Paulo César Teixeira, especial para o JC
No início dos anos 1970, Porto Alegre vivia uma acelerada mudança de paisagem. Sob a batuta do engenheiro Telmo Thompson Flores, nomeado prefeito pelo governo militar, a cidade assistia à inauguração de uma profusão de obras, como as do Túnel da Conceição (1972) e dos viadutos Loureiro da Silva (avenida João Pessoa com Salgado Filho, de 1970), Tiradentes (Silva Só com Protásio Alves, de 1972) e Dom Pedro I (José de Alencar com Praia de Belas, de 1972). A essa altura, os bondes já não circulavam por ruas e avenidas, abrindo caminho para o protagonismo de ônibus e automóveis.
No embalo das modernidades, havia quem defendesse a construção de um viaduto no cruzamento da avenida Borges de Medeiros com a Rua da Praia, hoje conhecida como Esquina Democrática - a pista elevada conduziria veículos, reservando-se espaço embaixo dela para a passagem de pedestres. Por aqueles dias, um jovem estudante de arquitetura escreveu uma carta para a seção de leitores do Correio do Povo com o título "A Borges fechada". Nela, propunha, simplesmente, o fechamento do tráfego de carros e ônibus no trecho da avenida entre Salgado Filho e José Montaury, o que, de fato, viria a acontecer na segunda metade da década de 1970, já na gestão de Guilherme Socias Villela na prefeitura (essa medida foi, em 2022, parcialmente revertida).
"Fui um pioneiro", diz o arquiteto Flávio Kiefer, ao lembrar o episódio de mais de meio século atrás. Os ideais e as inquietações que o moviam naquele tempo continuam presentes, como atesta Cidade abstrata (Libretos Editora), recém-lançado livro de crônicas, no qual, mais do que sugerir respostas prontas ao leitor, propõe perguntas provocativas para instigá-lo. Qual é a relação entre o nosso jeito de ser e viver com a cidade? Por que a arquitetura perdeu a função de dignificar e qualificar o espaço público? O cenário urbano tende a ser tão efêmero como as páginas da internet?
Não faltam qualificações para promover o debate. Responsável (junto com Joel Gorski) pela transformação do Hotel Majestic na Casa de Cultura Mario Quintana, Kiefer é autor de outros projetos icônicos de Porto Alegre, como o Centro Cultural Erico Verissimo e a Casa Lutzenberger, além de integrar a equipe contratada pela prefeitura para mapear as Áreas de Interesse Cultural da capital gaúcha. Em paralelo à arquitetura, o dom da escrita jamais foi deixado de lado. "Escrever sempre foi um prazer. Depois da bicicleta e do autorama, o melhor presente de que tenho lembrança (na infância) foi uma máquina de escrever", ressalta.
Na juventude, marcava presença no jornalzinho do curso pré-vestibular Universitário, que tinha entre seus fundadores o crítico literário e editor Carlos José Appel, bastante amigo de seu pai, o músico Bruno Kiefer (1923/1987). Dessa fase é, aliás, a crônica Rua nua e crua, incluída em Cidade abstrata. Afora isso, Flávio (que é também professor, atualmente lecionando na Pucrs) escrevia para jornais de bairro como Oi Menino Deus e Já Bom Fim. "Era metido, dava meus pitacos. Se publicassem, ok. Emplaquei até um artigo na Folha de S.Paulo sobre a lei de zoneamento da capital paulista."
Já arquiteto reconhecido, lançou diversos livros técnicos ao longo das últimas décadas, como Fundação Iberê Camargo, finalista do Prêmio Jabuti, de 2009. Com Cidade abstrata, é a primeira vez que se aventura no terreno de crônicas (a maior parte publicada, originalmente, no site Sler). "A arquitetura precisa sair de sua própria bolha e ajudar as pessoas a entenderem que a cidade não precisa ser como é, ela pode mudar, só depende de nós", sustenta.
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Mata virgem à beirado Rio do Peixe
Flávio Kiefer assinou, ao lado de Joel Gorski, o projeto para a futura CCMQ
/THAYNÁ WEISSBACH/JC
Nascido em 9 de fevereiro de 1955, o porto-alegrense Flávio Kiefer é de uma família de imigrantes alemães. Nos anos 1930, perseguidos por Adolf Hitler por conta de suas atividades antinazistas, os avós paternos Friedrich e Ottilie se viram obrigados a fugir para o Brasil. Demitido do cargo de redator-chefe do jornal Rottenburger Zeitung, o avô havia sido proibido de voltar a trabalhar como jornalista e ainda tivera os bens confiscados.
Em 1934, Friederich e Ottilie abandonaram a beira do lago de Constança, no sul da Alemanha, e cruzaram o Oceano Atlântico para se estabelecer em Tangará, às margens do Rio do Peixe, em Santa Catarina. "O que havia ao redor eram roças e mata virgem. A mudança era brutal, mas fascinante", contou o primogênito dos oito filhos do casal, o compositor, flautista e professor (referência tanto da música de câmara quanto sinfônica) Bruno Kiefer (pai do arquiteto), que tinha 11 anos à época. Em seguida, Bruno se desgarrou do restante da prole para estudar em Porto Alegre, abrigando-se na casa de outra família de origem alemã.
Quando Hitler foi derrotado, ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a intenção de Friedrich era retornar para a Alemanha, mas os filhos tinham estabelecido raízes no Brasil, o que o fez desistir da ideia. Bruno fincara âncora na capital gaúcha, onde se casou com a pianista Léa Roland Kiefer, descendente de judeus russos. Outra parte da família Kiefer se radicou em São Paulo, o que explica a afinidade de Flávio com a megalópole. "Por outros caminhos, ainda me casei com uma paulista" (a artista plástica Gisela Waetge, falecida em 2015, com quem teve os filhos Pedro, engenheiro que trabalha com TI, e Luísa Kiefer, jornalista).
Formado em arquitetura pela Ufrgs, em 1979, Flávio fez estágio no prestigiado escritório de Carlos Maximiliano Fayet, autor dos projetos do Palácio da Justiça (em parceria com Luís Fernando Corona), do auditório Araújo Vianna (com Moacyr Moojen Marques) e da Refinaria Alberto Pasqualini (com Cláudio Araújo). O passo seguinte foi conseguir uma bolsa do governo francês para estudar transporte urbano em Paris. No retorno ao Brasil, arrumou emprego no Conselho Estadual de Desenvolvimento Urbano (Cedu), que produzia pesquisas em convênio com o Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes (Geipot).
Hoje, essas siglas estão arquivadas, pois representam órgãos públicos extintos ou transformados em outros departamentos. Com frequência, o salário atrasava, mas Kiefer tinha direito a viajar num avião Bandeirantes para prestar assessoria sobre remanejamento de trânsito e localização de pontos de ônibus para prefeituras como as de Erechim, Passo Fundo e Santa Maria. O melhor é que, no Cedu, trabalhou com Joel Gorski, consolidando uma parceria que atuaria na restauração do antigo Hotel Majestic, convertido na Casa de Cultura Mario Quintana.
Uma lista de hóspedes ilustres
Obra icônica do alemão Theo Wiederspahn, o Hotel Majestic foi reconfigurado para abrigar a Casa de Cultura Mario Quintana, hoje um símbolo da Capital
/ANDRESSA PUFAL/ARQUIVO/JC
Construído entre 1916 e 1933, com assinatura do alemão Theo Wiederspahn (que também idealizou os prédios do Margs, dos Correios e Telégrafos e da Cervejaria Brahma), o Hotel Majestic teve hóspedes ilustres, como o presidente Getúlio Vargas, a vedete Virgínia Lane e o cantor Francisco Alves. No ano de 1955, João Gilberto, a principal voz da Bossa Nova, morou no hotel da Rua da Praia cerca de oito meses, antes de ficar famoso.
Mas a figura pública mais destacada entre os hóspedes do Majestic é a do poeta Mario Quintana, que ali viveu de 1968 a 1980, ano em que, falido, o hotel foi adquirido em leilão pelo Banrisul, o que o salvou da demolição. "Mais do que o valor arquitetônico, a ideia de proteção se devia à ligação com Quintana", comenta Kiefer. Em 29 de dezembro de 1982, o governo do Estado comprou o imóvel do Banrisul e, um ano mais tarde, o prédio foi tombado como patrimônio histórico. Por meio da Lei estadual nº 7.803, de 8 de julho de 1983, de autoria do então deputado Ruy Carlos Ostermann, recebeu a denominação de Casa de Cultura Mario Quintana. De que maneira Kiefer se envolveu com o projeto de restauração do edifício?
Em parte, foi graças à amizade de Bruno Kiefer com Carlos Appel, nomeado subsecretário de Cultura quando Pedro Simon assumiu o governo do Estado, em 1987. Aliás, Appel desempenhou papel fundamental não apenas na abertura da CCMQ, mas na própria criação da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), em 1990. Por ironia do destino, o início dos trabalhos de remodelação do edifício coincidiu com o falecimento do pai de Flávio (não por acaso, o centro cultural abriga o Teatro Bruno Kiefer). "Aquele foi um período rico e produtivo, mas também duro. Ao mesmo tempo que restaurava um prédio que estava 'morto', fazia uma reciclagem interna para superar o luto."
Afora os laços familiares, Kiefer aderira a um núcleo formado para discutir políticas culturais na campanha eleitoral do candidato do PMDB. Vitorioso nas urnas, Simon foi convencido a tirar do papel o projeto de restauração do Majestic e constituiu uma comissão (presidida pelo poeta e compositor Sérgio Napp) de caráter "consultivo-deliberativo" para definir o perfil da Casa de Cultura.
Para ter certeza de que era possível salvar a edificação, Simon solicitou um laudo da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec). A resposta foi positiva, mas havia muito o que fazer. Faltava luz elétrica e aberturas no telhado permitiam entrada da água da chuva em salas e corredores do quinto ao sétimo andar. Outra dificuldade era desalojar os inquilinos que ainda não tinham abandonado o local, o que incluía pessoas físicas e entidades púbicas e privadas (até o adido cultural francês estava em um quarto do hotel). O passo seguinte foi ocupar o prédio, do jeito que dava.
Arte e arquitetura nas ruínas do hotel
Foi montado um escritório para elaboração in loco do anteprojeto de restauração. "Foram três anos e meio trabalhando nos escombros do edifício. Lembro que era muito gelado e, além disso, havia bastante discurso e pouco dinheiro, por isso, quase nada acontecia. Mas éramos jovens, cheios de ideais, e estávamos animados", conta Kiefer. Quando, enfim, foi disponibilizada uma pequena verba, os arquitetos concentraram seus esforços em aprontar a escadaria da ala oeste do edifício. "Se não tivesse mais dinheiro, faríamos só a escada. Era uma estratégia para forçar que a coisa andasse para frente. Afinal, quem iria inaugurar uma escada num prédio em ruínas?".
Kiefer e Groski passaram a frequentar os sofás dos programas de entrevistas ao vivo, à tarde, nos canais de televisão, para pedir doações, o que sensibilizou a opinião pública. "Telespectadores mandavam armários de aço. A Caixa Econômica Federal doou verba para material de desenho. E conseguimos cadeiras com defeitos que estavam jogadas no depósito do governo do Estado". Certa manhã, dois policiais militares se postaram em frente ao Majestic. Sensibilizada, a Brigada Militar havia enviado os homens para prestar colaboração nas obras. "O que vamos fazer com os brigadianos?", perguntou Kiefer. "Botamos para derrubar as paredes dos quartos", sugeriu Gorski. E assim foi feito. Não havia mesmo sentido em preservar cubículos no desenho de um centro cultural.
Bem ao espírito da época, que coincide com a redemocratização do País, a comissão presidida por Napp definiu que o projeto deveria contar com participação ativa da comunidade cultural. Assim, artistas de diferentes áreas ocuparam o edifício para promover atividades de teatro, literatura, dança, artes plásticas e arte infantil, além de audições, conferências e lazer para idosos. No hall de entrada, criou-se uma sala de leitura com jornais e revistas para quem quisesse ler. Tudo era precário e improvisado. Nos ensaios de teatro, tinha-se a sensação de que as palavras ditas pelos atores eram repetidas infinitas vezes, tal a reverberação do espaço, que ganhou o apelido jocoso de "Sala do Eco".
A mudança de rota se deu a partir do seminário Panorama das Casas de Cultura do Cone Sul, em março de 1988. Com a participação de representantes de outros estados brasileiros e do Uruguai e da Argentina, o encontro foi realizado na cinemateca Paulo Amorim, que já funcionava na Casa. "Com a repercussão do seminário, o que era apenas sonho ganhou materialidade e objetividade", afirma Kiefer. Segundo ele, o projeto se preocupou em preservar o sentido de unidade original proposto por Wiederspahn ao contrapor e misturar a dualidade de dois terrenos com a unidade majestosa de um só prédio. "Além disso, existia um compromisso com a memória do edifício: haveríamos de restaurar sua dignidade e importância e tentar mostrar o papel da arquitetura no desenvolvimento cultural da cidade".
Atualmente, a CCMQ é um dos principais centros culturais do País, além representar um exemplo irretocável de preservação do patrimônio histórico, tendo estimulado a recomposição de outros espaços, como os teatros Prezewodowski, de Itaqui, construído em 1886, e Treze de Maio, de Santa Maria, de 1890. Inaugurada em 25 de setembro de 1990, já com Sinval Guazzelli como governador, constituiu uma das marcas do governo de Simon, junto com a construção da Estrada do Mar, aberta no mesmo ano.
Nem tudo foi preservado ao longo das últimas décadas. Um dos principais eixos do projeto arquitetônico era fazer com que a própria circulação no edifício (combinando elementos do passado e do presente) representasse, por si só, uma atração para os visitantes. Mas essa intenção foi, em parte, prejudicada com a implementação do escritório RS Criativo, do governo estadual, no terceiro piso. "Interrompeu o percurso cultural que é parte da essência da Casa de Cultura. Ninguém sofreu com isso, talvez apenas eu e o Joel", lamenta Kiefer.
Obras de Flávio Kiefer (restaurações)
Casa de Cultura Mario Quintana (1990)
Casa de Cultura de Esteio (1994)
Centro Cultural Erico Verissimo (2001)
Vila Santa Thereza, Bagé (2004)
Casa Lutzenberger (2010)
Casa dos Rosa, Canoas (2014)
Nova Vila Hípica,
Jockey Club do RS (2019)
Assinatura
* Paulo César Teixeira é jornalista com textos publicados em Isto É, Veja e Folha de S. Paulo. Escreveu os livros Esquina Maldita, Nega Lu – Uma dama de barba malfeita, Darcy Alves - Vida nas cordas do violão, e Rua da Margem - Histórias de Porto Alegre, baseado no portal do autor, www.ruadamargem.com.