Andressa Pufal, especial para o JC
Há 40 anos era lançado o único Disco de Ouro da música instrumental brasileira. Em uma época em que, para se ouvir música, era necessário sair de casa e comprar um álbum, a premiação era concedida aos trabalhos que conseguiam atingir o número de 100 mil cópias vendidas. Quem conseguiu a façanha foi Renato Borghetti, com o seu disco de estreia Gaita Ponto.
Era maio de 1984 quando Gaita Ponto chegava às lojas e, em quatro meses, já havia alcançado a marca de centenas de milhares na vendagem de cópias. O fenômeno foi tanto que Borghetti e sua gaita desbancaram, inclusive, o Rei do Pop Michael Jackson: naqueles meses, o gaúcho vendeu por aqui mais que Thriller — disco que viria a se tornar o mais vendido da história da música mundial.
Mas engana-se quem pensa que por trás desse sucesso todo há uma complicadíssima estratégia de marketing. "Aconteceu", resume Borghetti. Foi tudo natural, e ninguém encontra na racionalidade alguma explicação. O álbum de música instrumental mais vendido da história fonográfica brasileira foi gravado de forma independente por um gaiteiro de 20 anos que queria usar o dinheiro das vendas para comprar um motor home. Como o músico fazia muitos shows pelo interior, a mistura de carro com casa forneceria lugar para passar a noite e mais espaço, tanto para instrumentos, quanto para levar cópias do álbum para vender no fim das apresentações.
Mas, superando todas as expectativas iniciais, o disco vendeu quase sozinho e, muito mais que um motor home, Borghetti conseguiu comprar um apartamento com o dinheiro das vendas. Gaita Ponto foi gravado de forma totalmente independente, sem gravadora. O som da acordeona interrompia o silêncio da noite: foi nas madrugadas de um dos poucos estúdios de Porto Alegre que o disco foi concebido. "Gravei nos horários que as gravadoras não estavam usando", relembra o gaiteiro.
O músico escolheu algumas das canções que mais gostava de tocar nos festivais e CTGs que frequentava e condensou no LP, que mistura os ritmos do sul da América, como milonga, chamamé e rancheira. Borghetti atribui a esse gosto pelo que se faz uma explicação pro sucesso que teve o disco. "Eu escolhi o que eu achava que gostava e o que eu estava tocando na época. E é um dos motivos pelos quais eu acho que o disco deu certo: repertório bom, bom sem querer, mas um repertório bom pra época", diz.
A gravação contou com a gaita de Borghetti e o violão de Enio Rodrigues. Para finalizar, o produtor musical Ayrton dos Anjos, conhecido como Patineti, deu alguns pitacos, à convite do próprio gaiteiro, que sentia falta de alguma coisa no trabalho. Patineti, que foi responsável pelo sucesso de grandes músicos gaúchos, sugeriu que Borghetti adicionasse o violão de Oscar Soares e o contrabaixo de Francisco Castilhos, ambos do grupo musical Os Mirins.
O projeto gráfico da capa foi feito por Juarez Fonseca, e as imagens foram produzidas em um sítio da família Borghetti em Viamão. O fotógrafo Tude Munhoz tirou fotos do jovem músico e, em troca, recebeu um jipe como pagamento — já que o trabalho era independente e o dinheiro, escasso. "O disco nem tinha título. Eu botei Gaita Ponto na contracapa porque era como se chamava o instrumento que ele tocava", recorda o jornalista Juarez Fonseca.
Tudo aconteceu de forma natural com Gaita Ponto. Desde a concepção, até o resultado final. Até a honraria que conquistou na categoria de música instrumental não foi algo deliberado: "eu nem sabia que fazia música instrumental. Eu só não canto, até hoje não canto. Então eu fiz o que eu sabia no disco", brinca Borghetti.
"O disco foi uma decorrência natural de um caminho que ele já estava trilhando na música", resume o jornalista e biógrafo de Borghetti, Márcio Pinheiro. Autodidata, o gaiteiro abriu sozinho os caminhos que seguiria no mundo musical. A música entrou na sua vida quase que de brincadeira, mas, desde criança, ele parecia já saber qual era o seu lugar. "Meu pai falava que, sempre que eu me perdia, ele sabia que, onde tinha gaita e música, era onde eu estava."
Ecos de uma tradição
Renato Borghetti posa para foto segurando a capa do primeiro disco, Gaita Ponto, que impulsionou sua carreira em escala nacional
/TÂNIA MEINERZ/JCA primeira gaita chegou às mãos de Renato Borghetti quando ele tinha apenas 12 anos — uma Hering oito baixos, de brinquedo. "Descobri que daquele brinquedo saía música!" E, assim, foi aprendendo sozinho a tocar o instrumento em que hoje é mestre. Na adolescência, Borghetti acordava todos os dias às 5 horas da manhã e se punha a ouvir música gaúcha pelo rádio, entre um gole e outro de mate amargo.
A acordeona que tocava era de botão — raridade até hoje, em comparação com as "pianadas": "acho que pra cada 100 tocadores de gaita piano, tem um de gaita ponto", calcula Renato. O músico, então, tinha que adaptar as canções para o seu instrumento. Sem falar, é claro, de ajustar o tom, para poder tirar na sua gaita afinada em Sol. E assim, entre erros e acertos, foi se forjando o que escutamos hoje.
Gaita ponto, gaita de botão, gaita de duas conversas, gaita de 8 baixos são alguns dos nomes usados para o tipo de acordeona tocada por Borghetti. "Duas conversas" porque o peculiar instrumento produz notas diferentes ao abrir e fechar o fole, mesmo apertando o mesmo botão. Além disso, faltam notas na gaita ponto. "É como se fosse um piano só com as notas brancas, não tem as pretas. É um instrumento limitado. Não adianta tu ser o melhor gaiteiro do mundo, não existe a nota no instrumento. Tu tem que tocar e criar um repertório só para ele", explica o músico.
Por conta de todas essas especificidades, recentemente chegou-se à conclusão que a transmissão de conhecimento sobre a gaita de botão é majoritariamente oral. Com tantas facetas, parece ser difícil a empreitada no instrumento, mas Borghetti discorda. "Dizem que é. Eu acho mais fácil."
Por não ter vindo de uma família de músicos, o que Borghetti herdou para o seu trabalho foi a tradição. Como seu pai, Rodi Borghetti, era muito inserido na cultura gaúcha — tendo sido sete vezes patrão do 35 CTG e duas vezes presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) —, Renato e sua família sempre frequentaram o ambiente do tradicionalismo. No CTG, o músico participou do grupo de danças folclóricas e das Invernadas Mirins, já como gaiteiro. Depois, foi contratado pela churrascaria do local para tocar gaita ao lado do irmão, Marcos, no violão. Mais tarde, o grupo viraria um trio, com a entrada do violonista Paulo Tomada.
Borghetti se apresentou pela primeira vez com sua gaita na 9ª Califórnia da Canção Nativa, em 1979, com a canção Retorno. Ali, o músico já começou a atrair os olhares de produtores e jornalistas culturais. "Ele já chamava atenção. Não só por tocar bem, mas pelo tipo físico dele também. Em vez de bota, ele veio com uma alpargata, uma bombacha mais estreita, o cabelo comprido, o chapéu tapando os olhos. Era um jovem tocando gaita, com aquela imagem, aquela pinta de roqueiro. Chamou atenção", analisa Juarez Fonseca.
"Eu fui motivo de reunião no 35, quando eu fazia parte do CTG, por causa do cabelo, do jeito", relembra o músico. "Mas não tem que obedecer tudo, né? Senão fica ruim", brinca. Trazendo uma nova roupagem para o gauchismo, Borghetti ajuda a forjar uma nova geração de tradicionalistas, mas sempre honrando e respeitando o passado.
Renovando legados
Borghetti: "Hoje, procuro devolver um pouquinho do tanto que a gaita me deu"
/TÂNIA MEINERZ/JCSe apresentando como um novo tipo gaúcho, trazendo elementos mais urbanos e jovens, Borghetti ajudou a renovar e inserir o tradicionalismo em espaços não muito explorados. "Uma garotada urbana, que vive em Porto Alegre, começa a se interessar pelo chimarrão, pela bombacha, alpargata, por esse tipo de música nativista. Os festivais ganham uma nova dimensão… Tudo por causa desse aspecto jovem que o Renato deu", elenca Márcio Pinheiro.
O tradicionalismo gaúcho como o conhecemos hoje começa a surgir pelo fim da década de 1940, vindo de nomes como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa. A partir de uma desenfreada urbanização e industrialização, os costumes do tradicionalismo campeiro gaúcho começavam a se tornar símbolos de atraso. Em resposta a isso, houve algumas iniciativas de reavivamento da tradição.
Em 1947, estudantes do Colégio Júlio de Castilhos de Porto Alegre — entre eles, Paixão Côrtes — organizaram a chamada Ronda Gaúcha, que daria origem à atual Semana Farroupilha. Na mesma época, o primeiro Centro de Tradições Gaúchas do Estado foi fundado, o 35 CTG, e os restos mortais de David Canabarro — um dos líderes da Revolução Farroupilha — foram trazidos para Porto Alegre, a fim de revigorar o sentimento gauchista.
Para Pinheiro, respeitando a ciclicidade da vida, o tradicionalismo começou a perder fôlego nos anos 1970 e na década seguinte renasceu de novo. "E aí eu acho que o Borghetti é, ao mesmo tempo, o maior resultado e o maior indutor disso", sentencia. "Ele não renegou o passado, ele não rompeu com aquela turma do Paixão: ele renovou aquela turma e criou um novo público, essa garotada da época."
"Como eu me criei dentro desse ambiente tradicional, eu sempre toquei a música regional. Mas, principalmente, quando eu comecei a gravar, eu quis mostrar ela da forma que eu sinto. Eu não saí do xote, do vanerão, da rancheira, da milonga. Mas eu sempre procurei fazer ela de uma forma, não digo nem mais atual, mais contemporânea — mais da forma que eu sinto, mesmo", reflete Borghetti.
Sonoridade única
Juarez Fonseca e Renato Borghetti, em 1984, quando da entrega do Disco de Ouro obtido pelas vendas de 'Gaita Ponto'
/ARQUIVO PESSOAL JUAREZ FONSECA/DIVULGAÇÃO/JCGaita Ponto ganhou o Disco de Ouro trazendo 12 temas tradicionais e já conhecidos do público gaúcho. De autoria própria, apenas uma integra o disco: Carreirada, composta por Borghetti e Paulo Tomada. Abrindo o álbum, está a inigualável composição de Gilberto Monteiro, Milonga para as Missões, que dá o tom de grandiosidade para o trabalho. Até hoje, ela é peça chave dos shows, juntamente com Kilómetro 11, de Tránsito Cocomarola, e Merceditas, de Ramón Sixto Ríos — dois clássicos do chamamé argentino.
O repertório segue com Llegada (Felix Peres Cardoso), Redomona (Os Serranos), Bailinho na Capela (Adelar Bertussi e Itajaíba Mattana), Rancho/Cerca de Pedra (Miguel Lima), O Sem Vergonha (Os Serranos), El Toro (Alberto Castillo e Pedro Sánchez), Minuano (Sadi Cardoso) e Tio Bilia na Oito Baixos (Tio Bilia), fechando o álbum.
O disco inovou ao trazer o regionalismo sem a voz do gaúcho: a gaita falava tudo. Era um som mais contemplativo, para ouvir, não cantar. "Um disco de música regional instrumental era raridade. Geralmente essas músicas eram cantadas, com a temática gauchesca, do campo, do cavalo. Esse álbum era só instrumental. Quando ele lançou, o disco começou a fazer sucesso e começou a tocar em tudo que é rádio. Inclusive, rádio que nunca tocou música regional antes", conta Juarez Fonseca.
Difícil de catalogar em um só gênero, Renato traz um híbrido de regionalismo, nativismo e tradicionalismo com elementos do jazz e da música clássica. Desta forma, conseguiu alcançar uma grande diversidade de público. "É um álbum que agrada quem gosta de música instrumental, quem gosta de jazz e também agrada quem é gaudério", resume Márcio Pinheiro.
Das Missões para o mundo
Primeiro disco de Renato Borghetti, Gaita Ponto, completa 40 anos
/TÂNIA MEINERZ/JC"Eu acho que nasci com o espírito de gaiteiro, de músico", revela Gilberto Monteiro. "Quando eu era pequenininho, com um ano de idade, já tinha foto minha junto com a gaita do meu pai." Nascido em Santiago do Boqueirão, na região das Missões gaúchas, Gilberto Monteiro começou a tocar ainda criança. Inserido em uma típica família da pampa gaúcha, o compositor desde sempre esteve imerso nos sons que saíam do instrumento — a maioria dos integrantes da sua família tocavam ou gaita, ou violão.
Com os ouvidos atentos, Monteiro foi aprendendo tudo sobre música com os familiares. "Sempre gostei de escutar", diz. "O professor que eu tive foi meu pai." Aos 5 anos, teve sua primeira aula: sentado em um banquinho de palha, o patriarca ensinava o pequeno prodígio a tocar os baixos da gaita. Naquele momento, ele já começou a querer "formular uma valsinha."
As composições sempre vieram espontaneamente para Monteiro. Milonga para as Missões começou a ser composta quase sem querer, quando o músico tinha 14 anos. Sem ter noção do que fazia, a milonga foi surgindo devagarinho, como deve ser — acompanhando o ritmo do campo e sendo um resultado de todo aquele universo que a circundava. "Não sei como é que eu fui compor aquilo", brinca o gaiteiro. "Foi uma luz. Me baixou uma luz e eu acabei fazendo todo aquele arranjo, aquela abertura que vem com os baixos. Eu não sei onde eu estava com a cabeça pra fazer aquilo ali", acentua, dando risadas.
O gosto pela gaita acompanhava outro sonho inusitado: o músico queria ser aviador. Na adolescência, depois de assistir a um filme épico em que dois personagens saltavam voando de uma torre, fugidos de guardas de um palácio, Gilberto quis voar. Chegou em casa, foi ao galpão da família, e, com pedaços de couro e taquara, montou um par de asas. Tentou voar, mas a engenhoca falhou — tudo com a plateia atenta de seu irmão.
Monteiro levou a sério o sonho das alturas e veio servir na Base Aérea de Canoas — e trouxe a gaita debaixo do braço. Assim, começou a tocar pela região metropolitana, inclusive no 35 CTG, onde conheceu Borghetti. Entre gaitas e voos, Monteiro foi sendo descoberto pelo público e produtores da Capital. Quando ouviu Milonga para as Missões, Borghetti gostou tanto que quis logo aprender. "Me lembro que eu fui uma ou duas vezes, lá na casa dele ajudar ele a sacar a milonga", recorda Monteiro.
O gosto foi tanto que Borghetti decidiu gravar a canção, abrindo seu disco de estreia. "Eu fico muito feliz", celebra Monteiro. "Ele me ajudou muito a difundir esse tema. Eu dei a arrancada e ele deu um impulso. Levou para o mundo." Apesar de o sonho de ser aviador não ter dado certo no final — Monteiro quis voltar para o campo, pois sentia que a cidade não era para ele —, quando o gaiteiro cola a gaita no peito abrindo e fechando o fole, ele emula um bater de asas que o faz alçar voos muito mais altos.
Hoje, Borghetti leva o Rio Grande do Sul, o gaúcho, a pampa, a gaita, o Sul para muito além das suas fronteiras. O gaiteiro conseguiu forjar uma nova geração de apreciadores da música gaúcha, além de ter influenciado dezenas de artistas a seguirem o mesmo caminho. Para Yamandú Costa, proeminente nome da música gaúcha atual, Borghetti foi um padrinho e é inspiração. "É uma referência absoluta para nós. É uma pessoa que eu tenho a mais profunda admiração."
O feito que conseguiu, logo no seu primeiro disco, é algo raro. Era na época e continua sendo — tanto que nenhum outro certificado Disco de Ouro de música instrumental foi concedido no País. "Vai ver o que tem de música instrumental de sucesso assim hoje. Não tem. É difícil!", resume Juarez Fonseca. Mas desprovido de grandes pretensões e pomposidades, Renato Borghetti só tem a agradecer ao instrumento. "Eu adoro o que eu faço. Hoje, eu procuro devolver um pouquinho tanta coisa que a gaita me deu e ainda me dá."
* Andressa Pufal é jornalista formada pela Ufrgs. Atuou no Jornal do Comércio por dois anos, como fotojornalista e repórter cultural. Hoje, trabalha como freelancer.