Juarez Fonseca, especial para o JC
Na próxima segunda-feira, 17 de março, Elis Regina completaria 80 anos. Como ela seria hoje? Uma tranquila vovó coruja dos netos Rafaela, Antônio, Alice, Arthur e André, nascidos de seus filhos João Marcelo, Pedro e Maria Rita? Ou uma vovó na dela, ainda em atividade, como seus contemporâneos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Maria Bethânia, Ivan Lins? Difícil saber - embora o temperamento básico das pessoas não mude essencialmente ao longo da vida. Percorrendo a narrativa deste jornalista, se entenderá um pouco da essência de Elis, sabida por quem a conheceu mais ou menos de perto. Vinicius de Moraes a chamava de "Pimentinha".
Ela morreu muito cedo, aos 36 anos, 20 de carreira, mas tempo suficiente para chegar ao futuro como a maior cantora da história da música brasileira. Depois de lançar compositores como os citados acima, e Milton Nascimento, Belchior, João Bosco/Aldir Blanc, entre tantos, nos últimos anos estava interessada em fazer o mesmo com novos nomes da música do RS. Em 1980, gravara Moda de Sangue, de Jerônimo Jardim e Ivaldo Roque. No ano seguinte, participou do LP de Raul Ellwanger cantando Pequeno Exilado. Pediu para que os gaúchos lhe mandassem fitas.
O iniciante Vitor Ramil fez isso, mas a gravação era ruim e Elis mandou a ele um telegrama pedindo que enviasse outra fita. De São Paulo, a maior cantora "simplesmente" telegrafa ao jovem pelotense. Ela certamente gravaria Vitor e mais gaúchos se não tivesse se despedido em 19 de janeiro de 1982. Mas vamos à narrativa.
Era agosto de 1974 e eu estava diante dela pela primeira vez. Veio a Porto Alegre com o show que antecedia o lançamento de um de seus melhores discos, aquele que tem Conversando no Bar, Ponta de Areia, Maria Rosa, Dois Pra Lá Dois Pra Cá. Naquela época ainda não tinha essa história de os grandes nomes só excursionarem depois de saírem os discos. Também não era tempo de só um show ou dois, como agora. Eles ficavam quatro, cinco dias, uma semana, no Teatro Leopoldina (depois Teatro da Ospa, até ser fechado em 2008). Podia-se conversar com mais calma, como eu começava a fazer, no hotel, no dia seguinte ao da estreia do show.
Houve empatia. Falamos sobre o show e comentei que a música nova de Milton Nascimento e Fernando Brant, que ela estava lançando, me impressionara. Era Conversando no Bar (Saudade dos Aviões da Panair). Perguntou se eu queria a letra, pegou uma folha de meu bloco de anotações e a escreveu: "Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira/ E o motorneiro parava a orquestra um minuto/ Para me contar casos da campanha da Itália/ E do tiro que ele não levou/ Levei um susto imenso nas asas da Panair/ Descobri que as coisas mudam/ E que tudo é pequeno nas asas da Panair...". Elis tinha uma letra muito bonita, clara e segura. Claro que até hoje guardo aquela folha como uma relíquia.
Enquanto Elis escrevia, cantarolando, eu a olhava e o tempo andava para trás. Para uma época, depois do Clube do Guri (veja mais adiante), início dos anos 1960, em que eu a ouvia na Rádio Gaúcha, cantando no programa Campeões da Semana Eucalol, uma parada de sucessos com vários cantores e orquestra. Naquele trecho de minha memória ela cantava a versão de Tonight, de Johnny Mathis. Depois veio a primeira gravação e o primeiro sucesso, Dá Sorte, de Eleu Salvador (ator de novelas da Gaúcha que se revelava como compositor). Depois Rio, São Paulo, os festivais, a TV Record, O Fino da Bossa, aquilo tudo, ela explodindo.
O teipe d'O Fino da Bossa era apresentado pelo Canal 12 nos domingos à noite, um horário que eu não trocava por nada. Adorava Elis, tinha orgulho dela. E agora ela estava ali, na minha frente, falante, feliz com o disco especial que lançara naquele ano, Elis & Tom. Com o novo show. Com César Camargo Mariano, seu marido e maestro. Com a vida. Elis usava cabelos encaracolados e ria por qualquer coisa. Quis saber minha opinião sobre determinada parte do show, que achava poder melhorar. A entrevista saiu numa página central de sábado, título: "Eu tô legal".
Novos encontros em 1976 e em 1977. Em 77 ela voltou para a estreia nacional em Porto Alegre de Transversal do Tempo, show que carregava a responsabilidade de suceder o mega-sucesso Falso Brilhante, de 75/76, apresentado apenas em São Paulo e Rio. No dia do primeiro ensaio geral, no Teatro Leopoldina, ela me ligou: "Vem pra cá". Pediu palpites e avisou que eu passava a integrar informalmente a equipe de produção, encarregado de informar onde-conseguir-tal-e-tal-coisa-na-cidade. Para completar, a revista Veja me pediu um comentário do show, publicado em página inteira, fato importante para um repórter da província.
Transversal do Tempo fazia contraponto ao exuberante e meio autobiográfico Falso Brilhante. Elis dava um giro. A mesma Fascinação que encerrava Falso Brilhante em clima de apoteose, ironicamente abria o novo show. Transversal era sobre as "querelas do Brasil", político, pesado em Deus lhe Pague, Sinal Fechado, Construção, Cão sem Dono. Ela cantava Romaria vestida de Nossa Senhora e Saudosa Maloca vestida de operário. Ficou duas semanas em cartaz e fez as pazes definitivas com a cidade: frequentou restaurantes, foi a festas, passeou, deu muitas entrevistas. No fim, aeroporto, "obrigada por tudo, beijo, vamos ver se nos escrevemos".
Não nos escrevemos.
"Quero cantar coisas novas e tudo está muito velho"

Elis Regina fotografada por Juarez Fonseca em 1977, no saguão do hotel Plaza Porto Alegre
JUAREZ FONSECA/ESPECIAL/JCQuando voltou a Porto Alegre, em 1979, com o show do disco Essa Mulher (primeiro pela gravadora Warner), Elis estava insatisfeita. Entre outras coisas, não concordava com o volume de trabalho exigido pela gravadora. Queixava-se de estar vivendo em corredores - de aeroportos, de aviões, de ônibus, de hotéis, de teatros. Era outubro. Em julho ela se apresentara em Bruxelas, no Festival de Montreux e em Tóquio. Em agosto, começara a turnê de Essa Mulher, que só terminaria em dezembro, um show atrás do outro.
No apartamento do Hotel Plaza eu a esperava arrumar-se para descermos ao saguão quando o telefone tocou. Era a babá de seus filhos. Ela atendeu já com lágrimas nos olhos. "Como é que tá o João? Mais calmo? E o Pedro, tá comendo direito? E a minha filha? Ah, meu Deus, tanto tempo para ter uma filha e não poder ficar perto dela... Olha, segunda-feira a gente está aí. Pra jantar." César fazia palavras cruzadas e comentou que a barra estava mesmo pesada por causa de tanta estrada e as saudades de casa.
Fizemos a entrevista. Não foi uma conversa leve, claro. Lembrei da frase usada como título da entrevista de cinco anos antes. Ela emendou: "Se em 74 eu disse 'tô legal', em 79 digo 'não tô legal'. Tô carente pra burro". A frase "Não tô legal", seria o título da nova matéria. Nos despedimos, Elis sublinhou o tchau repetindo a antiga intenção, agora acrescida de uma interjeição: "Vamos ver se nos escrevemos, porra!". Ela gostava de escrever e receber cartas. De novo não nos escrevemos. E o que viria a seguir não mudaria muito os tons dessa barra.

Elis Regina ao lado do Conjunto de Norberto Baldauf, em Tramandaí, em 1963
ACERVO PESSOAL JUAREZ FONSECA/REPRODUÇÃO/JCEm setembro de 1981 estávamos mais uma vez frente a frente. Eu e outros. Coletiva no Hotel Embaixador para promover o show Trem Azul, primeiro dela no Gigantinho, novos tempos de uma apresentação só em grandes lugares, pressa, números falando cada vez mais alto... A entrevista foi chata e burocrática como todas as coletivas. Fiz poucas perguntas, pois uma repórter pautada pela redação insistia em misturar banalidades tipo revista Amiga com política do tipo estudantil. Elis fez força para parecer simpática nas respostas, nem sempre conseguindo.
Encerrado o "expediente", me convidou para subir ao apartamento. Estava para chegar seu namorado. Parceiro em dois filhos e grandes momentos musicais, César Mariano não havia mais. Agora havia Samuel, um advogado paulista. Depois de criticar entrevistas coletivas disse que preferia conversar comigo sozinha. Liguei o gravador. E ela não foi nada light, despejando uma pilha de problemas, mergulhada em pendengas com gravadoras.
"Estou de saco cheio. De música e de muitas outras coisas. Já dei inclusive uma parada de seis meses, embora ache que parar não seja solução para crise nenhuma. A solução é arregaçar as mangas e ir em frente. Mas o negócio é que estou cansada de buscar e não encontrar. Quero cantar coisas novas e está tudo muito velho. Às vezes acho que os compositores não se deram conta de que muitas coisas se modificaram no Brasil."
Só para lembrar, 1981 foi o ano do atentado à bomba no Riocentro, sublinhando os estertores da ditadura. O que está acontecendo?, provoco. "Em 1979, quando sai para fazer uma maratona de cinco meses com o show Essa Mulher, deu para ver a grande diferença entre o Brasil que eu imaginava e o Brasil que existe realmente. A gente que tem sensibilidade um pouco mais aguçada sente o que pode acontecer, o que nos espera. O descenso econômico, o empobrecimento, a miséria que se abateu sobre o país mais cedo ou mais tarde podem dar uma catástrofe."
Encerrado o "expediente", me convidou para subir ao apartamento. Estava para chegar seu namorado. Parceiro em dois filhos e grandes momentos musicais, César Mariano não havia mais. Agora havia Samuel, um advogado paulista. Depois de criticar entrevistas coletivas disse que preferia conversar comigo sozinha. Liguei o gravador. E ela não foi nada light, despejando uma pilha de problemas, mergulhada em pendengas com gravadoras.
"Estou de saco cheio. De música e de muitas outras coisas. Já dei inclusive uma parada de seis meses, embora ache que parar não seja solução para crise nenhuma. A solução é arregaçar as mangas e ir em frente. Mas o negócio é que estou cansada de buscar e não encontrar. Quero cantar coisas novas e está tudo muito velho. Às vezes acho que os compositores não se deram conta de que muitas coisas se modificaram no Brasil."
Só para lembrar, 1981 foi o ano do atentado à bomba no Riocentro, sublinhando os estertores da ditadura. O que está acontecendo?, provoco. "Em 1979, quando sai para fazer uma maratona de cinco meses com o show Essa Mulher, deu para ver a grande diferença entre o Brasil que eu imaginava e o Brasil que existe realmente. A gente que tem sensibilidade um pouco mais aguçada sente o que pode acontecer, o que nos espera. O descenso econômico, o empobrecimento, a miséria que se abateu sobre o país mais cedo ou mais tarde podem dar uma catástrofe."

Elis e César Camargo Mariano fotografados por Juarez Fonseca em 1977
JUAREZ FONSECA/ESPECIAL/JCSim, eu já conhecia razoavelmente bem Elis para entender seus altos e baixos. Dependendo do momento, ela podia estar eufórica, feliz, terna, otimista; ou estar amarga, irritada, agressiva, sem esperanças. Por isso, as pessoas que não a conheciam bem dividiam-se entre as que a consideravam antipática e as que eram conquistadas por ela. As que a conheciam sabiam que não havia contradição, que essa estável instabilidade era uma característica de seu temperamento e faziam a unidade viva da pessoa, da artista, da cidadã.
Mas naquele dia ela conseguiu me surpreender. Me detenho um pouco nesse dia, que seria o último, porque imagino ter sido esta sua mais contundente entrevista. O editor da Revista ZH não quis publicar, disse que parecia uma pessoa drogada. Ofereci ao CooJornal, que chamou o texto na capa: "Dramas de Elis". O título interno foi "A face oculta de Elis Regina". Não sei se ela já estava usando cocaína (fato revelado na morte) e nem isso me passou pela cabeça enquanto conversávamos. Certo é que me impressionou com sua ênfase.
"Eu estava me sentindo um pouco sem alternativas. Mas acho melhor deixar pra lá, porque senão vou ter que botar quatro velas aqui, fazer um velório, e não tô a fim. Isso começou faz tempo, e as coisas estão tão interligadas que nem vale a pena a gente falar... Olha, depois de Saudade do Brasil foi só uma arruação, uma coisa cheia de picuinhas. Em março eu estava firmemente decidida a abrir um bar, pros amigos tocarem e de vez enquanto eu ainda cantar. Mas parar com aquela merda, porque eu não aguentava mais."
Parar de cantar? Abrir um bar?
"Às vezes a gente tem ideias malucas, mas a gente não é louco. Eu sou louca de parar de cantar? Eu morro! Mas juro que pensei nisso, porque não queria mais ouvir falar aquelas histórias todas. Música, gravar, televisão, disco, arghh!; eu entrava em pânico e me fechava no quarto. Era uma crise braba, séria, pesadona. De me passar pela cabeça a ideia de suicídio e tudo, coisa que eu nunca havia pensado na vida. Felizmente hoje já estou legal, mas o trabalho de desobstrução foi lento."
Mas naquele dia ela conseguiu me surpreender. Me detenho um pouco nesse dia, que seria o último, porque imagino ter sido esta sua mais contundente entrevista. O editor da Revista ZH não quis publicar, disse que parecia uma pessoa drogada. Ofereci ao CooJornal, que chamou o texto na capa: "Dramas de Elis". O título interno foi "A face oculta de Elis Regina". Não sei se ela já estava usando cocaína (fato revelado na morte) e nem isso me passou pela cabeça enquanto conversávamos. Certo é que me impressionou com sua ênfase.
"Eu estava me sentindo um pouco sem alternativas. Mas acho melhor deixar pra lá, porque senão vou ter que botar quatro velas aqui, fazer um velório, e não tô a fim. Isso começou faz tempo, e as coisas estão tão interligadas que nem vale a pena a gente falar... Olha, depois de Saudade do Brasil foi só uma arruação, uma coisa cheia de picuinhas. Em março eu estava firmemente decidida a abrir um bar, pros amigos tocarem e de vez enquanto eu ainda cantar. Mas parar com aquela merda, porque eu não aguentava mais."
Parar de cantar? Abrir um bar?
"Às vezes a gente tem ideias malucas, mas a gente não é louco. Eu sou louca de parar de cantar? Eu morro! Mas juro que pensei nisso, porque não queria mais ouvir falar aquelas histórias todas. Música, gravar, televisão, disco, arghh!; eu entrava em pânico e me fechava no quarto. Era uma crise braba, séria, pesadona. De me passar pela cabeça a ideia de suicídio e tudo, coisa que eu nunca havia pensado na vida. Felizmente hoje já estou legal, mas o trabalho de desobstrução foi lento."
Zuza: "Pressenti que algo histórico estava começando a acontecer"
Elis Regina no show Trem Azul em Belo Horizonte, 1981
ARNALDO BARRETO/DIVULGA??O/JCNo sábado 19 de setembro de 1981, dia do primeiro show no Gigantinho, Elis parecia outra pessoa. Deu ao público uma apresentação impecável, ágil, renovada, quente e afetiva. Calçava botas e a saia era uma estilização do chiripá gaúcho. Nos camarins, depois, estava alegre, abraçando as pessoas, querendo saber o que tinham achado. Levei minha filha Lis, de cinco anos, para conhecê-la. Eu estava chateado pelo público, umas 5 mil pessoas, pequeno para o ginásio. Ela nem falou disso. Pegou no colo, estalou um beijo na bochecha de Lis e me pediu desculpas pelo "baixo astral" da entrevista. "Faremos outras melhores", prometeu.
Certo dia, chega à redação uma carta para mim, com data de 21 de setembro, postada na agência dos Correios da Rua Haddock Lobo, em São Paulo. Começava assim: "Gostei muito de ter te reencontrado. Pode crer! Achei tua filha linda. E sugiro um acordo entre famílias: guarde-a para Pedro. Rapaz simpático, louro, gente fina e com bom dote. A mãe garante! E deverá ser bom de cama, suponho. Tem bom 'instrumental', é cheio de doçura e meiguice e gosta de um beijo na orelha...".
Em 19 de janeiro de 1982 eu e minha filha estávamos em Garuva, cidadezinha do nordeste de Santa Catarina. Passávamos uns dias de férias na casa do padrinho dela, Jaime. À tardinha fui para o banho. Logo Jaime bate na porta. "O Jornal Nacional está noticiando a morte da Elis Regina", disse, sobressaltado. Só acreditei vendo na TV as filas diante do caixão no palco do teatro. A morte de Elis me acentuou velhas questões íntimas sobre as propaladas objetividade e imparcialidade que o jornalista deve ter. Onde começa e onde termina cada uma? No caso de Elis, não corri à redação para fazer o "caderno especial".
Elis Regina faleceu em 19 de janeiro de 1982, aos 36 anos
AG/JCPara falar a verdade, ainda não me recuperei. No início, passei um tempão sem ouvir seus discos. Vamos dizer que tenha me sentido traído por morte tão precoce. Cada vez que a ouço dar uma gargalhada, como nos discos do programa O Fino da Bossa, no qual, aos 20 anos, ela revolucionou a MPB, pensava nisso. Cada vez que a ouço cantar Atrás da Porta, Retrato em Branco e Preto, Águas de Março, As Curvas da Estrada de Santos, O Bêbado e a Equilibrista, Como Nossos Pais, Tatuagem, Gracias a La Vida, penso nisso.
Diziam que ela não gostava da bossa nova. Ora... A malharam porque malhara o tropicalismo. Ora... E que criticara Roberto Carlos e depois o gravara. Ora... Quanto tempo se perdeu acentuando suas contradições, em vez de acentuar que era genial exatamente por ser contraditória, inconstante, inquieta, inconformista, iconoclasta, mutante, e que por tudo isso, mais aquela voz, e o bom-gosto, e a atitude, nunca houve outra igual. O saudoso jornalista Zuza Homem de Mello (1933-2020), que era técnico de som n'O Fino da Bossa, diz que na tarde da estreia, 17 de maio de 1965, resolveu que iria gravar o programa e guardar as fitas.
"Tive o pressentimento de que algo histórico estava começando a acontecer na nossa música", lembra Zuza. Quando a ouviu ao lado de mestres como Caymmi, Adoniran, Ciro Monteiro, Ataulfo Alves, entrevistando-os e cantando com eles como se fosse a coisa mais natural do mundo para uma garota de 20 anos, recém-chegada do Rio Grande do Sul, Zuza ficou tão impressionado que só encontrou uma comparação: "Pensei em quando assisti ao surgimento de Pelé".

Ao lado de Tom Jobim, em imagem retirada do documentário 'A música segundo Tom Jobim'
CANAL CURTA!/DIVULGA??O/JCE sobre a gargalhada de Elis, o que me dizem? Ela entrevistando Adoniran Barbosa n'O Fino. Ele conta aquelas histórias e ela morre de rir. Ele anuncia que vai cantar a música Um Samba no Bexiga. Ela pergunta: "O que é Bexiga?". Risadas gerais no auditório. Ela justifica: "Eu não sou daqui, tenho direito de querer saber". Claro, chegara a São Paulo dias antes, depois de um ano de "escala" no Rio, onde era considerada meio estrangeira. "O gaúcho é menos dotado de escudos", comentou, bem mais tarde, em Porto Alegre. "Nossas frases são mais secas, mais incisivas. Eu tive muitas dificuldades por ser daqui. Muitas vezes não fui bem compreendida."
Na última entrevista, me disse que sonhava com umas férias viajando de trailer pelo interior do Rio Grande do Sul. "Quero ver uns buracos por onde andei cantando algumas vezes na vida e dos quais tenho imagens guardadas da cabeça. Tomara que não tenham mexido muito nesses lugares, mas é provável que eles também tenham dançado." Que lugares? "Ah, alguns, tipo Guaporé, Bento Gonçalves, uns muros de pedras empilhadas, umas águas que passavam no meio da relva, essas coisas. Eu gosto muito do Rio Grande do Sul, embora aqui também tenha muita coisa de que não gosto."
Mas a viagem foi outra, exatamente quatro meses depois do último show em Porto Alegre. E volta e meia eu releio a carta que me mandou. Continuava: "Vê se a gente encontra um espaço pra se escrever ou telefonar. Vamos parar com essa besteira de que o país é imenso, que quase sempre estamos ocupados e que bom mesmo é um canto silencioso, alguns livros, discos e nada mais... O ser humano nasceu pra tribo, pra troca, pra convivência, pruns abraços, pruns carinhos e pra gostosura de estar sempre no meio de gente semelhante e/ou amiga. O resto é mentira inventada pelo capitalista pra forçar isolamento, concentração no trabalho e abstração do prazer de viver a vida plena. (...) Até qualquer hora, prum abraço e um olho no olho. Até sempre. Elis."
E eu não respondi à carta. Tive quatro meses para fazer isso e não fiz. Mas já não sinto tanta culpa. Penso em Elis hoje como uma irmã, ou como uma deusa da música. E como uma avó que estaria levando os netos para o palco com ela, cobrando empenho deles...
Na última entrevista, me disse que sonhava com umas férias viajando de trailer pelo interior do Rio Grande do Sul. "Quero ver uns buracos por onde andei cantando algumas vezes na vida e dos quais tenho imagens guardadas da cabeça. Tomara que não tenham mexido muito nesses lugares, mas é provável que eles também tenham dançado." Que lugares? "Ah, alguns, tipo Guaporé, Bento Gonçalves, uns muros de pedras empilhadas, umas águas que passavam no meio da relva, essas coisas. Eu gosto muito do Rio Grande do Sul, embora aqui também tenha muita coisa de que não gosto."
Mas a viagem foi outra, exatamente quatro meses depois do último show em Porto Alegre. E volta e meia eu releio a carta que me mandou. Continuava: "Vê se a gente encontra um espaço pra se escrever ou telefonar. Vamos parar com essa besteira de que o país é imenso, que quase sempre estamos ocupados e que bom mesmo é um canto silencioso, alguns livros, discos e nada mais... O ser humano nasceu pra tribo, pra troca, pra convivência, pruns abraços, pruns carinhos e pra gostosura de estar sempre no meio de gente semelhante e/ou amiga. O resto é mentira inventada pelo capitalista pra forçar isolamento, concentração no trabalho e abstração do prazer de viver a vida plena. (...) Até qualquer hora, prum abraço e um olho no olho. Até sempre. Elis."
E eu não respondi à carta. Tive quatro meses para fazer isso e não fiz. Mas já não sinto tanta culpa. Penso em Elis hoje como uma irmã, ou como uma deusa da música. E como uma avó que estaria levando os netos para o palco com ela, cobrando empenho deles...
Na memória de Ary Rego, que a revelou

Elis Regina em foto envelhecida por Alexander Desmouceaux, técnico em efeitos visuais, por intermédio de Carlos Gerbase
ARTE DE ALEXANDER DESMOUCEAUX SOBRE FOTO DE JUAREZ FONSECA/ESPECIAL/JC"Eu e o Rui Silva, pianista do Clube do Guri, estávamos ensaiando quando a Elis apareceu. No início era só mais uma, entre as 400, 500 crianças e adolescentes que passavam pelo programa. Durante uns meses ela se apresentou com alguma frequência. Mas demorou cerca de um ano para se tornar um destaque. E foi com muito trabalho: era a que mais ensaiava, a mais exigente. Até na escola era a mais atuante e participativa. Minha esposa, que foi sua professora na Escola Dom Diogo de Souza, dizia-me que as redações dela eram lindas, sempre tirava notas altas. Tinha uma personalidade muito forte. Aliás, para sair da província com 18 anos e se tornar uma grande estrela, tem que ter mesmo."
Ary Rêgo (1918-2007) foi o apresentador, na Rádio Farroupilha, nos anos 1950/60, do programa Clube do Guri, onde Elis começou a cantar. Depoimento dado em 2002.
Livros sobre Elis
- Elis Regina, de Zeca Kiechaloski (Coleção "Esses Gaúchos", Editora Tchê/RBS, 1985)
- Furacão Elis, de Regina Etcheverria (Editora Nórdica, 1985; edição revista e ampliada, Editora Globo, 1994)
- O Melhor de Elis Regina - Melodias cifradas para guitarra, violão e teclados, de Luciano Alves (Editora Irmãos Vitale, 2000)
- Elis Regina por Ela Mesma - Livro-clipping de Osny Arashiro (org), (Editora Martin Claret, 2004)
- Elis Regina - Nada Será Como Antes, de Julio Maria (Editora Master Books, 2015; edição revista, atualizada e ampliada, Companhia das Letras, 2025)
- Elis - Uma biografia musical, de Arthur de Faria (Arquipélago Editora, 2015)
- Elis e Eu - 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe, de João Marcelo Bôscoli (Editora Planeta, 2019)
* Juarez Fonseca é jornalista militante na área da Cultura, especialmente a música, com 50 anos de carreira.