Em julho de 1992, o Sonic Youth fazia o lançamento de seu cultuado álbum Dirty; um ano depois, em outubro, o lendário Velvet Underground, após décadas de afastamento, novamente reunia-se nos palcos para uma série de concorridos shows que resultaram na gravação do ao vivo intitulado MCMXCIII. Tendo esses dois importantes nomes como fontes de inspiração, também naquele outubro de 1993 surgia, em Porto Alegre, a banda Space Rave. O advento do grupo, criado pelo então casal Eduardo Normann e Mariana Kircher, deu-se no apagar das luzes do chamado "boom do rock gaúcho", que vicejou em meados da década anterior. Normann vinha da Molly Guppy, explorando nos shows distintas linguagens sonoras, e Mariana, por sua vez, desenvolvia, na época, um trabalho a partir de sucatas de ferro velho usadas como instrumentos de percussão. O primeiro grupo que tiveram juntos chamava-se Hip Horse, com duração de apenas dois shows. A criação da Space Rave, contextualiza Normann, teve como uma de suas motivações o ranço que nutriam a respeito de quase tudo que rolava localmente no cenário daqueles dias. "A gente buscava uma linguagem musical própria. Não queríamos soar como uma banda de rock convencional. Achávamos a maioria das letras do rock gaúcho muito chatas. Daqui só ouvíamos Os Replicantes e DeFalla", dispara.
Somando dez títulos lançados, a Space Rave terá em breve mais dois álbuns para solidificar sua discografia. Previsto para outubro, Space Rave Meets Sadgrrl vai trazer cinco gravações com Julia Amaral nos vocais. Já nas nove faixas de Fauna e Flora, programado para novembro, a Space Rave esbanja testosterona em números mais pesados e rápidos, com destaque para a música Na cidade onde nasci. Quase inteiramente gravados no Dubstudio, em Porto Alegre, os dois álbuns tiveram produção e mixagem de Fábio Gabardo e Edu Normann. Ambos terão lançamento pelo selo Maxilar, capitaneado por Gabriel Thomaz, da banda Os Autoramas. Atualmente, a Space Rave conta em sua formação, além de Normann (vocais, guitarras e composições), com Murilo Biff nas guitarras, Eddi Maicon no baixo e Diego Rockenbach na bateria.
Everton Cidade, letrista e vocalista da leopoldense Vianna Moog, declara que, ao passo que a Space Rave sempre lhe encantou, por outro lado, o deixava assustado. Ele revela que jamais teria feito uma banda se não fosse a influência deles. "Lembro de mim, jovem e deslocado na Lancheira do Parque, entregando nervoso uma fita demo da Viana Moog para o Normann, que, com trejeitos dylanescos, a colocou no bolso da jaqueta enquanto eu falava qualquer bobagem incoerente". Isso, ele calcula, deve ter ocorrido por volta de 1998 do século passado. "O Edu e a Mari criaram um jeito de ser underground. Ou melhor, criaram o underground de Porto Alegre com hits para as nossas 'cabeças de festa'. Que essa festa nunca termine", roga.
Leo Felipe, jornalista e um dos proprietários do afamado Garagem Hermética, afirma que muito provavelmente a Space Rave tenha sido a banda que mais apresentou-se no bar. "Não foi a primeira (o show de estreia foi da Graforréia Xilarmônica), mas talvez tenha sido a segunda", calcula. "A importância da Space Rave é enorme para a cena underground porto-alegrense. Apesar de muita gente massa ter passado pelas inúmeras formações do grupo, a figura mais marcante da banda é a musa noventista Mariana Kircher. Mari sempre desafiou com muito talento e estilo o 'ethos' machista do 'rock gaúcho'", enaltece Leo.
"Os Invasores"
A Space Rave chega aos 30 anos consagrada como banda fundamental do underground brasileiro
FERNANDA CHEMALE/DIVULGAÇÃO/JCRon Selistre, da banda Damn Laser Vampires, relembra seu primeiro encontro com a Space Rave.
Por Ron Selistre
Era alguma tarde de sábado no meio dos anos 1990, e eu estava numa mesa do quinto andar da Mário Quintana com dois amigos. Examinava um daqueles volumes de ilustradores de RPG que tinham acabado de sair, enquanto ouvia a conversa.
"Ó a Space Rave vindo ali", disse de repente um dos caras, baixando o tom.
O nome eu conhecia dos lambe-lambes que decoravam os tapumes nas imediações do centro. Até aquela tarde, era tudo que eu sabia deles.
Levantei os olhos e uma aparição de plástico colorido vinha deslizando por entre as lâminas de sol no corredor do velho Majestic. Era um jovem casal magro de óculos, ambos bonitos e visivelmente chapados, usando calças muito justas com All Star.
Passaram do meu lado, quietos, e cruzaram o salão em direção às escadas, onde acenderam o botão do elevador e esperaram. Foi tempo suficiente para o meu amigo narrar de passagem um episódio que ele, morando em Poa fazia pouco, tinha presenciado num show da Space algumas semanas antes, alguma coisa anedótica sobre um amplificador que eu francamente não me lembro.
A presença daqueles dois lindos ETs no salão do quinto andar ofuscou as cores de todo o cenário. Foram longos segundos em que eu os observei com interesse repentino e um pensamento desconcertante: se até o meu amigo de Três Coroas conhecia aquela banda e eu, um nativo local, ainda não, quem será que era o ET ali?
O elevador apareceu e os levou de volta pro século 24. Meus olhos voltaram pro livro - mas meu coração já tinha se levantado e ido atrás deles.
Era o meu primeiro contato visual com a Space Rave.
Calendário. Folhinhas virando rápido no vento. Estávamos agora em... não sei exatamente quando foi, mas faz uns bons anos.
O Edu e a Mari trabalhavam num material documental sobre a Space Rave e chamaram amigos e amigas para darem seus depoimentos. Sobre a banda, sobre a música independente, sobre a cena, sobre a experiência de todos nós na guerrilha barulhenta do underground onde acabamos por construir as nossas vidas. E a certa altura precisei contextualizar a presença da minha própria banda no cenário musical da cidade. Me ocorreu ali uma imagem que ficou comigo desde então. Descrevi o rock gaúcho como um bolo muito bonito que, quando alguém cortava, de repente saíam de dentro umas aranhas pretas. Nós.
É verdade que eu me referia a mim e aos meus parceiros, ao nosso papel como outsiders, como habitantes estranhos do cenário, mas talvez estivesse subconscientemente interpretando algo mais amplo. Talvez estivesse ainda admirando aqueles alienígenas cruzando o salão do Majestic diante dos meus olhos. Talvez o clarão daquele primeiro contato tenha estendido um brilho tão intenso que ilumina os meus pensamentos com ternura ainda hoje. Eles foram os intrusos da festa antes de nós, e nos abriram o caminho. À nossa maneira - e de um modo, eu diria, menos solar - cumprimos a nossa parte numa linhagem de insetos inconvenientes que, muito antes, já contaminaram o buffet.
Vida longa às nossas Aranhas de Marte.
Galáxia Space Rave
Mariana e Eduardo, em uma das aparições ao vivo do Planondas
FABIO ALT/DIVULGAÇÃO/JCA partir da Space Rave, um rizoma complexo de bandas, com diferentes motes estéticos, surgiu em sua esteira. Orbitando em torno do pioneiro grupo, surgiram grupos como Planondas, Autobahn, Dirty, Cine Baltimore, The Clones e Dating Robots. A Planondas em 2022 saiu-se com o álbum Drive a Rocket, com 11 faixas gravadas entre 2009 e 2011. Já a Cine Baltimore (última dessas a ser criada) lançou em 2021 o disco Na Rua. Ambos os discos saíram pelo selo do Dub Studio (um dos principais pontos de encontro da cultura underground em Porto Alegre).
The Clones (1988)
Banda de subjazz com Vanessa Carla nos vocais e Marcelo Bueno na bateria. "Ouvíamos Tom Waits e Chet Baker e nos divertimos buscando outras inspirações", comenta Eduardo Normann.
Planondas (2003)
Nos Planondas, Mariana Kircher faz os vocais principais e assume a guitarra, com Normann no contrabaixo e a Letícia Rodrigues na bateria. "A gente compunha juntos, mas geralmente a partir de uma ideia da Mari".
Dirty (2006)
A Dirty foi criada por uma desilusão com a falta de reconhecimento da mídia local. "Já havíamos lançado o DVD Juventude Enlouquecida, criamos o Rock no Cinema na PF Gastal, a Confusion is Sex na Garagem Hermética, mas nada era suficiente para tocarmos no rádio, com exceção da [música] Kill Summertime, que rolava na época da Felusp FM. Precisávamos nos reciclar. A Giana Cognato na bateria e a Beta na guitarra foram parceiras de um momento de renovação necessário".
Autobahn (2006)
"Formamos a Autobahn com a Letícia Rodrigues na bateria, eu na guitarra, a Mariana no Arbon valvulado, Melissa Dullius nos vocais e Gus Jahn no baixo. No começo a gente tocava músicas do Kraftwerk com este time analógico", pontua Eduardo. Em seguida, a banda começou a compor influenciados por nomes como Le Tigre e Ladytron, a cena electro rock da época. "Gravamos um álbum de músicas autorais, que pode ser ouvido no Bandcamp. A única gravação de composição do Kraftwerk foi justamente Autobahn, gravada com Thomas Dreher"
Dating Robots (2007)
Em meados dos anos 2000, o núcleo da Space Rave produziu a festa Lust for Life, no Beco, época em que também tomaram conhecimento do Dubstudio. "O Fábio Gabardo, além de sacar muito de gravação, é um dos melhores bateristas desta cidade, e em seguida entrou para a banda. A canção Movement Talk, que originalmente era do repertório da Autobahn, virou hit e ganhou um clipe dirigido pelo videomaker Marcelo Nunes, nosso amigo e dono da produtora Bandits".
Cine Baltimore (2016)
"Comecei a trabalhar no Dubstudio em 2013. Nessa época a Mariana Kircher já tinha saído da Space Rave pela terceira vez e me sentia novamente sem saber o que fazer. Tinha composto umas quatro músicas que seriam para um novo álbum do grupo, mas, com a saída da Mari, fiquei meio perdido. Foi aí que formamos a Cine Baltimore, com o Fábio Gabardo na bateria, a Letícia Rodrigues na voz e guitarra, a Julia Barth no baixo e eu na outra guitarra e composições".
Espaço de mulheres
Além da disposição musical transgressora, Space Rave sempre contou com a criatividade feminina em suas formações
ROCHELE ZANDAVALLI/DIVULGAÇÃO/JCMuitos desses grupos, senão todos, caracterizam, inclusive a Space Rave, pela presença de mulheres em suas formações. Integrante do Cine Baltimore (e também vocalista das bandas Os Alcalóides e Os Replicantes), Julia Barth conta que tinha 16 anos quando a Space Rave ocasionou nela uma verdadeira transformação. Primeiro, ela explica, porque logo adotaram Os Alcalóides como banda parceira em seus shows, apresentando-lhes o maravilhoso universo underground de Porto Alegre dos anos 1990. "Até então estávamos limitados ao nosso próprio grupo de hardcore e punk rock de apartamento", debocha Julia. E, em segundo, porque foram uma espécie de tutores intelectuais/artísticos d'Os Alcalóides "O Edu costumava nos dar temas de casa, tipo: 'Vocês só tocam no próximo show depois de assistirem ao (documentário musical) The Year Punk Broke" e coisas assim. Era uma brincadeira, mas, nessa época de internet incipiente, ter veteranos compartilhando informações sobre música, cinema e arte era fundamental."
Terceiro e mais importante para tudo que preza hoje, pontua Julia Barth, deu-se com o fato de a Space Rave ter sido a segunda banda que lembra ter visto ao vivo que tinha mulheres na sua formação (a primeira, diz ela, foi a No Rest). Mariana Kircher, ressalta a vocalista, é uma das roqueiras mais genuínas que conheceu na vida, em suas palavras, arrasando no baixo, na guitarra, no clarinete, no sintetizador e no que se propor a tocar. "Fora isso, a Mari ainda tem aquela voz, uma das mais lindas que já ouvi, que vai do mais limpo e doce ao punk mais rasgado. Não tem nenhuma garota da minha turma de musicistas que não tenha sido influenciada pela Mari". Julia Barth lembra que, além de Mariana Kircher, a Space Rave também revelou o talento de outras incríveis mulheres, dentre as quais, ela cita, Bibiana Gräeff, Kellen Zinelli, Isadora Becker, Josi Granger, Beta Cardoso e Julie Sadgrrl.
Mariana Kircher foi influência fundamental para mulheres na cena da Capital
FERNANDA CHEMALE/DIVULGAÇÃO/JCBibiana Gräeff conta que descobriu a Space Rave em 1996, durante um evento com várias bandas da cena underground de Porto Alegre no Teatro da Reitoria da Ufrgs. Ela diz ter ficado completamente impressionada com a banda. "Lembro que os achei, além de originais, muito transgressores. Um belo dia, encontrei o Edu, figura inconfundível, vendendo livros no hall do Teatro Renascença. Não hesitei e fui falar com ele para elogiar a banda e perguntar quando teria um próximo show. Da troca de ideias acabei falando que tocava teclados, e ele me convidou pra experimentar fazer um som com eles um dia em algum ensaio". Ela gravaria dois discos com a banda: Transgênico, Descartável, Feito para Durar menos do que um mês e Noise Star.
Além da originalidade musical, Bibiana acredita que a contribuição da Space Rave "se dá no sentido de sempre contar com mulheres, tanto em suas formações quanto em suas criações artísticas. A Mariana Kircher é um ícone para o rock porto-alegrense, e a Kellen Zinelli uma baita musicista e compositora com quem também tive a oportunidade de tocar na Space Rave", ressalta.
Além da originalidade musical, Bibiana acredita que a contribuição da Space Rave "se dá no sentido de sempre contar com mulheres, tanto em suas formações quanto em suas criações artísticas. A Mariana Kircher é um ícone para o rock porto-alegrense, e a Kellen Zinelli uma baita musicista e compositora com quem também tive a oportunidade de tocar na Space Rave", ressalta.
Cancioneiro espacial
Space Rave em frame retirado do vídeo oficial da faixa Dinheiro S.A.
FABIO ALT/DIVULGAÇÃO/JCEduardo Normann comenta a trajetória da banda em dez músicas marcantes
Kill Summertime - Guitarras Distorcidas Juventude Enlouquecida
Essa música criei no primeiro ensaio, ligamos o gravador K7, e começamos a improvisar. Eu estava tocando violão e comecei a improvisar. A letra é num inglês cheio de erros gramaticais, mas ok. Depois criei um trecho instrumental a partir da linha de baixo que a Mari fez.
Never Mistake - Guitarras Distorcidas...
A história dessa é puro amor. Conheci a Mari e compus a música, mas a letra era "Mariaaanaaa... onde você está? Preciso muito, muito te falar..." etcétera. Daí começamos a namorar e tocar juntos e lembrei dela, mas achei mais legal adaptar uma outra letra que eu havia escrito na época da Molly Guppy. E ficou massa, um singelo hino underground. Anos depois a Virgínia Simone dirigiu o clipe, uma animação cheia de referências ao Garagem Hermética e a cena musical dos anos 90.
Lunática Anarquista - DVD Juventude Enlouquecida
Eu trabalhava na Kafka, cheguei queimado no tempo em casa para encontrar a Mari e ir pro Thomas gravar. Ela estava tomando banho com o Kim, nosso filho, e estava chorando muito. O pai dela havia falecido. Não sei de onde tiramos energia para ir para o estúdio, mas com certeza no vídeo dá para ver como estamos com o sentimento à flor da pele.
Moviola - Transgênico Descartável Feito Pra Durar Menos Que Um Mês
Essa música entrou na trilha sonora do Tolerância, dirigido pelo Gerbase, mas essa história é mais legal de ler no livro Gauleses Irredutíveis, por pura falta de espaço para tantos caracteres.
Pela Luz do Sol - Noise Star
Eu e a Mari voltamos do Rosa com um doce que parecia um pedaço de papelão. Dividimos e começamos a improvisar e gravar. O loop dos versos que se sobrepõe um ao outro, sendo impossível de cantar com apenas uma voz, diz muito sobre o estado em que ficamos.
Pra quem nunca sai de casa - Olho de Peixe
Compus num ano novo, 2011. A letra fala da época em que a gente só saía de casa para ir discotecar no Beco, o que já tornava a nossa vida bastante intensa no quesito festinha. Na gravação que consta no álbum de 2022 o Kim tocou baixo. O refrão traz a máxima "Ninguém é melhor que ninguém, a não ser Rita Lee".
Fear of Missing Out - Olho de Peixe
Eu havia ouvido essa expressão, cuja sigla é "FOMO", que fala do medo das pessoas se sentirem de fora, excluídos, esquecidos pela bolha ao qual pertencem.
Dinheiro S/A - Olho de Peixe
Ainda com a Mari tocando baixo e com synths e backings feitos pela Biba Graeff, a canção teve como inspiração a São Paulo S/A, de Sérgio Person. "Tomar um porre na noite pois a solidão não escolhe a hora de me perturbar", versa a letra.
Nova Onda Babilônia - Fauna e Flora
O refrão original falava Supernova onda, bomba bomba bomba Babilônia. Dias depois ocorreu o atentado na festa Supernova, em Israel, e fiquei tão perturbado com uma certa coincidência premonitória que acabei alterando essa parte.
Useless - Space Rave meets Julie Sadgrrl
Há mais de 15 anos eu só gravo no Dub, a única exceção foi essa música. Eu e a Julie fomos para uma festa em Floripa, do pessoal da Peep FM. Ficamos hospedados na casa do Paulo, ou melhor, no estúdio Ouié. Acordamos de ressaca, almoçamos e passamos a tarde gravando.
Formação atual da Space Rave, que gravou o álbum Fauna e Flora, previsto para sair ainda este ano
DIEGO ROCKENBACH/DIVULGAÇÃO/JC* Cristiano Bastos é jornalista e autor de Julio Reny – Histórias de amor e morte, Júpiter Maçã: A efervescente vida e obra, Nelson Gonçalves: O rei da boemia, Nova carne para moer e Gauleses irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Também dirigiu o documentário Nas paredes da pedra encantada.