Mesmo que você não seja um assíduo leitor de gibis, provavelmente já se deparou com alguma história de Pablo Diego dos Santos Aguiar, ou Pablito Aguiar. Prestes a completar uma década de carreira, o artista de Alvorada tem contribuído para popularizar um formato que ainda é desconhecido do grande público: o jornalismo em quadrinhos.
Esse gênero narrativo começou a ganhar notoriedade a partir da década de 1990, quando Joe Sacco publicou Palestina, uma longa reportagem desenhada para a qual ouviu mais de 100 pessoas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Com um trabalho minucioso de apuração, o jornalista maltês mostrou que a chamada nona arte poderia ser uma plataforma tão boa quanto qualquer outra para registrar fatos e momentos históricos.
Assim como Sacco, Pablito reúne qualidades essenciais para quem deseja atuar nesse ramo, como uma grande capacidade de escuta e observação. "Basicamente, o que faço é ouvir o que as pessoas têm a dizer e colocar isso no papel. E há muitas histórias por aí que merecem ser contadas", garante.
Pablito é um especialista em perfis. Mas não se trata de qualquer perfil. Seus entrevistados são quilombolas, pescadores artesanais, pessoas em situação de vulnerabilidade social. Seres humanos comuns, que geralmente não têm espaço na mídia. Seria essa uma escolha política?
"Todas as nossas escolhas são políticas. Até quando eu opto por beber um suco de laranja ao invés de um refrigerante, há uma filosofia por trás disso. Na minha forma de entender o mundo, considero importante falar sobre esses temas", argumenta.
Pablito consegue abordar mesmo os assuntos mais espinhosos com uma leveza rara. Muito disso se deve ao estilo de desenho. Seu traço é simples e vivaz, como o de uma história em quadrinhos infantil, mas atento à reprodução fidedigna dos cenários e das expressões das pessoas retratadas.
Autor de livros como Notas de um Tempo Silenciado, sobre a ditadura militar, e Um Grande Acordo Nacional, sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o também jornalista em quadrinhos Robson Vilalba ficou impressionado ao descobrir o trabalho de Pablito. Os dois se conheceram anos atrás, em uma edição da Bienal de Quadrinhos de Curitiba.
"O fluxo dos desenhos, dos personagens… É tudo muito encantador, muito humano", destaca Vilalba. "Acho interessante como ele pega um microcosmo, uma vida, e desenvolve as cenas. Seja uma pessoa subindo num barco ou saindo para caminhar, o desenrolar é quase dramatúrgico, com ações em sequência acompanhadas de um texto jornalístico. E o mais legal é que a imagem não se limita a repetir o que está sendo dito."
Para Tito Montenegro, editor da Arquipélago Editorial, responsável pela publicação dos mais recentes livros de Pablito — Almoço: Uma Conversa com Eliane Brum (2022) e Conversas em Porto Alegre (2023) —, é essa abordagem inovadora que torna a obra do quadrinista tão cativante. "Ao mesmo tempo que ele tem delicadeza no traço, também mostra uma força muito grande na apresentação do discurso e no posicionamento dos personagens. São quadrinhos que a gente lê e ficam ressoando na cabeça", afirma.
Entre aqueles impactados pelo talento de Pablito está o professor e escritor Luís Augusto Fischer, que no prefácio de Conversas em Porto Alegre o chamou de "uma das sensibilidades imprescindíveis de nossa época". Assim como a maioria dos leitores, ele conheceu o quadrinista-repórter por meio das redes sociais — a história de Betinho, o porteiro do Edifício Santa Cruz, foi a que chamou sua atenção. Fischer logo convocou o rapaz para publicar na revista Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo. No espaço, Pablito desenvolveu o projeto Fala que eu Desenho, que registra o pensamento de diferentes moradores de Porto Alegre.
"As virtudes do Pablito são várias. Algumas são visíveis a olho nu — seu traço, sua capacidade de ao mesmo tempo desenhar levemente, com rostos que parecem saídos de um gibi para crianças, e com a dinâmica certa para a narração", elogia Fischer. "Mas a principal é menos óbvia: seu sentimento de profunda humanidade e seu discernimento para flagrar figuras representativas da vida comum."
"Quando entrevisto alguém, sou transportado para outro lugar"
Tira sobre Betinho, do livro Conversas em Porto Alegre
/PABLITO AGUIAR/REPRODUÇÃO/JCAlvorada é um município com pouco mais de 187 mil habitantes, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em 2019, chegou a ser classificado pelo Atlas da Violência como o sexto mais perigoso do Brasil.
Nascido e criado lá, Pablito Aguiar, 36 anos, sempre conviveu com esse estigma. Era algo que o intrigava; afinal, a cidade não poderia ser um lugar tão horrível assim. Ele mesmo só conseguiu enxergar isso quando usou o faro de repórter para ir atrás de uma outra Alvorada, muito diferente daquela condenada pelos indicadores de criminalidade.
De uma tira quinzenal publicada no jornal local A Semana, a iniciativa cresceu e virou livro. Lançado em 2017, Alvorada em Quadrinhos conta a história de 23 moradores do município — uma delas, a da recicladora Rita de Cássia Araújo, rendeu o primeiro lugar na categoria Quadrinhos do 25º Salão Internacional de Desenho para Imprensa.
"Esse trabalho foi uma espécie de revolução para mim, porque comecei a gostar mais da cidade onde nasci. Ao conhecer a vida dessas pessoas, percebi que Alvorada tem muitos lugares bonitos, um potencial enorme. Ela é muito mais do que esse preconceito", diz.
O primeiro projeto de jornalismo em quadrinhos já trazia muito da identidade do artista, que na infância preferia Turma da Mônica a aventuras de super-heróis. Uma grande influência foi o norte-americano Bill Watterson, de Calvin e Haroldo (daí os pontinhos pretos no lugar dos olhos dos personagens). Outro foi o argentino Liniers. "Ele fazia entrevistas em quadrinhos com personalidades, como o ator Ricardo Darín, para o jornal La Nación", recorda. "Ali percebi que gostaria de seguir uma linha parecida. Só que com pessoas comuns."
Mesmo desenhando desde criança, Pablito demorou algum tempo para levar a coisa a sério. Não se considerava bom o suficiente. Somente a partir de 2012, na época da graduação — primeiro cursou Design e depois se formou em Comunicação Digital na Unisinos — é que passou a acreditar em suas habilidades como desenhista.
No Trensurb, a caminho da faculdade, decidiu desenhar os passageiros que encontrava no percurso. Os desenhos logo se transformaram no projeto Recortes no Metrô, que trazia um estilo diferente do que adota hoje, misturando também aquarelas e fotografias.
Em 2015, teve a oportunidade de fazer intercâmbio, através do programa Ciência sem Fronteiras. Passou cerca de um ano em Bilbao, na Espanha, onde cursou Belas Artes na Universidade del País Vasco.
Lá, mergulhou em diversas técnicas artísticas, mas, sobretudo, em uma cultura muito diferente da brasileira. Viajou pela Europa de transporte público, dando uma nova perspectiva ao Recortes do Metrô. Talvez por isso quem lê as histórias de Pablito possa ter a impressão de estar “viajando” para um mundo até então desconhecido.
Mas ele queria mais. Além de ver, ouvir. "De todas as etapas do meu trabalho, a que mais gosto é falar com as pessoas. Quando entrevisto alguém, é como se estivesse sendo transportado para outro lugar. E esse movimento me ensina muitas coisas."
Por essa declaração, entende-se porque sua maior referência não vem dos quadrinhos, mas do jornalismo. Um dia, ao ver um programa de entrevistas, Pablito se apaixonou pelo trabalho de uma famosa repórter gaúcha: Eliane Brum.
Pessoas comuns, histórias extraordinárias
Tira sobre o Anjo, do livro Conversas em Porto Alegre: obra foi publicação mais vendida da Arquipélago Editorial na Feira do Livro de 2024
/PABLITO AGUIAR/REPRODUÇÃO/JCPablito mal havia começado a retratar personagens para a seção Fala que eu Desenho, da revista Parêntese, quando a pandemia chegou ao Brasil. Naquele momento, encontrar entrevistados poderia ser uma missão ingrata, mas havia muita gente disposta a falar — desde os que exigiam uma postura mais firme do governo aos que queriam apenas um ombro amigo para desabafar.
E, claro, não faltaram histórias emocionantes. Uma delas, sobre um grupo de jovens que fez amizade pela sacada com um senhor que morava com seus dois gatos no prédio do outro lado da rua, ganhou enorme visibilidade após uma reportagem do Fantástico.
Via de regra, é ele quem encontra potenciais personagens. Às vezes, acontece por acaso. Como quando Pablito sentou no ônibus ao lado de Adriana de Oliveira Machado. Ao trocar uma ideia com a diarista, cuja trajetória era marcada por perdas e muita superação, o repórter ficou encantado pela forma como ela tratava os cinco filhos. "Essa é uma das histórias mais emocionantes do Conversas em Porto Alegre", confessa.
Para Adriana, que jamais havia imaginado um dia estar nas páginas de um livro, tudo o que for dito sobre o talento de Pablito ainda será pouco. "Ele é um jovem com um trabalho extraordinário, que merece todo o reconhecimento possível", emociona-se. Entre lágrimas, explica que um dos filhos acabou falecendo de câncer há menos de um ano. "Eu revejo a história com carinho e penso que, pelo menos, ele conseguiu aparecer ali junto com a gente."
Sobre a história, a diarista lembra que Pablito mostrava preocupação com cada detalhe, tanto que fez questão de acompanhá-la em um culto na igreja que ela frequenta. "Eu acredito que Deus coloca anjos na nossa vida. O Pablito é um deles", completa Adriana.
Por falar em anjo, quem mora em Porto Alegre certamente conhece Ramon Julio Abraham Ponce Dornelles. Ou simplesmente Abraham, que trabalha há 26 anos como o Anjo da Esquina Democrática — e também do Brique da Redenção e do Gasômetro.
Um dos 14 protagonistas de Conversas em Porto Alegre, o argentino abriu sua casa para Pablito após contato via rede social durante a pandemia. Em sua primeira aparição nos quadrinhos (ainda no Fala que eu Desenho), relatou as dificuldades de ser um artista de rua no período de isolamento.
"Fiquei um ano e pouco sem trabalhar. Pablito teve a sensibilidade de tentar entender como eu estaria lidando com essa situação e fez uma história linda", diz Abraham. "É um cartunista excepcional, que sabe captar muito bem as coisas e entrar na história de outra pessoa."
Já no livro, o quadrinista revela um pouco da rotina do Anjo “à paisana”, como veio parar na Capital e de que forma percebe as reações do público ao seu trabalho. Tudo isso enquanto o entrevistado se prepara para mais um dia de labuta no Centro.
Assim como outros personagens da obra, Abraham participou de uma sessão de autógrafos na Feira do Livro de 2024. A propósito, Conversas em Porto Alegre foi a publicação da Arquipélago mais vendida durante o evento.
Um almoço inesquecível
Novo projeto do quadrinhista Pablito Aguiar inicia em fevereiro, quando ele passará seis meses conversando com moradores de Altamira, no Pará
/ANDRESSA PUFAL/JCPablito descobriu o trabalho de Eliane Brum em 2013, ao assistir a uma entrevista dela no programa Provocações, da TV Cultura — à época, apresentado pelo saudoso Antonio Abujamra. Identificou-se de imediato com a jornalista e foi atrás de tudo o que ela havia escrito até então. O que não imaginava é que um dia teria o privilégio de entrevistá-la na intimidade do lar, em Altamira, no Pará.
Corta para 2022. A Arquipélago Editorial convida o quadrinista para participar de um projeto cujo objetivo era presentear os leitores de Eliane, um dos destaques de seu catálogo. Segundo o editor Tito Montenegro, a dica foi da analista de marketing digital Thais Leidens, que pensou em aproximar o quadrinista-repórter de sua principal referência jornalística.
Sem titubear, Pablito fez a proposta: e se ele entrevistasse Eliane na casa dela, enquanto cozinhava? A ideia foi inspirada por uma obra da própria jornalista, Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo. "No livro, ela fala que quando faz feijão se sente uma bruxa, misturando temperos, e também reflete sobre a vida. Pensei que seria bacana entrevistá-la em uma situação cotidiana como essa."
O resultado do encontro é Almoço, um livro em que Pablito apresenta aos leitores uma Eliane Brum que poucos conhecem, conversando e cozinhando na companhia do marido, o jornalista britânico Jonathan Watts, e seus bichinhos.
Nas redes sociais, Eliane rasgou elogios a Pablito, a quem chamou de "uma pessoa-ente com o poder imenso da delicadeza". "Eu ainda fico perplexa por ter virado personagem de quadrinhos, mas também muito faceira. Ficava pensando sobre quem se interessaria por ler uma história em quadrinhos em que eu fosse personagem e cuja ação mais trepidante fosse eu picando cebola… Eu achava que Tito e Pablito estavam pirando. Só que não, parece que tem gente interessada numa história de delicadezas sobre um almoço de feijão gordo numa casa em construção na Amazônia. Certamente porque Pablito tem o dom", escreveu.
Depois de Almoço, Pablito reforçou o time de autores da Arquipélago e se manteve em contato com Eliane, que logo o convidaria para trabalhar em uma nova empreitada: a plataforma global de jornalismo Sumaúma.
Relatos de um planeta em colapso
História do cavalo Caramelo, que comoveu o Brasil durante as enchentes no Estado, foi desenhada por Pablito e publicada no portal Sumaúma
/PABLITO AGUIAR/REPRODUÇÃO/JCNo portal Sumaúma, Pablito se viu diante do desafio de desenhar roteiros não escritos por ele, e, mesmo que com um viés bastante realista, fictícios. Isso porque o novo projeto, denominado Guariba, conta a história de um macaquinho perdido na Floresta Amazônica, à procura de sua família e sua casa. Em parceria com a poeta Raimunda Tutanguira e o jornalista Jonathan Watts, o quadrinista já desenhou quase 60 episódios, que devem ser reunidos em livro neste ano.
Enquanto fazia esse trabalho, Pablito acabou vivenciando de perto a tragédia climática no Rio Grande do Sul. Em maio de 2024, sob risco de alagamento, estava prestes a deixar sua casa, no bairro Sumaré, quando Eliane Brum o contatou para ver se ele conseguiria produzir quadrinhos sobre as enchentes.
Mesmo sob condições adversas, Pablito deu um jeito. "Era meu sonho trabalhar como repórter para eles. Comecei a mandar mensagens para pessoas que sofreram bem mais que eu, ou que precisaram resgatar outras de barco, de jetski."
No total, foram 14 histórias para a editoria Planeta em Colapso. A última, sobre aquele que se tornou um símbolo de resistência: o cavalo Caramelo. Engana-se quem acha que Pablito simplesmente deu asas à imaginação para que o animal tivesse uma voz na história. O que ele conta tem como base depoimentos de pessoas que estiveram junto de Caramelo, seja no resgate, seja prestando cuidados veterinários.
"É legal esse exercício de imaginar o que o animal pensa, né? Mas tudo o que está lá, desde os traumas com carroças até o fato de que ele gosta de rolar na grama, foi escrito com base no que realmente aconteceu". Assim como Guariba, os quadrinhos sobre as enchentes também devem ganhar uma versão impressa pela Arquipélago em 2025.
Novas histórias a caminho
Tira do macaquinho Guariba, criado para o portal Sumaúma
/PABLITO AGUIAR/REPRODUÇÃO/JCPara quem tem curiosidade em conhecer a obra de Pablito, a dica é acompanhá-lo nas redes sociais (com destaque para a conta @pablito_aguiar, no Instagram, onde o artista é mais ativo e posta histórias na íntegra). No site pablitoaguiar.com.br, é possível encontrar uma grande amostragem do que ele já publicou, incluindo ilustrações, mapas e gibis independentes feitos no início da carreira.
Também há publicações relativamente recentes, como Marisqueiras (2023), que retrata a rotina de trabalho de duas mulheres quilombolas de Ilha de Maré, na Bahia. Esse trabalho demonstra que Pablito não pretende restringir seu campo de atuação às fronteiras do Rio Grande do Sul.
E é isso o que acontecerá a partir de fevereiro, quando ele voltará a Altamira. Deve ficar pelo menos seis meses, escutando o que os moradores da cidade paraense têm para contar. “Eu não sei exatamente o que vai surgir dessa viagem. Só sei que vou lá para fazer o que mais gosto: ir em busca de boas histórias.”
* Daniel Sanes é jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Já foi repórter e editor no Jornal do Comércio. Hoje, trabalha na República – Agência de Conteúdo e atua como freelancer.