Carol Zatt, especial para o JC
Filmado na Serra gaúcha e falado em Talian (língua brasileira reconhecida oficialmente em 2014 e formada a partir do contato do português com os idiomas dos imigrantes do Norte da Itália chegados ao Sul do Brasil no final do século XIX), Até que a música pare é o terceiro longa-metragem de ficção da elogiada e premiada cineasta porto-alegrense Cristiane Oliveira. O título rodado nas cidades de Antônio Prado, Nova Roma do Sul, Nova Bassano e Veranópolis é uma das estreias desta semana em salas de todo o País.
Na trama protagonizada por integrantes do grupo teatral Miseri Coloni de Caxias do Sul, depois que o último filho sai de casa após a morte do irmão mais velho em um acidente, a matriarca Chiara (Cibele Tedesco, Kikito de Melhor Atriz entre os longas gaúchos no último Festival de Gramado) resolve acompanhar o marido Alfredo (Hugo Lorensatti) a bordo do Del Rey Belina em suas viagens como vendedor pelas bodegas (botecos) da região. Nessas andanças de estradas de chão entre parreirais, os baralhos dos típicos jogos de carta dos “gringos” e uma pequena tartaruga batizada de Filomena colocarão à prova mais de 50 anos de vida a dois.
Diretora de Mulher do Pai (exibido no Festival de Berlim 2017 e prêmio FIPRESCI no Festival do Uruguai), ambientado na Fronteira, e A Primeira Morte de Joana (prêmio do Júri da Crítica no Festival de Gramado), com cenários no Litoral gaúcho, Cristiane conta que o título “Até que a música pare” a acompanhou desde o início do roteiro e que isso a ajuda no processo de escrita. A ideia era contrapor a sentença católica “até que a morte os separe”: “O que acontece quando a música para de tocar entre um casal?”.
O enredo é inspirado em um fato real ocorrido com parentes descendentes de italianos de uma amiga da realizadora, quando descobriram que o avô comerciante vendia um dos seus produtos, os baralhos de cartas, sem nota fiscal. “Como a família é um pilar muito importante dessa cultura, achei que devia manter a história nessa comunidade da Serra, pois era algo chave na narrativa”, conta.
Segundo Cristiane, o roteiro veio da vontade de investigar como falsos discursos moralistas e totalitarismos são germinados no ambiente doméstico: “Os escândalos éticos da política nacional fazem pensar sobre corrupções cotidianas. Qual é o limite da nossa tolerância? Se, na democracia, o tamanho do crime importa; no amor, importa? O que pode abalar o amor de uma vida inteira?”. A cineasta conclui: “Esse projeto foi um mergulho nas narrativas que criamos para tentar manter o diálogo e o amor”.
Viabilizado pela Okna Produções, o filme é uma coprodução internacional contemplada em um edital de desenvolvimento lançado pela Ancine em parceria com o Ministério da Cultura italiano. Dessa forma, a obra conta com um ator (Nicolas Vaporidis), um produtor (Emanuele Nespeca), uma compositora (Ginevra Nervi) e profissionais de som do país europeu.
Retratando paisagens naturais e o patrimônio histórico da Serra, as filmagens foram favorecidas pela atuação da Film Commission de Antônio Prado, onde ficou a base de produção, concentrando 90% das locações, conforme a produtora Aletéia Selonk, que ressalta a tradição da Okna de construir uma relação com a comunidade, se familiarizando à região, conhecendo as pessoas e a rotina. “O trabalho desse que é um município de pequeno porte é exemplar. Pessoas que usam estruturas organizadas dentro do poder público (nesse caso, prefeitura) estarem de braços abertos para nos receber causa um impacto diferenciado para quem é da produção audiovisual.”
A montagem é de Tula Anagnostopoulos (que trabalha com a diretora desde o primeiro curta, Messalina, de 2004) e durou três meses de trocas com Cristiane a distância. Tula relata que ficou encantada com Até que a música pare desde que leu o roteiro e faz questão de frisar, brincando, as qualidades da tartaruga como atriz do longa.
Este é um dos títulos da carreira da realizadora que abre mais espaço para o humor, como destaca Giordano Gio, cineasta e historiador da arte que conduziu o debate do longa no Festival de Gramado. O doutorando em Artes Visuais na Ufrgs ainda apontou as cores mais saturadas dos ambientes, dos figurinos e dos objetos e a atuação de verve italiana, potencializada pela experiência em teatro e comédia do elenco, como diferenciais desta obra. A direção de arte assinada por Adriana Borba também foi premiada com Kikito na Mostra Gaúcha.
Destino traçado pelas artes visuais
Até que a música pare, terceiro longa de Cristiane Oliveira, estreia neste final de semana nos cinemas do País
/PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO/JCNas últimas horas de Câncer, na virada para o signo de Leão, no dia 21 de julho de 1979, nascia em Porto Alegre Cristiane Pinto de Oliveira. A menina cresceu na capital dos gaúchos e teve a arte presente em sua vida desde cedo, contando com estímulo em casa para essa área.
Já na 1ª série, uma pedagoga da escola indicou para sua mãe colocá-la num curso de arte. "Não sei bem por que, mas desenhava muito nos cadernos, se ela percebeu que eu saía dos conteúdos da sala e tinha o meu universo interno se manifestando o tempo inteiro", conta Cris, como é chamada carinhosamente pelos colegas.
"Tive sempre mulheres muito próximas de mim que criavam com as mãos, seja na costura ou nas artes visuais. Uma tia era professora de artes." A garota frequentou o Centro de Desenvolvimento da Expressão da Ufrgs e fez um curso de desenho no computador: "Era um espaço maravilhoso ali na avenida Ipiranga, no qual as crianças podiam fazer de tudo, costura, pintura, desenho, teatro, construção em madeira. Era incrível". Além disso, na 5ª série, teve a sorte de ser sorteada no Colégio de Aplicação, também da universidade federal.
Do alto do apartamento em que morou até os 18 anos, Cristiane observava pela janela o movimento dos estudantes do Colégio Estadual Padre Rambo, que iam para a parada de ônibus em frente, na avenida Bento Gonçalves. Ela recorda de um hábito da adolescência, de pensar em histórias ficcionais a partir de situações reais. "Gostava de ficar observando o movimento dos alunos depois da aula ou durante o recreio. Acompanhava aquelas pessoas nas suas brigas, amizades, namoros, e ia criando na minha cabeça o que se passava entre elas".
Cris Oliveira diante de letreiro do filme Mulher do Padre, durante exibição em Montevidéu, no Uruguai
ACERVO PESSOAL CRISTIANE OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCNo entanto, não teve coragem de escolher a graduação em Artes Visuais, com receio de não conseguir se manter financeiramente, e foi para a Publicidade. A curiosidade irônica deste período é não ter passado na primeira prova justamente pela parte relacionada a escrever. "Uma aluna que adorava literatura, que sempre ia bem no colégio. E isso ocorre quando a pessoa desvia do tema ou da estrutura que se espera para uma redação de vestibular. Foi muito impactante isso para mim, porque peguei aquele tema que sugeriram e viajei na história. Mas fiquei, assim, com uma nota super boa, no geral, mas zerei a redação. Então, esse divagar pela escrita me deu essa rasteira ali".
Cristiane conseguiu entrar na Faculdade de Comunicação na Pucrs no meio daquele ano. "Com a obrigação de trabalhar junto, sempre para ajudar meus pais a me manterem". Como estudante, se interessou por fotografia e fez um curso de still em 35mm no Foto-Cine Clube Gaúcho. "Percebi essa vontade de compor num quadro que eu pudesse guardar para mim."
Em 1998, aos 18 anos, viajou de ônibus para Salvador com o objetivo de fotografar. Com o material, montou um portfólio e conseguiu estágio na Zeppelin Filmes. "Depois fui contratada na produtora e lá tive a oportunidade de ficar experimentando em diversas áreas, como assistente em set, na pós-produção, e ali eu tive a vontade de animar uma foto minha. Comecei a entrar por essa área de assistente de montagem, finalização e fazendo algumas coisas pequenas assim. Assim, consegui depois um estágio em uma produtora de animação."
Cristiane conseguiu entrar na Faculdade de Comunicação na Pucrs no meio daquele ano. "Com a obrigação de trabalhar junto, sempre para ajudar meus pais a me manterem". Como estudante, se interessou por fotografia e fez um curso de still em 35mm no Foto-Cine Clube Gaúcho. "Percebi essa vontade de compor num quadro que eu pudesse guardar para mim."
Em 1998, aos 18 anos, viajou de ônibus para Salvador com o objetivo de fotografar. Com o material, montou um portfólio e conseguiu estágio na Zeppelin Filmes. "Depois fui contratada na produtora e lá tive a oportunidade de ficar experimentando em diversas áreas, como assistente em set, na pós-produção, e ali eu tive a vontade de animar uma foto minha. Comecei a entrar por essa área de assistente de montagem, finalização e fazendo algumas coisas pequenas assim. Assim, consegui depois um estágio em uma produtora de animação."
Uma carreira, dois marcos de início
Equipes apresentando os curtas Messalina e Cinco Naipes na Sala PF Gastal, em Porto Alegre - 2004
/ACERVO PESSOAL CRISTIANE OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCEstagiando, mais tarde, em uma produtora de animação, Cris Oliveira atendeu um telefonema de Gilson Vargas. Um engano pela coincidência com o apelido Cris é o que, depois, levaria a estudante a ser coordenadora na Clube Silêncio, produtora que ele estava montando com Fabiano de Souza, Gustavo Spolidoro e Milton do Prado.
Ela fez um curso de roteiro com o realizador, que deu origem ao curta Messalina. "Ele gostou e quis produzir, conseguiu levantar recursos pelo FumproArte. E foi esse soco no estômago, sair de trás do computador para dirigir uma equipe em 35mm". O lançamento foi há exatos 20 anos, com uma enxurrada de prêmios.
"Nesse sentido, Messalina foi o divisor de águas para mim, de perceber como fazer cinema e que eu poderia fazer, muito graças à equipe que o Gilson montou", avalia a diretora. O primeiro longa foi lançado em 2016, igualmente exitoso no cenário audiovisual: "Mulher do Pai chamou mais atenção para o meu nome. Estar no Festival de Berlim foi muito importante, foi minha entrada nesse círculo de laboratórios internacionais que faz com que a gente comece a se conectar com produtores e distribuidores de diversos lugares do mundo".
Equipe de Mulher do Pai reunida no Festival de Berlim, na Alemanha
ACERVO PESSOAL CRISTIANE OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCPara a crítica de cinema Ivonete Pinto, professora dos cursos de Cinema da UFPel atualmente desenvolvendo pesquisa como visitante na Universidade de Leeds (Inglaterra), este foi o grande marco da carreira da cineasta: "Sem dúvida. É a velha história: curtas são promessas ainda. Com Mulher do Pai, ela desenvolveu questões no tempo que só um longa propicia."
"Considero Mulher do Pai um dos principais filmes brasileiros dos anos 2010, repleto de grandes momentos do mais puro cinema", afirma Gustavo Galvão, cineasta brasiliense radicado em São Paulo e companheiro da diretora.
"No campo da análise fílmica, os filmes da Cristiane apresentam-se já como obra consistente ao fazerem uma leitura da mulher na sociedade atual, mas indo além. Ela traz preocupações envolvendo a morte, ou melhor, sobre os efeitos da morte de alguém. Sempre investindo em uma narrativa que privilegia a sutileza, os pequenos gestos, os acontecimentos triviais da vida". Para Ivonete, estas recorrências colocam o cinema da porto-alegrense em um patamar atemporal.
A pesquisadora ainda opina: "Uma característica de estilo, que repercute na linguagem, é como ela trabalha o tempo. Elemento incontornável do cinema contemporâneo, é conduzido com firmeza pela Cristiane. Os enredos dos três longas vão se desenvolvendo lentamente, ao ponto de, com mais de 30 minutos, o espectador perguntar do que mesmo o filme quer falar. Mas esse tempo leva ao que interessa de um jeito que narrativa e enredo ganham um corpo orgânico, palpável."
"Considero Mulher do Pai um dos principais filmes brasileiros dos anos 2010, repleto de grandes momentos do mais puro cinema", afirma Gustavo Galvão, cineasta brasiliense radicado em São Paulo e companheiro da diretora.
"No campo da análise fílmica, os filmes da Cristiane apresentam-se já como obra consistente ao fazerem uma leitura da mulher na sociedade atual, mas indo além. Ela traz preocupações envolvendo a morte, ou melhor, sobre os efeitos da morte de alguém. Sempre investindo em uma narrativa que privilegia a sutileza, os pequenos gestos, os acontecimentos triviais da vida". Para Ivonete, estas recorrências colocam o cinema da porto-alegrense em um patamar atemporal.
A pesquisadora ainda opina: "Uma característica de estilo, que repercute na linguagem, é como ela trabalha o tempo. Elemento incontornável do cinema contemporâneo, é conduzido com firmeza pela Cristiane. Os enredos dos três longas vão se desenvolvendo lentamente, ao ponto de, com mais de 30 minutos, o espectador perguntar do que mesmo o filme quer falar. Mas esse tempo leva ao que interessa de um jeito que narrativa e enredo ganham um corpo orgânico, palpável."
Obra revista pela crítica e pelos colegas
Cena do longa 'A primeira morte de Joana', da diretora gaúcha Cristiane Oliveira
/OKNA PRODUÇÕES/DIVULGAÇÃO/JCIvonete Pinto escreveu um artigo sobre Mulher do pai, rodado na Fronteira, para a revista Teorema em 2017, citado por Boca Migotto no livro Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre (Pragmatha, 2022). Na obra do pesquisador e realizador, que coloca a produtora Clube Silêncio em evidência em um resgate das últimas quatro décadas do audiovisual produzido no Estado, o nome da diretora também tem destaque: "Aparecer naquele lugar, diante de uma equipe de cinema para dirigir um longa-metragem, não deixa de ser um afrontamento de Cristiane Oliveira. Afrontamento este que se completa na força com que a diretora retrata sua história, mas, sobretudo, na sensibilidade como submete o homem - Ruben, vivido por Marat Descartes - às suas três mulheres".
Migotto observa ser raro, neste contexto, uma equipe formada essencialmente por mulheres. "Desde a corroteirização com Michele Frantz, a direção da própria Cristiane Oliveira, o protagonismo de Maria Galant, passando pela direção de fotografia de Heloisa Passos, pela direção de arte de Adriana Nascimento Borba e terminando com a montagem de Tula Anagnostopoulos, o feminino perpassa o universo fílmico de Mulher do pai".
Produtora do título, Aletéia Selonk considera a realizadora inspiradora: "Ela articula como ninguém suas vivências, referências e criatividade para dar vida a um universo ficcional muito próprio e, ao mesmo tempo, com significados universais para se conectarem comigo e com as audiências. Nossa parceria é profícua, pois fomos evoluindo entendendo o enlace intrínseco entre criação e gestão, entre mercado nacional e internacional".
Companheiro de vida e de obra de Cristiane, o cineasta Gustavo Galvão narra que a dobradinha começou em 2008, ainda nos curtas e já são 10 filmes juntos até aqui: "É um verdadeiro privilégio construir essa trajetória com a Cris e ainda mais poder seguir criando com ela. Temos um entendimento mútuo fantástico, graças ao diálogo sempre muito rico. Uma simples viagem de pesquisa com ela me ensina uma enormidade, sobre cinema, as pessoas e a vida".
A montadora Tula Anagnostopoulos conheceu Cris no curto período em que trabalharam na Zeppelin Filmes. "Ela é uma trabalhadora nata, uma workaholic, não tem final de semana, feriado. O grande prazer é trabalhar. Aprendo muito com ela. A cada filme, percebo o quanto a Cristiane desenvolve a linguagem dela. Tem uma visão de horizonte muito mais expandido, acho que é por isso que as coisas funcionam com ela. É talento, amor ao cinema, compreensão do outro, muito tato em lidar com os outros seres humanos, uma sensibilidade ímpar", finaliza a colega de longa data, desde Messalina (2004).
Além de colaborar no roteiro de A Primeira Morte de Joana (2021), filmado no Litoral gaúcho, e ser corroteirista de Até que a Música Pare (2023), ambientado na Serra Gaúcha, Galvão esteve na produção dos três longas da diretora, observando de perto seu jeito de trabalhar. Ele concorda que duas grandes qualidades dela são a capacidade de escrever histórias tocantes e a delicadeza na direção de atores. "Mas ainda me surpreendo com o dom que a Cris tem de esculpir a vida com o olhar, antes mesmo de começar um projeto. Ela tem atenção para os mínimos detalhes. Percebo isso o tempo todo, no trabalho e no dia a dia".
Doutorando em Artes Visuais (Ufrgs), o cineasta e historiador da arte Giordano Gio identifica um ato político da cineasta em mapear o estado e reconhece a força de sua filmografia: "Criando uma geografia afetiva, através de personagens mulheres em diferentes contextos, sem anunciar um discurso direto ou um manifesto artístico. Com três longas em sequência, com circulação internacional, uma poética consistente, a Cris está em um momento de consolidação".
Olhar cuidadoso, atento e generoso
Exibição de 'Até que a Música Pare' na Mostra competitiva SEDAC/IECINE de longas-metragens gaúchos do 52º Festival de Cinema de Gramado
/CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JCVou começar contando sobre o dia que conheci a Cristiane Oliveira, pois aí se desenhou a relação de parceria, trabalho e amizade que cultivamos já há 10 anos. Nunca tinha pensado em ser atriz. Tinha estudado teatro no colégio e na Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre), mas era muito mais uma ferramenta para me entender. Foi o ator Adriano Basegio que falou do teste para o longa. Fui encontrar a Cris e o Gustavo (Galvão), companheiro dela, no restaurante de um hotel. Quase desisti de ir nesse dia, porque tinha combinado com uma amiga de sair da Feira do Livro e ir numa sessão na Sala P.F. Gastal. Estava com medo da palavra 'teste'. A fantasia de quão ruim ia ser quase me impediu de viver isso. Cris falou sobre Mulher do Pai e conversamos sobre filmes que gostamos e artes visuais - o que acho que me ajudou a conectar com o projeto. A Cris pensa os filmes a partir de outras referências que nem sempre vêm do cinema em si. Estava estudando pro vestibular, queria cursar Artes Visuais, e o jeito como a Cris explicava as imagens e os sentimentos que ela queria pôr no filme me encantaram.
Foi no último teste que também decidi que era capaz, aconteceu uma coisa muito bonita. Eu e o ator Marat Descartes fizemos de improviso uma cena em que o Rubens toca o rosto da Nalu e assim "vê" ela pela primeira vez. Eu nunca tinha visto o Marat e a Cris pediu pra eu ficar em outra sala e entrar no momento que ela desse o 'Ação'. Quando eu entrei, Marat estava vendado (já que Rubens é cego). Senti uma emoção nova, acho que ali foi a primeira vez que eu senti a Nalu mesmo, que me emocionei porque ela se emocionou e estávamos dividindo o mesmo corpo.
Acho que ter feito a Nalu, no Mulher do Pai, e esse ter sido meu primeiro filme e ter sido também a primeira experiência da Cris dirigindo um longa nos colocou numa situação mais parelha, de estar descobrindo esse mundo, cada uma com as suas ferramentas.
E lembro que, no set, me espantava muito o quão minuciosa era com cada detalhe do filme. Estávamos ensaiando no galpão e percebi de canto de olho a Cris falando com a diretora de arte Adriana Borba se seria possível molhar o marco das janelas, pra imprimir um brilho diferente na fotografia. E, nessa hora, pensei: 'Ela está olhando cada milímetro do que está fazendo'. Isso me deixou mais segura para fazer meu trabalho também. Tinha muito medo de não dar conta, da Cris ter apostado em mim e estar errada, de colocar a perder o trabalho de tanta gente. Mas quando me dei conta do quão cuidadosa era, fiquei mais tranquila, pensei que se estivesse muito fora do compasso, ela iria me dizer. A Cris me dava muitos toques de ritmo de fala, exercícios de respiração. São coisas que trago comigo no meu trabalho até hoje.
Quando Mulher do Pai estreou no Festival do Rio, nossa primeira sessão, eu não tinha visto nada do filme ainda, nem nunca tinha me visto numa tela grande. A Cris estava sem voz, acho que ficou nervosa com a estreia. Ela chegou com um caderninho pra mim, na frente do Cinema Roxy, e escreveu que não podia falar e queria me pedir pra apresentar o filme. Esse foi o momento que realmente comecei a fazer cinema: o filme estava me apresentando como atriz, mas eu também estava apresentando aquele filme como realizadora, porque acredito que todo mundo que se envolve no projeto faz parte da realização dele.
Ela me deu esse presente, mais esse. Ela podia ter passado isso para nossas produtoras da Okna e parceiras de longa data, mas quis me mostrar mais essa coisa que eu era capaz de fazer."
MARIA GALANT,
atriz que interpretou Nalu, protagonista de Mulher do Pai
Filmografia de Cristiane Oliveira
Cena de 'Até Que a Música Pare', longa dirigido por Cristiane Oliveira que chega aos cinemas neste final de semana
/PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO/JCComo diretora e roteirista
Curtas
• Messalina (2004)
• Portualleria (2007)
• Hóspedes (2009)
Longas
• Mulher do pai (2016)
• A primeira morte de Joana (2021)
• Até que a música pare (2023)
Como corroteirista
• Nove Crônicas Para um Coração aos Berros (2012)
• Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2013)
• Ainda Temos a Imensidão da Noite (2019)
• O Vazio de Domingo à Tarde (2023)
Como produtora e montadora
• Inventário de Imagens Perdidas (2024)
Mais informações sobre a obra da cineasta em https://www.crisolfilmes.com/
* Carol Zatt é jornalista cultural, mestre em Comunicação e especialista em Arqueologia e Patrimônio. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), é curadora e jurada em eventos artísticos.