobretudo entre boêmios que fazem da mesa de bar um porto seguro onde dispõem de confessionário e até mesmo consultório sentimental, em regime de plantão.
Personagem indissociável da vida social de praticamente qualquer cidade, o garçom pode ser dividido em duas categorias no trato com a clientela: o discreto e o expansivo. Este último não costuma limitar sua reputação à competência de bem servir. Conta piadas. Repercute novidades. Dá e recebe dicas. Alguns tornam-se confidentes ou mesmo conselheiros, sobretudo entre boêmios que fazem da mesa de bar um porto seguro onde dispõem de confessionário e até mesmo consultório sentimental, em regime de plantão.
Muitos foram os profissionais com tal perfil nas bandejas da Porto Alegre das últimas décadas, sintetizados na figura do taquariense Dinarte Valentini. Com status de celebridade noturna, ele conquistou a confiança e admiração dos protagonistas do setor cultural com quem interagiu no Bar do Beto de 1992 a 2018 - período em que fez do convívio com cantores, instrumentistas, compositores, produtores, artistas plásticos, escritores, jornalistas, intelectuais, atletas e autoridades um estímulo a novos horizontes pessoais que o levariam ao Direito.
Trata-se de um caso raro de unanimidade, enaltecido pelo músico, autor e advogado gaúcho João de Almeida Neto. "Ele construiu uma trajetória baseada em muito trabalho, dedicação, amizade, amor, ternura, solidariedade, inteligência e carisma, em noites e madrugadas de alegria ou tristeza, solidão ou festa. Uma figura lutadora e vitoriosa, que deixou sua terra natal em busca de oportunidades na Capital, a exemplo de muitos de nós, e acabou se tornando um belo personagem da cidade".
Na origem dessa trajetória está o terceiro dos cinco filhos de um casal de agricultores da localidade de Linha Gruta, município de Doutor Ricardo (Vale do Taquari), a 150 quilômetros de Porto Alegre. Gente simples, da terceira geração de descendentes de imigrantes italianos.
Nascido em 23 de maio de 1970, Dinarte teve uma adolescência marcada pelo trabalho na lavoura familiar (milho, soja, feijão, trigo e tabaco) e pela frustração com o abandono dos estudos na 3ª série do Primeiro Grau - em contraste à sua curiosidade em relação ao mundo e ao interesse cada vez maior pela leitura.
Sem perspectivas de um futuro melhor que o do trabalho na roça, aos 17 anos os seus olhos brilharam ao saber que dois conterrâneos estavam na região, em busca de novos funcionários para a churrascaria onde trabalhavam, na Capital. Ele então convenceu os pais e, com uns pilas no bolso, lágrimas da mãe e o clássico recado paterno de "pode ir, mas não pense em voltar", embarcou em um ônibus rumo ao sonho. Uma zebra na cidade grande, porém, mostraria já de início que as coisas não seriam fáceis para o rapazote.
 

De garçom a advogado

Dinarte (centro) no segundo Bar do Beto, na Venâncio Aires, em foto de 1995

Dinarte (centro) no segundo Bar do Beto, na Venâncio Aires, em foto de 1995

ACERVO PESSOAL DINARTE VALENTINI/REPRODUÇÃO/JC
A menos de um mês do seu 55º aniversário, Dinarte Valentini guarda na memória os "butiás caídos do bolso" em uma tardinha de janeiro de 1987, após seguir direto da Estação Rodoviária de Porto Alegre para a churrascaria São Rafael, nos altos da avenida Protásio Alves, número 3.284, endereço da promessa de emprego que recebera em sua cidade. "Já havia se passado mais de uma semana desde que eu soubera da vaga, então, quando cheguei no local o quadro de funcionários estava preenchido e eu não tinha como voltar para a colônia."
Menos mal que um dos donos lhe permitiu o pernoite no alojamento dos empregados, no segundo andar do sobrado, até que se definisse a situação. Dinarte ainda choramingava em uma das camas, à noite, quando ouviu os passos firmes de outro sócio, escada acima. "Acabei de demitir um sujeito, pode descer e começar agora mesmo". Encarregado de lavar copos, fazer caipirinhas e alcançar bebidas no balcão, em 45 dias o novato já estava com uma bandeja de comes e bebes na mão esquerda, por entre as 24 mesas do salão frontal. Dali em diante, só voltaria ao Vale do Taquari a passeio.
O aprimoramento das qualidades de garçom, aliado à sua comunicabilidade e a uma rede de contatos cada vez mais ampla, incrementaria o currículo nos anos seguintes, com experiências catarinenses em Balneário Camboriú e Florianópolis, onde permaneceu de 1988 a 1991 no Chico's Bar. De volta à capital gaúcha, trabalhou como folguista de sábados no Kafka Bar (rua 24 de Outubro) até descolar emprego fixo no restaurante Tia Dulce (avenida Independência), lendário por sopas levanta-defunto que atraíam na madrugada uma vasta fauna boêmia.
A popularidade do jovem Dinarte crescia, inclusive entre trabalhadores, prostitutas, travestis, gigolôs e traficantes que orbitavam a área. "Foi um baita aprendizado, com histórias difíceis de acreditar. Eu vi, por exemplo, um bebum tomar meia terrina de sopa e depois deixar os próprios carpins dentro do prato!", relembra. "Vários desses elementos do submundo me protegiam, com direito a conselhos para que eu evitasse as más companhias ou as drogas, que só usei duas vezes, por mera curiosidade, porque meu único vício era o cigarro."
 

Bar do Beto

Dinarte Valentini em 1998, período em que estava de volta ao Bar do Beto

Dinarte Valentini em 1998, período em que estava de volta ao Bar do Beto

ACERVO PESSOAL DINARTE VALENTINI/REPRODUÇÃO/JC
A boa reputação já andava nos radares de outros empresários do ramo. "Então tu és o famoso Dinarte?", perguntou um cliente no Tia Dulce, em junho de 1992. Era Batista Fontana, que no final da década de 1980 havia comprado o Bar do Beto com outros quatro sócios, aos quais logo haviam se unido seus irmãos Nestor (ex-colega de Dinarte em Porto Alegre e Santa Catarina) e Fabiano, todos do Vale do Taquari. Ele não estava ali por acaso, a quilômetros de seu próprio negócio: ao pagar a conta, convidou o loirinho simpático a integrar a equipe do já concorrido estabelecimento no bairro Santana.
O calendário marcava 1º de julho de 1992, uma quarta-feira, quando Dinarte iniciou ali um vínculo que duraria 26 anos e que só não incluiu as duas filiais da rua Sarmento Leite (Cidade Baixa). Em sua terceira geração de inquilinos desde meados da década de 1950 (quando ainda se chamava "Bar do Pagé"), a loja térrea de um prédio de três andares na esquina da avenida Venâncio Aires com a rua Vieira de Castro já se notabilizava como reduto boêmio e preferencial de gente ligada à cultura, em meio a figuras anônimas e famosas da cidade.
O gaiteiro e compositor porto-alegrense Renato Borghetti que o diga. "Nascido no Centro mas criado desde cedo no bairro Bom Fim, eu tinha no Bar do Beto um porto seguro desde a adolescência, e assim permaneceu como um lugar para encontro de familiares e amigos. Sempre com um sorriso, o Dinarte sabia de antemão os nossos pedidos, além de gostar de uma boa prosa sobre música e cultura em geral". Consolidado como reduto boêmio, o Bar do Beto - assim nomeado desde 1978, por razões desconhecidas - precisou "atravessar a rua" em 1994, após o dono do imóvel pedir a desocupação.
Primeiro foi um sobrado no número 902 da Venâncio Aires, depois a sede própria, especialmente construída quase ao lado, no 876, e onde funciona desde janeiro de 1998 - ano em que Dinarte retornou à equipe, após meses de uma mal sucedida experiência como dono de bar e restaurante com seu nome, em outro trecho da mesma avenida. Nos anos seguintes, ele teria ali a oportunidade de servir às mais variadas celebridades, da atriz paulista Maitê Proença ao cantor Steven Tyler (da banda norte-americana Aerosmith).
 

Afinidades compartilhadas

Dinarte comemora aniversario com Neto Fagundes, João de Almeida Neto e Daniel Torres (2018)

Dinarte comemora aniversario com Neto Fagundes, João de Almeida Neto e Daniel Torres (2018)

ACERVO PESSOAL DINARTE VALENTINI/REPRODUÇÃO/JC
A postura ética de jamais agir de forma invasiva ou forçar os limites entre garçom e cliente - e isso igualmente para os famosos - não impediu que Dinarte estabelecesse sólidas relações de amizade com expoentes da classe artística. Por conta de seu apreço à poesia e ao regionalismo gaúcho, alguns de seus amigos mais próximos incluem os músicos e compositores João de Almeida Neto, Sergio Rojas, Neto Fagundes, Daniel Torres e Yamandu Costa, além dos falecidos Arthur Bonilla e Luiz Carlos Borges, dentre outros.
"Ao Dinarte confidenciei muitos dilemas, por me sentir à vontade diante de um amigo que sabe ouvir e aconselhar", rememora Sergio Rojas. "E das maravilhas de nossa estreiteza, trocávamos poemas na noite. Eu sacava um Rafael Alberti, ele devolvia um Federico Garcia Lorca e assim ficávamos naquele duelo, para deleite de minha alma esbórnia. Muitas vezes, ao nos retirarmos pela madrugada, ele se despedia com um derradeiro verso, para que seguíssemos flutuando em nossa embriaguez poética, a caminho de casa."
Leituras, audições e outras experiências culturais eram também compartilhadas com frequentadores 'comuns', a partir de afinidades reveladas em conversas à beira da mesa. Um deles, idoso e fã da obra de Jayme Caetano Braun (1924-1999), pedia que Dinarte recitasse versos do payador. "Quando esse cliente faleceu em uma clínica geriátrica, aos 94 anos, uma de suas filhas telefonou dizendo que a família fazia questão que eu o homenageasse em pleno velório, recitando Tio Anastácio diante do caixão", emociona-se Dinarte. "O pessoal gostou tanto que teve até pedidos de fotos comigo."
 

Bacharel em Direito

Dinarte conciliava as aulas de direito com a rotina noturna como garçom

Dinarte conciliava as aulas de direito com a rotina noturna como garçom

MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
Em 31 anos de atividade como garçom, Dinarte atendeu a clientes dos mais variados perfis, com os quais raramente se sentava mas que me o ajudaram a crescer intelectualmente. Vários deles sugeriam, emprestavam ou mesmo o presenteavam com livros sobre os mais variados assuntos. Mas houve um momento em que só a "faculdade da noite" já não era mais suficiente. Ele retomou os estudos, concluindo o ensino supletivo em 2003. Foi quando a ideia de um curso superior em Direito entrou no cardápio de opções - poderia ter sido o de História ou Filosofia, mas os turnos eram incompatíveis.
Aprovado no vestibular da Uniritter de Canoas no ano seguinte, foram necessários malabarismos com o relógio para conciliar as rotinas de trabalho até a madrugada, aulas à tarde e estudos nos poucos horários disponíveis. "Eu emendava uma coisa à outra, amanhecendo debruçado sobre algum trabalho acadêmico ou preparação para prova", sublinha. "Muitas vezes dei uma espiada nos livros entre um e outro atendimento, além de repassar conteúdos em conversas com clientes do meio jurídico."
Esse esforço hercúleo seria recompensado, em julho de 2009, com uma elogiosa aprovação da banca examinadora ao trabalho de conclusão de curso, sobre crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). Na colação de grau, foi o orador da turma. Superada também a etapa da temida prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no ano seguinte passou a atuar em escritório de Direito Imobiliário, de Trânsito e Família/Sucessões, além de concluir duas especializações em Direito Civil na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Detalhe: ainda dividindo sua rotina com seis noites por semana no Bar do Beto. Com o incentivo da esposa (que conhecera como cliente da casa, em 1998) e das duas filhas, bem como dos amigos e colegas mais chegados, incluiu em sua comanda pessoal a ideia de deixar em definitivo o trabalho de garçom, atividade que adorava e lhe rendia um bom dinheiro em salário e gorjetas, mas cujas exigências limitavam o convívio familiar e social, sem contar o prejuízo às horas de sono para um cidadão à beira dos 50 anos.
"Era uma ideia que vinha sendo amadurecida mesmo antes da Faculdade de Direito. A mudança, porém, não poderia ser radical, sendo necessária uma transição segura, com o pé no chão", explica. O período foi marcado por experiências como a de atuar, pela primeira vez, nos bastidores de um evento cultural. "Em 2017, tive a honra de atuar na produção executiva do show Daniel Torres Canta America, com um Theatro São Pedro lotado e a escolha do espetáculo entre os finalistas do Prêmio Açorianos de Música".
 

Saideira

Dinarte com os donos Bar do Beto, em seu último dia como garçom

Dinarte com os donos Bar do Beto, em seu último dia como garçom

TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO/JC
A dupla jornada se manteve até 2018, quando finalmente estipulou-se uma data para pendurar a bandeja. Em 20 de outubro, sábado, Dinarte vestiu pela última vez o avental, sob o prestígio de clientes que, devidamente avisados, fizeram questão de presenciar aquela virada de página. Já a segunda-feira seguinte foi marcada por uma grande festa no Bar do Beto, com o ex-garçom recebendo “à paisana” mais de 700 pessoas, incluindo antigos colegas, políticos, autoridades e, por óbvio, artistas das mais diversas frentes.
“Os meses seguintes foram tranquilos, mas com uma espécie de saudade, afinal haviam sido quase 32 anos de atividade, sendo 26 só no Bar do Beto”, admite. “Mas era uma decisão sem volta e que permitiu maior espaço à cultura em minha vida, desde assistir alguma série até ir ao teatro ou cinema. Além do mais, as coisas deram certo no Direito, com uma carteira incrementada por clientes que me conhecem desde os tempos de garçom. Como diz a Cláudia, minha esposa, passei a dar valor a coisas para as quais um profissional da noite raramente está disponível.”
 
Hoje sócio de uma banca de advocacia no bairro Petrópolis, Dinarte Valentini defende uma clientela composta, em cerca de 80%, conhecidos dos tempos de Bar do Beto ou por eles indicados, muitos em busca do resgate judicial de antigos valores do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). As conexões com a cultura também permanecem, com sua casa na Cidade Baixa servindo de ponto de encontro para animados encontros musicais e poéticos com artistas locais e outros convidados, sempre na companhia de alguma boa boia campeira ou prato italiano.
Quem fecha a reportagem é o ávido consumidor literário que, volta e meia, revisita textos de impacto em sua formação. "Acabei de retomar a leitura da edição atualizada de A Tragédia da Rua da Praia (2009), do Rafael Guimaraens, além de dois livros do jornalista Flávio Alcaraz Gomes. Em breve, também pretendo reler Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel García Márquez, e também conferir a série da Netflix inspirada nesse romance."
 

Narrativa autobiográfica

Ao lado de Olívio Dutra, durante sessão de Autógrafos do livro 'De Bandeja - A História de Dinarte Valentini' (2019)

Ao lado de Olívio Dutra, durante sessão de Autógrafos do livro 'De Bandeja - A História de Dinarte Valentini' (2019)

TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO/JC
O encerramento do capítulo profissional como garçom inspirou Dinarte a lançar, em 25 de junho de 2019, o livro autobiográfico De Bandeja (editora Arvoredo Books). Com 124 páginas, a publicação foi possível graças à venda antecipada de exemplares nas duas noites de despedida, nove meses antes, e ao patrocínio do Bar do Beto, local obviamente escolhido para a sessão de autógrafos. Uma pequena multidão se aglomerou no número 876 da Venâncio Aires, formando filas que serpenteavam o interior do estabelecimento.
Reencontros. Abraços. Beijos. Rubricas. Dedicatórias. Gente feliz pelo advogado mas 'oficialmente' órfã de seu garçom preferido. Cerca de mil unidades vendidas, mais outras tantas adquiridas posteriormente, no embalo de uma generosa divulgação na imprensa. Muitos aguardaram lugar nas disputadíssimas mesas para saborear ali mesmo, entre amigos e cervejas, os textos, fotos e quase 200 depoimentos, como o da bióloga e professora aposentada Semíramis Gorini:
"Conhecer alguém desse quilate nas noites de Porto Alegre é um privilégio. Ao longo dos anos, eu e meu companheiro, o já falecido jornalista Wanderley Soares, trocamos ideias com o Dinarte sobre temas como justiça, segurança, política, arte, música, literatura e poesia, de tal forma que os nossos encontros sempre proporcionaram momentos enriquecedores. Também por seu intermédio, pude travar contato com ilustres frequentadores que jantavam no Bar do Beto após os espetáculos".
 

Valentini, em 2018, no seu último dia de trabalho no Bar do Beto

Valentini, em 2018, no seu último dia de trabalho no Bar do Beto

TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO/JC
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Em duas décadas, tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues e do Conjunto Melódico Norberto Baldauf, resultado de um trabalho com foco no resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.

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