O jovem Lupicínio Rodrigues ainda começava a fazer nome na música de Porto Alegre, no início da década de 1930, quando seus ouvidos – sempre atentos – notaram algo especial no pranto infantil da única filha da lavadeira e benzedeira Maria José, vizinha na vila da Ilhota. Na fala mansa do rapazinho, a sentença sobre a afilhada: “Essa guria vai dar cantora, já chora bem afinadinha...”. Verdade ou só mais um dos tantos causos no folclore do principal compositor popular do Rio Grande do Sul, a suposta previsão se mostraria certeira em um futuro não muito distante, por mais que a mãe idealizasse para a pequena uma brilhante carreira de professora.
A garotinha em questão era Zilah Machado, nascida em 12 de abril de 1928 e que até confirmar o prognóstico – ou mesmo depois – enfrentaria um coquetel de sofrimento. Para começo de conversa, ela reunia três condições responsáveis por calar muitos talentos da cena artística na época: mulher, pobre e negra – o pai, marujo, era descendente direto de marroquinos. Criada pela mãe e a avó, a garota teve entre suas referências masculinas justamente "Lupi", 14 anos mais velho e com quem apreendeu sambas e marchas que logo fariam sucesso em festas familiares.
O interesse inicial, porém, voltou-se ao segmento erudito. Zilah cursava o Ensino Primário no Colégio Paula Soares (praticamente nos fundos do Palácio Piratini) quando ingressou no coro da escola. Com dez anos, procurou o célebre maestro Roberto Eggers, professor e diretor do Orfeão Rio-Grandense, instituição dedicada ao canto operístico. As aulas regulares revelaram uma promissora soprano-ligeiro, jamais escalada para os concertos, geralmente apresentados em espaços nos quais a presença de uma garota de pele escura não era bem-vinda.
“É uma pena tua mãe não poder pagar para que tu tires um curso na Itália”, ouviu do maestro. Esses e outros baldes de água fria a fizeram abandonar tudo, inclusive o colégio, aos 14 anos. “Só fui até o quarto ano, não por causa da música, mas do problema racial. Eu era muito judiada, qualquer palavra me ofendia. Sempre fui muito sensível”, relembraria em depoimento à pesquisadora gaúcha Márcia Ramos de Oliveira, décadas depois. A adolescente buscou, então, sustento no trabalho como empregada doméstica, em paralelo a aulas de corte e costura no atelier de uma costureira francesa.
Suas habilidades não passaram despercebidas à modista, que a contratou. Mais do que isso, chamou a novata a segui-la em seu retorno definitivo para Paris. Para que a menor de idade subisse ao navio desacompanhada de seus responsáveis, a mulher providenciou uma autorização de viagem com rubrica fajuta da mãe, analfabeta mas que acabou descobrindo o plano, às vésperas do embarque. O fim do sonho de uma carreira na Europa lançou Zilah de volta à estaca-zero, sem escapar da sina de tantas jovens da época: a vida de dona de casa. Casada aos 16 anos, antes dos 20 somaria quatro filhos – três deles meninos. Com 23, separou-se do marido.
A garotinha em questão era Zilah Machado, nascida em 12 de abril de 1928 e que até confirmar o prognóstico – ou mesmo depois – enfrentaria um coquetel de sofrimento. Para começo de conversa, ela reunia três condições responsáveis por calar muitos talentos da cena artística na época: mulher, pobre e negra – o pai, marujo, era descendente direto de marroquinos. Criada pela mãe e a avó, a garota teve entre suas referências masculinas justamente "Lupi", 14 anos mais velho e com quem apreendeu sambas e marchas que logo fariam sucesso em festas familiares.
O interesse inicial, porém, voltou-se ao segmento erudito. Zilah cursava o Ensino Primário no Colégio Paula Soares (praticamente nos fundos do Palácio Piratini) quando ingressou no coro da escola. Com dez anos, procurou o célebre maestro Roberto Eggers, professor e diretor do Orfeão Rio-Grandense, instituição dedicada ao canto operístico. As aulas regulares revelaram uma promissora soprano-ligeiro, jamais escalada para os concertos, geralmente apresentados em espaços nos quais a presença de uma garota de pele escura não era bem-vinda.
“É uma pena tua mãe não poder pagar para que tu tires um curso na Itália”, ouviu do maestro. Esses e outros baldes de água fria a fizeram abandonar tudo, inclusive o colégio, aos 14 anos. “Só fui até o quarto ano, não por causa da música, mas do problema racial. Eu era muito judiada, qualquer palavra me ofendia. Sempre fui muito sensível”, relembraria em depoimento à pesquisadora gaúcha Márcia Ramos de Oliveira, décadas depois. A adolescente buscou, então, sustento no trabalho como empregada doméstica, em paralelo a aulas de corte e costura no atelier de uma costureira francesa.
Suas habilidades não passaram despercebidas à modista, que a contratou. Mais do que isso, chamou a novata a segui-la em seu retorno definitivo para Paris. Para que a menor de idade subisse ao navio desacompanhada de seus responsáveis, a mulher providenciou uma autorização de viagem com rubrica fajuta da mãe, analfabeta mas que acabou descobrindo o plano, às vésperas do embarque. O fim do sonho de uma carreira na Europa lançou Zilah de volta à estaca-zero, sem escapar da sina de tantas jovens da época: a vida de dona de casa. Casada aos 16 anos, antes dos 20 somaria quatro filhos – três deles meninos. Com 23, separou-se do marido.
Uma voz sofrida

Zilah Machado em apresentação musical com o flautista Plauto Cruz, na Porto Alegre de 1960
/Acervo Marcello Campos/Divulgação/JCDoméstica, lavadeira e com a filharada para alimentar, Zilah Machado mantinha latente o sonho de uma carreira artística. A pressão pela sobrevivência quase a desviou para o caminho da prostituição, em meados dos anos 1950, quando uma conhecida lhe oferecera trabalho, sem maiores detalhes. “Fiquei com ela em uma esquina, aí um carro parou e o sujeito me convidou a embarcar. Quando me dei por conta do que se tratava, saí andando constrangida até entrar ouvir o som do violão que saía de um bar”, confidenciaria a uma amiga, décadas depois.
Zilah pediu um refrigerante e ficou ali, divagando ao som do instrumentista solitário. Convidada a acompanhá-lo após dizer que sabia cantar, sua performance agradou tanto ao público, que o dono do estabelecimento lhe ofereceu um pequeno cachê, com a proposta de repetir a dose dali por diante. Ela não parou mais. Em 1962, arriscou uma participação no programa de calouros de Maurício (Sirotsky) Sobrinho na Rádio Gaúcha, onde já atuava certa adolescente chamada Elis Regina. O apresentador a contratou, com direito a cheque para compra de roupas e calçados que melhorassem sua figura – a atração era sonora, mas transmitida de um auditório.
O fim da Era de Ouro do Rádio, em meio ao crescimento da televisão, devolveria Zilah à própria sorte. Em desvantagem na comparação a colegas mais calejados, não conseguiu recolocação nos palcos noturnos. Restou-lhe o trabalho como faxineira, até ser lembrada para a função de lady-crooner do conjunto montado pelo pianista Délcio Vieira para uma excursão de três meses pela América Latina. De volta a à capital gaúcha e ao trabalho em “casas de família”, aos poucos se enturmou à patota do padrinho Lupicínio, tornando-se uma das vozes femininas de destaque da cena local, assim como Lourdes Rodrigues.
Cantando no Adelaide’s Bar, Clube dos Cozinheiros e outros redutos boêmios, Zilah lançou em 1970 um compacto duplo pela gravadora CSB, do compositor e cantor Rubens Santos (autor de duas das quatro faixas, sendo as demais assinadas por Marco Aurélio Vasconcellos em parceria com Alcides Gonçalves e Flávio Pinto Soares). Um disco de repercussão restrita à imprensa local e insuficiente para mudar a condição de artista “muito aplaudida, mas nunca ganhando o suficiente para deixar de ser empregada doméstica”, contextualiza o jornalista e pesquisador Arthur de Faria, em seu livro Porto Alegre – Uma Biografia Musical (Editora Arquipélago, 2022).
Os obstáculos raciais também se impunham. Barrada em um programa televisivo, chegou a acionar o então advogado e também negro Alceu Collares (futuramente prefeito e governador), mas decidiu não levar o caso adiante. Deixou os filhos aos cuidados da mãe e de uma madrinha para se aventurar no Rio de Janeiro, trabalhando na casa da dançarina gaúcha Cubanita de Bronze. A mudança da “patroa” para Minas Gerais obrigou Zilah a voltar para casa, sem esquentar banco: reuniu algumas economias como costureira e tentou novamente a Cidade Maravilhosa, em 1975, amargando novo emprego doméstico.
Zilah pediu um refrigerante e ficou ali, divagando ao som do instrumentista solitário. Convidada a acompanhá-lo após dizer que sabia cantar, sua performance agradou tanto ao público, que o dono do estabelecimento lhe ofereceu um pequeno cachê, com a proposta de repetir a dose dali por diante. Ela não parou mais. Em 1962, arriscou uma participação no programa de calouros de Maurício (Sirotsky) Sobrinho na Rádio Gaúcha, onde já atuava certa adolescente chamada Elis Regina. O apresentador a contratou, com direito a cheque para compra de roupas e calçados que melhorassem sua figura – a atração era sonora, mas transmitida de um auditório.
O fim da Era de Ouro do Rádio, em meio ao crescimento da televisão, devolveria Zilah à própria sorte. Em desvantagem na comparação a colegas mais calejados, não conseguiu recolocação nos palcos noturnos. Restou-lhe o trabalho como faxineira, até ser lembrada para a função de lady-crooner do conjunto montado pelo pianista Délcio Vieira para uma excursão de três meses pela América Latina. De volta a à capital gaúcha e ao trabalho em “casas de família”, aos poucos se enturmou à patota do padrinho Lupicínio, tornando-se uma das vozes femininas de destaque da cena local, assim como Lourdes Rodrigues.
Cantando no Adelaide’s Bar, Clube dos Cozinheiros e outros redutos boêmios, Zilah lançou em 1970 um compacto duplo pela gravadora CSB, do compositor e cantor Rubens Santos (autor de duas das quatro faixas, sendo as demais assinadas por Marco Aurélio Vasconcellos em parceria com Alcides Gonçalves e Flávio Pinto Soares). Um disco de repercussão restrita à imprensa local e insuficiente para mudar a condição de artista “muito aplaudida, mas nunca ganhando o suficiente para deixar de ser empregada doméstica”, contextualiza o jornalista e pesquisador Arthur de Faria, em seu livro Porto Alegre – Uma Biografia Musical (Editora Arquipélago, 2022).
Os obstáculos raciais também se impunham. Barrada em um programa televisivo, chegou a acionar o então advogado e também negro Alceu Collares (futuramente prefeito e governador), mas decidiu não levar o caso adiante. Deixou os filhos aos cuidados da mãe e de uma madrinha para se aventurar no Rio de Janeiro, trabalhando na casa da dançarina gaúcha Cubanita de Bronze. A mudança da “patroa” para Minas Gerais obrigou Zilah a voltar para casa, sem esquentar banco: reuniu algumas economias como costureira e tentou novamente a Cidade Maravilhosa, em 1975, amargando novo emprego doméstico.
Ascensão discreta

No início da carreira, a cantora realizou algumas apresentações esporádicas na TV carioca, nos anos 1960-1970
Acervo Sílvia Abreu/Divulgação/JCNo Rio, as coisas começaram a melhorar a partir da aprovação em testes de rádio e TV, com cachês por apresentações esporádicas. Ao mesmo tempo, pintavam trabalhos como vocalista de apoio em shows e gravações de medalhões como Dona Ivone Lara, Cauby Peixoto e Emílio Santiago. Não demorou a também a descolar pontas em peças teatrais e como figurante nos longas-metragens nacionais Manicures a domicílio (1977), Quem matou Pacífico? (1977) e Lúcio Flávio – O passageiro da agonia (1978), de Hector Babenco.
Em 1979, o primeiro LP, Já se dança samba como antigamente, pela CBS, com arranjos e participações instrumentais do pianista João Donato e Nelsinho do Trombone. Suas 12 faixas encharcadas de sambas e sambas-canção de compositores variados (nenhum gaúcho) reproduziam fielmente o espírito seresteiro das apresentações de Zilah, mas sem maior impacto na carreira. “Não aconteceu nada com o disco, além de alguns shows em bares do Baixo Leblon e casas de gente rica”, comenta Arthur de Faria. Esgotadas as possibilidades de sair da dureza permanente, Zilah voltou em definitivo para Porto Alegre em 1981.
Os anos seguintes seriam marcados por apresentações saudosistas em espaços dedicados à velha guarda (Carinhoso, Acalanto, João de Barro) e eventos coletivos e novos projetos. Em 1991, o padrinho e “descobridor” foi por ela homenageado com o LP Lupiciniana (selo Discoteca), inteiramente dedicado a clássicos do mestre da dor-de-cotovelo – não por acaso, Zilah (junto com Lourdes Rodrigues Johnson, Rubens Santos, Demóstenes Gonzalez e outros convidados) seria um dos destaques do minidocumentário Amigo Lupi (1992), de Beto Rodrigues, premiado no Festival de Cinema de Gramado.
A chegada do novo século apresentou ao público uma faceta pouco conhecida de um nome até então associado à função de intérprete: a de compositora, com mais de uma centena de músicas na gaveta, Destas, 13 foram pinçadas no seu elogiadíssimo primeiro registro em CD, Passageira da nave dos sonhos (2000), com produção de Texo Cabral e bancado pela Secretaria Municipal da Cultura (SMC) – cuja titular à época, Margarete Moraes, batalhara pelo encaminhamento de uma aposentadoria oficial para a veterana cantora. E o melhor ainda estava por vir.
Em 1979, o primeiro LP, Já se dança samba como antigamente, pela CBS, com arranjos e participações instrumentais do pianista João Donato e Nelsinho do Trombone. Suas 12 faixas encharcadas de sambas e sambas-canção de compositores variados (nenhum gaúcho) reproduziam fielmente o espírito seresteiro das apresentações de Zilah, mas sem maior impacto na carreira. “Não aconteceu nada com o disco, além de alguns shows em bares do Baixo Leblon e casas de gente rica”, comenta Arthur de Faria. Esgotadas as possibilidades de sair da dureza permanente, Zilah voltou em definitivo para Porto Alegre em 1981.
Os anos seguintes seriam marcados por apresentações saudosistas em espaços dedicados à velha guarda (Carinhoso, Acalanto, João de Barro) e eventos coletivos e novos projetos. Em 1991, o padrinho e “descobridor” foi por ela homenageado com o LP Lupiciniana (selo Discoteca), inteiramente dedicado a clássicos do mestre da dor-de-cotovelo – não por acaso, Zilah (junto com Lourdes Rodrigues Johnson, Rubens Santos, Demóstenes Gonzalez e outros convidados) seria um dos destaques do minidocumentário Amigo Lupi (1992), de Beto Rodrigues, premiado no Festival de Cinema de Gramado.
A chegada do novo século apresentou ao público uma faceta pouco conhecida de um nome até então associado à função de intérprete: a de compositora, com mais de uma centena de músicas na gaveta, Destas, 13 foram pinçadas no seu elogiadíssimo primeiro registro em CD, Passageira da nave dos sonhos (2000), com produção de Texo Cabral e bancado pela Secretaria Municipal da Cultura (SMC) – cuja titular à época, Margarete Moraes, batalhara pelo encaminhamento de uma aposentadoria oficial para a veterana cantora. E o melhor ainda estava por vir.
'Ziringuindim'

Em meados dos anos 2000, Zilah Machado passou a cantar em palcos diversos da cidade, a exemplo dos da Fundação Ecarta (foto) e do Theatro São Pedro
Rene Cabrales/Divulgação/JCPor volta de 2005, a jornalista e produtora cultural Sílvia Abreu trabalhava como assessora da Coordenação de Música da SMC, em uma sala no Auditório Araújo Vianna, quando deparou com Zilah Machado trazendo debaixo do braço uma pasta com clipagem, currículo e letras de canções de próprio punho, pedindo oportunidades de trabalho. “Eu sabia de sua importância, fiquei comovida e cheguei a pensar em assumir a sua gestão de carreira, mas achei que já havia gente para isso”, conta Sílvia. “A cena se repetiu um ano depois e aí não teve jeito, assumi a missão de reposicionar aquele nome que andava meio esquecido na cidade”, emenda.
A parceria deu certo e a cantora começou a ser chamada para uma série de eventos. Sílvia também obteve aprovação do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte) para outro CD 100% autoral, Ziringuindim, com produção do não menos icônico músico Gelson Oliveira: “Foi tudo muito descontraído e, ao mesmo tempo, com seriedade, porque a Zilah queria um álbum tratado com o respeito que merecia. Ela trouxe uma lista enorme de composições, que enxugamos até ficar com 16 faixas. Fiz os arranjos, gravei as bases e ela colocou a voz, além de alguns instrumentos de percussão que confeccionava, depois acrescentamos mais alguma coisa. O resultado deixou todo mundo muito satisfeito”.
Lançado em 2009, o disco foi recebido com entusiasmo de público e crítica. Zilah – cuja atuação noturna estava resumida a lugares como o bar Se Acaso Você Chegasse (do filho de Lupicínio, na av. Venâncio Aires) – passou a cumprir um roteiro que incluía o Theatro São Pedro. “Seu mais recente trabalho é também o mais inspirado e afrobrasileiro, em 45 minutos de samba, jongo, afoxé, marcha-rancho, ijexá e samba de roda de uma artista no auge de sua forma vocal e criativa. A porto-alegrense filha de Oxum está mais para Dorival Caymmi que para Lupicínio Rodrigues, ao valorizar assuntos praieiros, festeiros e batuqueiros de um frescor nem sempre visto nesse tipo de trabalho”, registrou a depois extinta revista Aplauso.
Na mesma matéria, o relato de um processo criativo inusitado: “Costumo sonhar com alguém que me leva a rodas musicais com colegas já desaparecidos, como Caco Velho, que me mostram metades de canções. O resto eu completo acordada. Ruídos da vizinhança [de sua casa, no bairro Partenon] também dão belas ideias para mim, que não sei ler partituras. Se eu estudasse música, não faria sambas tão intuitivos (...). Pena que comecei a gravar tão tarde, mas ao menos a tristeza já passou e uma luz diz que tudo vai melhorar. Só falta colocarem mais água no meu vaso”.
O júri do Prêmio Açorianos também comprou a ideia, indicando Ziringuindim nas categorias de Disco, Intérprete e Produção Musical – nesta última, levando o troféu. E a artista ainda recebeu, no palco do Teatro do CIEE, ao fim da cerimônia, uma Menção Especial pelo conjunto da obra. Ovacionada pela plateia, de pé. Finalmente reconhecida ao cabo de cinco décadas de carreira, ela saboreou cada momento da sua melhor fase, sempre disposta, superativa e pouco afeita a queixas de saúde. Amigos próximos, no entanto, perceberam sinais de fragilidade naquele já franzino corpo, em outubro de 2010.
Seu médico também não gostou do que viu. Encaminhada para internação no Beneficência Portuguesa, seus exames revelariam um câncer na região abdominal. “Pensei que a volta para casa aconteceria em breve, mas foram 70 dias”, conta Sílvia Abreu. “Ela logo me pediu um aparelho portátil de CD, no qual ouvia o Ziringuindim repetidas vezes em seu quarto privativo no hospital – menos quando estava com uma das tantas visitas de gente querida como o cantor Juliano Barreto, que não saía de lá.”
A guerreira finalmente descansou no início da tarde do dia 7 de janeiro de 2011, faltando pouco mais de três meses para o seu 83º aniversário. No velório, o entra-e-sai de jovens e velhos companheiros, autoridades, imprensa e personalidades da cultura negra no Teatro Glênio Peres da Câmara de Vereadores não deixou dúvidas sobre o carinho da cidade àquela passageira da nave dos sonhos. Colegas cantaram diante do túmulo, no Cemitério Jardim da Paz, enquanto sua produtora Sílvia Abreu lembrava da felicidade da artista em saber que, graças a uma tal de internet, sua obra já era ouvida no mundo.
Zilah Machado continua em alta. Na noite de 19 de novembro de 2021, foi homenageada no palco do Theatro São Pedro com o musical ZilahGuindim: Celebração da Vida e Obra de uma Artista Singular, com direção e arranjos de Gelson Oliveira. O espetáculo teve como idealizadora, produtora e principal voz a cantora porto-alegrense Marguerite Santos, com participações especiais de Dina Fagundes Dornelles, Guaíra Soares, Luciara Batista, Maria do Carmo Carneiro, Marietti Fialho, Nishkala e Yara Lemos.
“Nascida e criada na Ilhota, comunidade rica em tradições afro-brasileiras, Zilah foi um talento singular, que transformou sua herança cultural em arte, tornando-se referência para muitas artistas”, rememora Marguerite.” A conexão com a espiritualidade permeia sua obra, evocando temas de ancestralidade, resistência e liberdade. Foi um tributo e uma experiência sensorial e espiritual que combinou pesquisa histórica, etnomusicologia negra e performance.”
Zilah e sua contemporânea Lourdes Rodrigues (1938-2014) foram celebradas em janeiro de 2025 com o concorrido espetáculo Ela disse-me assim, dirigido por Luciano Alabarse e Arthur de Faria. Um dos destaques do festival Porto Verão Alegre, a atração levou ao palco do Theatro São Pedro – lotado – peças do repertório lupiciniano (marca registrada de ambas as trajetórias) nas vozes negras de cinco divas gaúchas: Andréa Cavalheiro, Denizeli Cardoso, Glau Barros, Paola Kirst e a veterana Loma Pereira. “Foi uma honra participar desse tributo a duas artistas de quem fui amiga próxima, sendo que a Zilah eu conhecia desde a noite em que assisti uma apresentação dela no Clube dos Cozinheiros, na rua Garibaldi, no início da década de 1970”, emociona-se Loma. “Já estamos ensaiando para uma turnê, em março, pelo Interior gaúcho.”
A parceria deu certo e a cantora começou a ser chamada para uma série de eventos. Sílvia também obteve aprovação do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural (Fumproarte) para outro CD 100% autoral, Ziringuindim, com produção do não menos icônico músico Gelson Oliveira: “Foi tudo muito descontraído e, ao mesmo tempo, com seriedade, porque a Zilah queria um álbum tratado com o respeito que merecia. Ela trouxe uma lista enorme de composições, que enxugamos até ficar com 16 faixas. Fiz os arranjos, gravei as bases e ela colocou a voz, além de alguns instrumentos de percussão que confeccionava, depois acrescentamos mais alguma coisa. O resultado deixou todo mundo muito satisfeito”.
Lançado em 2009, o disco foi recebido com entusiasmo de público e crítica. Zilah – cuja atuação noturna estava resumida a lugares como o bar Se Acaso Você Chegasse (do filho de Lupicínio, na av. Venâncio Aires) – passou a cumprir um roteiro que incluía o Theatro São Pedro. “Seu mais recente trabalho é também o mais inspirado e afrobrasileiro, em 45 minutos de samba, jongo, afoxé, marcha-rancho, ijexá e samba de roda de uma artista no auge de sua forma vocal e criativa. A porto-alegrense filha de Oxum está mais para Dorival Caymmi que para Lupicínio Rodrigues, ao valorizar assuntos praieiros, festeiros e batuqueiros de um frescor nem sempre visto nesse tipo de trabalho”, registrou a depois extinta revista Aplauso.
Na mesma matéria, o relato de um processo criativo inusitado: “Costumo sonhar com alguém que me leva a rodas musicais com colegas já desaparecidos, como Caco Velho, que me mostram metades de canções. O resto eu completo acordada. Ruídos da vizinhança [de sua casa, no bairro Partenon] também dão belas ideias para mim, que não sei ler partituras. Se eu estudasse música, não faria sambas tão intuitivos (...). Pena que comecei a gravar tão tarde, mas ao menos a tristeza já passou e uma luz diz que tudo vai melhorar. Só falta colocarem mais água no meu vaso”.
O júri do Prêmio Açorianos também comprou a ideia, indicando Ziringuindim nas categorias de Disco, Intérprete e Produção Musical – nesta última, levando o troféu. E a artista ainda recebeu, no palco do Teatro do CIEE, ao fim da cerimônia, uma Menção Especial pelo conjunto da obra. Ovacionada pela plateia, de pé. Finalmente reconhecida ao cabo de cinco décadas de carreira, ela saboreou cada momento da sua melhor fase, sempre disposta, superativa e pouco afeita a queixas de saúde. Amigos próximos, no entanto, perceberam sinais de fragilidade naquele já franzino corpo, em outubro de 2010.
Seu médico também não gostou do que viu. Encaminhada para internação no Beneficência Portuguesa, seus exames revelariam um câncer na região abdominal. “Pensei que a volta para casa aconteceria em breve, mas foram 70 dias”, conta Sílvia Abreu. “Ela logo me pediu um aparelho portátil de CD, no qual ouvia o Ziringuindim repetidas vezes em seu quarto privativo no hospital – menos quando estava com uma das tantas visitas de gente querida como o cantor Juliano Barreto, que não saía de lá.”
A guerreira finalmente descansou no início da tarde do dia 7 de janeiro de 2011, faltando pouco mais de três meses para o seu 83º aniversário. No velório, o entra-e-sai de jovens e velhos companheiros, autoridades, imprensa e personalidades da cultura negra no Teatro Glênio Peres da Câmara de Vereadores não deixou dúvidas sobre o carinho da cidade àquela passageira da nave dos sonhos. Colegas cantaram diante do túmulo, no Cemitério Jardim da Paz, enquanto sua produtora Sílvia Abreu lembrava da felicidade da artista em saber que, graças a uma tal de internet, sua obra já era ouvida no mundo.
Zilah Machado continua em alta. Na noite de 19 de novembro de 2021, foi homenageada no palco do Theatro São Pedro com o musical ZilahGuindim: Celebração da Vida e Obra de uma Artista Singular, com direção e arranjos de Gelson Oliveira. O espetáculo teve como idealizadora, produtora e principal voz a cantora porto-alegrense Marguerite Santos, com participações especiais de Dina Fagundes Dornelles, Guaíra Soares, Luciara Batista, Maria do Carmo Carneiro, Marietti Fialho, Nishkala e Yara Lemos.
“Nascida e criada na Ilhota, comunidade rica em tradições afro-brasileiras, Zilah foi um talento singular, que transformou sua herança cultural em arte, tornando-se referência para muitas artistas”, rememora Marguerite.” A conexão com a espiritualidade permeia sua obra, evocando temas de ancestralidade, resistência e liberdade. Foi um tributo e uma experiência sensorial e espiritual que combinou pesquisa histórica, etnomusicologia negra e performance.”
Zilah e sua contemporânea Lourdes Rodrigues (1938-2014) foram celebradas em janeiro de 2025 com o concorrido espetáculo Ela disse-me assim, dirigido por Luciano Alabarse e Arthur de Faria. Um dos destaques do festival Porto Verão Alegre, a atração levou ao palco do Theatro São Pedro – lotado – peças do repertório lupiciniano (marca registrada de ambas as trajetórias) nas vozes negras de cinco divas gaúchas: Andréa Cavalheiro, Denizeli Cardoso, Glau Barros, Paola Kirst e a veterana Loma Pereira. “Foi uma honra participar desse tributo a duas artistas de quem fui amiga próxima, sendo que a Zilah eu conhecia desde a noite em que assisti uma apresentação dela no Clube dos Cozinheiros, na rua Garibaldi, no início da década de 1970”, emociona-se Loma. “Já estamos ensaiando para uma turnê, em março, pelo Interior gaúcho.”
Discografia
1970 "Canção de quem está só" (compacto duplo, CSB)
1979 "Já se dança samba como antigamente" (LP, CBS)
1991 "Lupiciniana" (LP, Discoteca)
2000 "Passageira da nave dos sonhos" (CD, Secretaria Municipal da Cultura)
2009 "Ziringuindim" (CD, Fumproarte)
Assinatura
*Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.