O sucesso de um artista depende de mais que talento e apuro técnico. É necessária uma combinação de lugar e momento favoráveis ao estrelato. A tal "sorte" - não como causa, mas consequência. Dentro desse entendimento, poucas circunstâncias foram tão propícias aos profissionais gaúchos do ramo quanto a Porto Alegre da década de 1930. Escala quase obrigatória entre Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu, a cidade estava plenamente inserida nos processos de expansão de duas das maiores mídias de massa da época: o rádio e o disco.
Em um ambiente sonoro marcado pelo ecletismo e tendo o samba como um dos catalizadores do plano de integração nacional pautado pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, a capital gaúcha abrigava movimentados cineteatros, bares, cafés, cassinos, casas noturnas e emissoras. E também dezenas de compositores, instrumentistas, conjuntos e cantores, distribuídos entre três estações (Gaúcha, Difusora e Farroupilha) ou esperando na fila por uma chance que raramente passava de 15 minutos diários de estúdio.
Horacina Correa. Sady Nolasco. Cândida Linhares. Johnson. Stella Norma. Heitor de Barros. Cléa Barros. Ivan Castro. Bando do Bará, Turma do Castelo, Quatro de Ouro, Garotos da Melodia. Band-leaders como Paulo Coelho, Clovis Mamede, Romeu Fossati, Ruy Silva, Rubens Britto, Roberto Eggers e Antônio "Piratini" Amábile. Sem contar radioatores e outros protagonistas. Mas poucos foram os "cartazes" de projeção fora do Estado. Foi o caso de Alcides Gonçalves (1908-1987), o 'Voz de Trovão', figura que hoje divide com muitos de seus contemporâneos um esquecimento que só não é total devido à teimosia de pesquisadores e aficionados.
Nascido em Pelotas, Alcides era o degrau mais alto de uma escada de nove irmãos - ele, Oscar, Antonieta, Antoninho, Walter, Juvenal, Zilda, Osmar e Lourdes. A maioria cantava, tocava um instrumento ou fazia ambas as coisas, e muito bem, por sinal. Ainda piá, já demonstrava ouvidos sensíveis e voz afinada nos saraus caseiros promovidos pelo pai, trombonista amador e metalúrgico. Os primeiros passos começaram aos 13 anos, em uma quermesse de Igreja na Zona Norte. Pouco tempo depois, já emprestava seu jovem gogó a um bloco carnavalesco da Capital.
Sem perder a música de vista, suou a camisa como entregador de confeitaria, auxiliar de escritório, vendedor ambulante e tratador de cavalos. Largou o primário para cantar profissionalmente, compensando a pouca experiência com uma voz de timbre e potência marcantes, bem ao gosto de uma época ainda sem microfones elétricos, que só se popularizariam no final da década. Esforços inacreditáveis eram exigidos de pulmões e gogós, não raro custando a saúde das cordas vocais, por mais que improvisassem "megafones" acústicos com cornetas de lata ou papelão.
Sua performance não passou despercebida ao pianista Paulo Coelho, líder de um conjunto de música popular e que, em 1927, o convidou a tomar parte em suas apresentações no Café Colombo e outros endereços boêmios da Rua Praia e imediações. O novato também se puxava no violão e piano, enquanto o repertório era incrementado em tardes dedicadas à audição de discos na Casa Victor. Logo estaria em turnê com Paulo pelo Interior do Estado, Argentina e Uruguai.
Também pegou o caminho marítimo, aventurando-se em excursões a bordo de navios com o irmão Antoninho no violão, um amigo no violino e outro na bateria. "Em troca de cama, comida e gorjetas, o escrete animava o pessoal durante viagens que duravam até duas semanas, com escalas para embarque e desembarque de passageiros e cargas até Belém do Pará", detalha o livro biográfico Minha Seresta, lançado pela prefeitura em 2011. Os ventos sopravam a favor e o melhor ainda estava a caminho.
Da Rua da Praia à Rádio Nacional
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Alcides Gonçalves (em pé) acompanhado por uma Jazz Band, durante os anos 1930
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCA primeira grande arrancada de Alcides Gonçalves ocorreu em 1935. Com passagem pela Rádio Gaúcha (então instalada no bairro Moinhos de Vento e pioneira das transmissões em Porto Alegre), o 'Voz de Trovão' foi chamado para o cast da Farroupilha desde a noite inaugural, em 24 de julho. Meses de atuação no estúdio do sobrado nos altos do viaduto da avenida Borges de Medeiros permitiram que seu timbre potente, macio e cheio de personalidade logo se tornasse familiar aos ouvidos da cidade, como um meio-termo entre os cariocas Orlando Silva, Francisco Alves, Mario Reis e Sílvio Caldas.
O artista em ascensão aos 27 anos foi procurado, durante festival no cineteatro Baltimore, por um rapazinho negro, estiloso e seis anos mais novo, levando no bolso um samba sobre o malandro que chora o fim de um breve romance, na mais pura linha de Noel Rosa. Ali estava Lupicínio Rodrigues, em busca de um empurrãozinho que o permitisse ser conhecido além das rodas boêmias. Alcides topou defender Triste História em um concurso musical promovido pela prefeitura no Centenário da Revolução Farroupilha, desde que constasse como parceiro - prática comum na época.
A vitória no certame rendeu à dupla um prêmio de 2 contos de réis, preparando o terreno para novos capítulos de uma tabelinha cujo resultado seriam algumas das maiores pérolas nacionais da dor-de-cotovelo, duas décadas depois. No ano seguinte, após curta temporada na Rádio Difusora e em atrações como o Cassino Farroupilha (no Parque da Redenção), o Melhor Intérprete de Sambas e Marchas em eleição popular da Folha da Tarde colocou na mala algumas partituras de compositores locais - incluindo Triste História - e embarcou para o Rio de Janeiro.
Mesmo com sua vida cultural trepidante, Porto Alegre não tinha uma gravadora desde 1924, quando a pioneira A Casa Elétrica fechara suas portas. O material selecionado por Alcides agradou a filial carioca da RCA Victor, que em agosto de 1936 topou lançar o disco de 78 rotações com Triste História e outro samba de Lupi-Alcides, Pergunta a Meus Tamancos. O primeiro registro fonográfico do intérprete gaúcho marcava também a estreia fonográfica daquele que seria o mais importante compositor popular nascido no Rio Grande do Sul a partir de 1938, com o estouro nacional de Se Acaso Você Chegasse.
Alcides também lançava no ar sambas próprios como Tão Longe, Sofrimento de Malandro, Abandonaste o Meu Lar, Um Juramento, Pobre Malandro, Nostalgia e Quero Chorar, jamais gravados. A batalha pela consagração seria marcada pela alternância de curtas e longas temporadas em palcos e rádios de Porto Alegre (Gaúcha, Farroupilha, Difusora), interior gaúcho, Argentina, Uruguai, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e até excursão de navio com uma orquestra paulista pela América do Sul. Mas foi na Cidade Maravilhosa que ele teve o seu auge, entre o final dos anos 1930 e a primeira metade da década seguinte.
Cantou com orquestra no Copacabana Palace e ingressou no cast rotativo da Rádio Nacional, principal emissora brasileira da época. Gravou pela RCA Victor os sambas Eu Não Perdoei e Por Amor Ao Meu Amor (Flamarion/Ary Frazão), além de compor Chorar Pra Quê, "lascado na cera" pelo parceiro Ataulfo Alves. Aos 34 anos, finalmente sua figurinha estava carimbada no álbum dos maiorais, mas a concorrência interna na Rádio Nacional crescia a galope, tornando escassas as performances de Alcides ao microfone da emissora. Hora de voltar em definitivo para a capital gaúcha, onde o pai enfrentava um câncer terminal - doença que atingiria a maioria da família.
Irmãos Gonçalves, uma história trágica
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Quinteto vocal-instrumental chegou a preparar uma ambiciosa carreira internacional, mas tragédia cancelou planos
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCEm paralelo à atuação solo, Alcides se apresentava nos palcos gaúchos e porteños desde 1939 com um quinteto vocal-instrumental cujo nome já explica metade da conversa: Irmãos Gonçalves. Liderados pelo primogênito (voz, violão e piano) estavam Antoninho (violão), Oscar (voz), Juvenal (contrabaixo), Walter e Osmar (ambos no ritmo), versáteis e com bem-sucedidas trajetórias artísticas individuais. O sucesso de seus shows passou a motivar um plano ambicioso de carreira internacional, com a mudança de Walter para os Estados Unidos em 1943, a convite de uma orquestra norte-americana que o descobrira atuando com Alcides no Rio de Janeiro e no embalo de seu casamento com a dançarina do grupo.
Chamando a atenção por números como o de tocar bateria apenas com as mãos, sem baquetas, ele teve orquestra própria e se radicou no Estado do Novo México, de onde passou a articular a ida dos manos ao seu encontro. Passagens aéreas e um pré-contrato já estavam em mãos quando um telegrama trouxe a notícia trágica, em 1947: Walter havia falecido, aos 31 anos, vítima de um câncer renal até então omitido da família em Porto Alegre. Restou aos 'Gonsalves Brothers' desfazerem as malas, conformados com o fim do sonho.
Cadeira vazia
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Lupicínio Rodrigues e Alcides, durante Festival na Rádio Difusora (1937)
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCFixado de vez em Porto Alegre na segunda metade da década de 1940 e já sem emprego regular nas rádios, Alcides passou a dividir suas jornadas como funcionário do Instituto Riograndense da Carne e músico de endereços como a célebre boate Marabá, na Siqueira Campos (Centro). Foi quando retomou a colaboração criativa com o já consagrado Lupicínio Rodrigues. Não que fossem grandes amigos, mas tinham boa convivência e plena noção da qualidade daquela tabelinha, novamente materializada com o samba-canção Quem Há De Dizer, inspirado no ciúme de Alcides por sua então namorada, dançarina da casa noturna onde ele era pianista.
"Quem há de dizer / Que quem vocês estão vendo / Naquela mesa bebendo / É o meu querido amor / Repare bem que toda vez que ela fala / Ilumina mais a sala / Do que a luz do refletor (...)".
Lançada pela Odeon em julho de 1948 na voz do carioca Francisco Alves, a composição foi um "abafa" nacional, o mesmo ocorrendo em 1950 - repetindo-se o intérprete - com Maria Rosa e, principalmente, Cadeira Vazia:
"Entra, meu amor / Fica à vontade / E diz com sinceridade / O que desejas de mim / Entra, podes entrar, a casa é tua / Já que cansastes de viver na rua / E os teus sonhos chegaram ao fim (... )"
"Êpa, cadê meu nome nesse negócio?", esbravejou Alcides ao constatar que o selo do 78 rotações trazia impresso apenas o nome de Lupicínio como autor de Cadeira Vazia. Conhecido por seu pavio curtíssimo, o 'Voz de Trovão' culpou a Odeon e o parceiro, que argumentou tratar-se de uma falha burocrática - diretor regional da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores e Editores de Música (Sbacem), Lupi enviou ofício à gravadora com o pedido de que o erro não mais ocorresse. Mas o estrago já estava feito e o sempre invocado Alcides deu por encerrada a dupla, optando por compor sozinho ou com outros colegas.
Broncas à parte, é inegável a relevância da dobradinha que ressaltou musicalmente o que de melhor havia dentre as mais de 300 assinadas pelo baixinho da Ilhota e das quase 80 do colaborador, por mais que o nome deste último ainda seja omitido por intérpretes menos atentos. "A obra construída com letras de Lupicínio e o refinamento melódico e harmônico de Alcides está entre o melhor da produção de ambos", salienta o músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria em seu livro Porto Alegre: uma Biografia Musical (2022).
Funcionário público e seresteiro
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Alcides Gonçalves (ao centro) com o conjunto Irmãos Gonçalves, nos anos 1940
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCCasado em 1954 com a telefonista Ema (ele 46 anos, ela 24) e pai de um filho, Alcides se mantinha no posto de um dos mais requisitados seresteiros da cidade, embora afastado do rádio. "Não gosto de revelar a idade, é prejudicial para fazer shows, porque podem pensar que estou velho, embora isso não signifique nada", declarou a um repórter de jornal. Nessa mesma época, topou a proposta, recebida durante apresentação no interior do Paraná, de assumir a Direção Artística da Rádio Londrina. Permaneceu naquela cidade até 1957, também cantando e arriscando investimentos no ramo de café.
O acabou-se-o-que-era-doce se deu após algumas quebras de safra que afetaram a economia local e, por extensão, os patrocinadores da emissora. De volta a Porto Alegre, conseguiu 'cabide' em Secretarias Estaduais, enquanto a música permanecia em segundo plano, ainda que com gratas surpresas. Como a gravação pelo carioca Orlando Silva, em 1961, de Minhas Valsas Serão Sempre Iguais, composta nos tempos de Rádio Nacional com o paulista Pedro Caetano. Estimulado, voltou a frequentar a boemia e a concorrer em festivais de samba e choro, inclusive em São Paulo e Rio, eventualmente faturando prêmios.
Novo ânimo
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Nos últimos anos de vida, Alcides Gonçalves (aqui em foto no final dos anos 1970) retomou a boemia e gravou dois LPs
ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JCEmpregado como assessor na Assembleia Legislativa durante uma década, Alcides já encaminhava sua aposentadoria em 1978 quando recebeu diagnóstico de câncer intestinal. Ele ainda se recuperava de cirurgia na fase inicial da doença quando foi visitado pelo produtor cultural e também seresteiro Aroldo Dias: "Eu não o conhecia pessoalmente, mas minha irmã era enfermeira do Hospital da Pucrs e havia falado da presença de um 'músico das antigas', então resolvi arriscar. Conversamos e o velho foi receptivo à ideia de excursionar com meus shows de veteranos. Acabei me tornando amigo, motorista, empresário e colega de palco, junto com outros artistas".
Enquanto a saúde permitiu, Alcides continuou na ativa, enaltecido por cronistas dos principais jornais e emissoras, além de troféus e outras homenagens. Mas a progressiva debilitação física foi dificultando as coisas. A morte do boêmio aos 79 anos, em 9 janeiro de 1987, não apagou seu brilho. Colegas, fãs e camaradas participaram de uma serenata de despedida no Cemitério João 23, em meio a declarações emocionadas à imprensa. Dali em diante, muitos dos presentes se engajariam a eventos-tributo coletivos em locais de gabarito como o Theatro São Pedro.
O engenheiro, incentivador e também amigo José Alberto de Souza teria papel fundamental na continuidade dessas ações. Ao produzir o CD Por Amor à Música (1998), reservou espaço a três composições de Alcides por artistas de diferentes épocas. Também caberia a Souza e ao Sindicato dos Compositores do Rio Grande do Sul o convencimento junto à prefeitura para que 2008, centenário do artista, fosse decretado "Ano Alcides Gonçalves na Música de Porto Alegre", com apresentações no Teatro Renascença, Mercado Público e Assembleia Legislativa, além de um livro biográfico publicado pela então Secretaria Municipal da Cultura.
Hoje restrita nas plataformas digitais aos dois sambas de 1936 (inseridos 60 anos depois pelo selo paranaense Revivendo no repertório de uma coletânea de quatro CDs com as primeiras gravações do cancioneiro de Lupicínio Rodrigues), a 'Voz de Trovão' permanece à espera de um resgate proporcional à importância de seu dono, um dos grandes artistas brasileiros de seu tempo. "Enquanto isso não acontece, resta-nos remoer nos velhos bolachões a saudade do curto intervalo em que privamos de seu convívio", suspira José Alberto de Souza.
Discografia
LP - Cadeira Vazia (Continental • 1977)
Décadas de serviços prestados à música pareciam insuficientes para que alguém se dignasse a produzir um LP de Alcides. Até que o 'Voz de Trovão' foi chamado pela gravadora paulista Continental a estrelar o sétimo volume da série Destaque, dedicada ao resgate fonográfico de nomes da velha guarda - Elizeth Cardoso, Vicente Celestino, o gaúcho Radamés Gnattali etc. Escoltado pelo talento regional de Plauto Cruz (flauta), Jessé Silva (violão), Clio Paulo (cavaquinho) e Valtinho (Pandeiro), o seresteiro mostrou ótima forma em 12 faixas autorais, dentre antigas e inéditas, com boa vendagem e elogios da imprensa.
LP - Pra Ela (Isaec • 1981)
Outras 11 peças do repertório menos conhecido do seresteiro foram selecionadas em 1982 pelo amigo, compositor e advogado Flávio Pinto Soares (incluindo oito parcerias entre ambos), que bancou a produção de mil cópias do elepê independente Pra Ela. Produzido no estúdio da gravadora porto-alegrense Isaec e igualmente merecedor de comentários positivos, o álbum inovou ao mixar as performances de Alcides (então aos 74 anos) e conjunto regional a uma elegante cama de cordas e metais da Ospa, sob regência de Alfred Hülsberg.
Em 78 rotações
- Pergunta A Meus Tamancos / Triste História (Lupicínio Rodrigues/Alcides Gonçalves) • RCA Victor • 1936
- Eu Não Perdoei / Por Amor Ao Meu Amor (Flamarion/Ary Frazão) • RCA Victor • 1940
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.