Mal tinha começado o primeiro final de semana do
52º Festival de Cinema de Gramado quando o ator e realizador
Matheus Nachtergaele soltou uma das frases definidoras desta edição do evento. Demonstrando sincera alegria com o
Troféu Oscarito, entregue a ele neste ano como reconhecimento à trajetória de destaque no audiovisual brasileiro, Nachtergaele expressou, no já sagrado palco do
Palácio dos Festivais, seu sentimento de devoção ao cinema brasileiro - na sua opinião, o melhor do mundo. E arrematou:
"Para mim, o cinema que eu amo, essa coisa da sala de cinema, é cada vez mais um lugar de livre oração. Cada filme é uma oração. Nesse mundo que eu defendo e acredito, os festivais serão, cada vez mais, como pequenas igrejas, onde iremos para rezar o cinema brasileiro. E Gramado será nossa Catedral."
A força da imagem evocada por Nachtergaele não apenas arrancou aplausos comovidos dos presentes naquela noite de sábado, mas permaneceu, de certo modo, na imaginação de todos e todas que circularam pelas atividades do Festival nos dias seguintes. Havia, de fato, um sentimento de causa em comum no ar, uma certeza silenciosa (mas nem por isso menos convicta) de que estar ali, naquela Gramado, naquele ano, naquela edição do Festival, tinha um tanto de profissão de fé.
Com o cinema brasileiro ainda sacudindo a poeira depois do tombo provocado pela pandemia, e com o Rio Grande do Sul ainda tentando compreender o real impacto humano e econômico das enchentes de maio, havia a possibilidade concreta - silenciosa, porque de certas coisas não se fala em voz alta, mas ainda assim concreta - de que o Festival fosse adiado. Seria a primeira vez, em mais de cinco décadas, que o mês de agosto não teria um Festival de Cinema de Gramado. E essa perspectiva assustava toda a cadeia produtiva do cinema brasileiro - não apenas pelos óbvios prejuízos artísticos e financeiros, mas também pela simbologia sombria que o cancelamento traria. Se nem Gramado pudesse nos dar a certeza de que estará sempre lá, o que nos restaria?
Mas Gramado esteve lá. Com redução no número de convidados, menos celebridades desfilando no tapete vermelho, uma programação mais enxuta no Palácio dos Festivais. Mostras competitivas de Curtas-Metragens Brasileiros e Longas-Metragens Documentais foram mantidas em exibição no Canal Brasil. E com menos turistas, também, em especial pela paralisação das atividades no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Ainda assim, esteve. E, tendo estado, projetou a certeza de que continuará estando - uma dedução lógica que, quem sabe, é a grande afirmação da edição 2024 do principal evento do cinema brasileiro.
"Neste momento, a simples manutenção do Festival de Cinema é muito importante para o turismo de Gramado, mesmo que nesse ano específico o turismo não seja tão acentuado (devido às enchentes)", diz Marcos Santuário, um dos curadores do Festival deste ano. "Mas quem não pôde vir este ano vê que o evento aconteceu, e isso mantém a possibilidade de que venha para Gramado em 2025 ou 2026. O mesmo raciocínio vale para o cinema. Tanto na pandemia, quanto agora com as enchentes, poderia ter sido dito 'não, nessas condições não podemos fazer (o Festival)', e isso se entenderia. Creio que haveria uma compreensão generalizada. Mas Gramado entendeu que era importante manter, que havia algo a ser dito a partir de uma demonstração de resiliência, tanto antes quanto agora."
Foram nove dias em que a cidade da Serra Gaúcha cumpriu, uma vez mais, seu papel de certeza inabalável no cinema brasileiro. Como a catedral sugerida na imagem poética de Matheus Nachtergaele, foi um ponto a ser alcançado ao fim da jornada - talvez não tão solene e vetusta quanto a figura de linguagem sugere, mas certamente capaz de abrigar dentro de si todas as almas que buscam o cinema brasileiro como força de oração.
Na base da teimosia
Cenário acostumado com os altos e baixos do cinema brasileiro, Gramado precisou se adaptar a tempos difíceis para garantir a realização do Festival deste ano
CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Como bem lembra Marcos Santuário, o Festival de Gramado está acostumado a ser teimoso. Com mais de cinco décadas de existência, o evento já teve que enfrentar os apavoros da ditadura, as vacas magras do fim da Embrafilme, as dores de realizar um evento de cinema sem público em 2020 e 2021, no auge da pandemia. Desta vez, vieram as chuvas e inundações para espalhar prejuízos pelo Estado. Nada, porém, que impeça o reencontro entre a cidade serrana e aqueles que realizam, pensam e assistem cinema no Brasil.
"O Festival se adapta", celebra o curador. "Não tem filme brasileiro? Vamos para os latinos. A censura dos militares quer bloquear? Vamos gritar dentro do Palácio. Chegou a pandemia? Vamos para a televisão e para o online, mostrando a adaptação tecnológica também como uma possibilidade de salvar o momento. Não tem aeroporto? Vamos diminuir o todo, mas vamos manter a essência."
"A gente achava que não ia ter (o Festival). Ser homenageada por Gramado, em meio a essa tragédia, me deixa muito feliz e agradecida, comovida inclusive", afirmou a atriz
Vera Fischer, que recebeu, durante o Festival, o
troféu Cidade de Gramado. "Tenho certeza que vocês todos, que estão fazendo esse Festival, nunca vão esquecer dessa 52ª edição.
Esta edição estar acontecendo é uma demonstração de resistência muito grande, um ato de fé que eu aplaudo", acentuou.
De fato, havia muito de resistência nas atividades do Festival deste ano - e muito se falou de resistir e de seguir em frente nos debates ocorridos de 9 a 17 de agosto. "Cada projeto é uma nova batalha, não há continuidade garantida. O financiamento para filmes autorais depende muito de reconhecimento em festivais, cujo olhar curatorial não está ligado apenas à qualidade em si do filme", afirma a cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, que esteve na Mostra Gaúcha de Gramado com Até que a Música Pare. "Para um filme gaúcho, ser exibido em Gramado é uma chance de aproximar a equipe do resultado final e permitir que este encontre o olhar de outros realizadores. Os encontros e as trocas que se dão nesses eventos permitem que muitos de nós continuemos a fazer cinema."
Resistências que se irmanam, a do Festival e a de quem faz os filmes nele exibidos. Que o diga a produtora
Sara Silveira, que esteve em Gramado com o longa
Cidade; Campo, dirigido por
Juliana Rojas. O longa, que traz a história de mulheres que se deslocam entre o urbano e o rural no Brasil contemporâneo, começou a ser rodado em 2020, com restrições impostas pela Covid-19 - e foi paralisado por um surto na equipe no ano seguinte, que atrasou as gravações e impôs prejuízos quase intransponíveis. Que o filme tenha chegado à Mostra Competitiva Nacional é uma vitória da teimosia que é fazer cinema no Brasil - e a estreia nacional em Gramado, cenário acostumado a fazer acontecer do jeito que dá, acabou sendo bastante adequada.
"Estrear o filme nessa Gramado, nesse Estado que apanhou tanto, ficou enlameado... São duas resistências, o Rio Grande renascendo e o nosso filme desabrochando", celebrou Sara. "É muito nobre que estejam realizando o Festival. Eu morri de medo de que Gramado não existisse, e a importância (de estar acontecendo) é a de uma resposta: 'eu estou aqui'. O Festival está gritando, e os filmes estão gritando que o mundo não acaba aqui, pelo contrário: ele recomeça a cada vez que lançamos um novo filme."
Entre o glamour e a resistência
Bruna Linzmeyer, do longa brasileiro Cidade; Campo, foi uma das celebridades a passar pelo Tapete Vermelho este ano
CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Evento pensado para uma cidade que enxergou no turismo sua principal vocação econômica, o Festival de Cinema de Gramado equilibra, desde sempre, o glamour e a resistência. É um lugar para o qual se vai para ver as estrelas, tanto ou até mais do que os filmes na tela grande - mas é justamente graças ao desfile das celebridades que o evento tem fôlego para abraçar um universo cinematográfico ansioso para assistir e debater a si mesmo.
Nos últimos anos, porém, a carga de galãs e divas no Tapete Vermelho tem diminuído - menos por uma decisão ou vontade de organização, e bem mais pelas muitas dificuldades vivenciadas nos últimos anos. Parece claro que, embora ainda saudável, o Festival de Gramado já foi mais vistoso - e que, em um presente distante da fartura de outros tempos, a rica bagagem das décadas anteriores é ainda mais importante para manter o edifício firme em seu lugar.
"Gramado tem uma história muito bonita, praticamente todo mundo que tem relevância no cenário do cinema nacional passou por aqui", anima-se o cineasta
Erico Rassi, que dirigiu o longa
Oeste Outra Vez, agraciado com o
Kikito de melhor longa brasileiro de 2024. "Quando se pensa em festival de cinema no Brasil, quem está mais firme no imaginário das pessoas é Gramado, e isso é muito importante para a carreira dos filmes (exibidos aqui). É uma chancela. Eu não acho que precise necessariamente passar por festivais para ser bom ou não, mas isso é uma visão pessoal minha. O mercado, em si, valoriza, e você pega uma carona nessa história toda."
Cinema de (e sobre) mulheres
Elenco do longa O Clube das Mulheres de Negócios, que esteve na Mostra Competitiva Brasileira em Gramado
Cleiton Thiele/Agência Pressphoto/JC
Não deixa de ser curioso apontar que, em um Festival de Gramado que, pelo segundo ano consecutivo, deu às mulheres papel destacado em suas exibições, o Kikito de melhor filme tenha ido justamente para um longa na qual as mulheres praticamente não aparecem. A contradição, contudo, é apenas aparente: organizado como um faroeste sobre homens patéticos, Oeste Outra Vez retrata um mundo no qual as mulheres se ausentam, o que exacerba o vazio emocional e a violência incompetente e sem respostas dos homens que surgem na tela. Removidas visualmente da película, as mulheres são uma presença simbólica permanente no filme de Erico Rassi, justamente pela sua ausência.
Na Mostra Competitiva Nacional, quatro dos sete filmes em disputa foram dirigidos por mulheres:
Cidade; Campo, de Juliana Rojas;
Pasárgada, estreia de Dira Paes na direção;
Filhos do Mangue, de Eliane Caffé, premiada como melhor diretora; e
O Clube das Mulheres de Negócios, de Ana Muylaert. O último citado, aliás, trouxe uma acentuada carga política e social, a partir de uma premissa aparentemente simples:
a inversão do papel de homens e mulheres na sociedade, com as magnatas femininas exercendo os mecanismos de opressão hoje naturalizados como masculinos.
Segundo a atriz Ítala Nandi, que está no elenco do longa, o filme que abriu o festival é, antes de uma sátira ácida sobre homens e mulheres, uma discussão profunda sobre o poder patriarcal. "Quando tivemos o primeiro ensaio, eu disse para Ana: 'você escreveu um roteiro iluminado, sobre o que o poder está fazendo com a humanidade'. Hoje em dia se faz sexo à vontade, por exemplo, mas e o amor? Cadê? O patriarcado nos impõe um mundo sem amor, e (O Clube das Mulheres de Negócios) é um filme que gostaria de mostrar o amor, mas não tem o que mostrar", reflete. "Ter esse filme abrindo o Festival é de uma oportunidade absoluta. Eu tive medo que não tivéssemos Festival, e esse filme abrir Gramado dá um sentido extra (ao evento)".
Da mesma forma, também coube às realizadoras mulheres o papel de trazer as discussões mais profundas aos debates na
Sociedade Recreio Gramadense, realizados na manhã seguinte de cada sessão. Ainda que
Oeste Outra Vez traga um comentário social valioso em seu subtexto, tanto
Estômago 2 - O Poderoso Chef, de Marcos Jorge, quanto
Barba Ensopada de Sangue, de Aly Muritiba, são filmes de entretenimento por excelência, com enredos pouco preocupados em fazer declarações de qualquer natureza.
Estrelado por três mulheres (Fernanda Vianna, que recebeu Kikito de melhor atriz, e a dupla Bruna Linzmeyer e Mirella Façanha, que formam um casal na tela), Cidade; Campo talvez seja o que mais profundamente uniu a disposição de falar de mulheres e, ao mesmo tempo, do mundo que as cerca - no caso, um mundo de rompimentos de barragem, áreas nativas devastadas e de uma dimensão telúrica que, atacada pelo humano, reage como pode a essa situação.
"Acho importante elaborar o que está acontecendo (com o mundo) a partir da ficção", reflete a diretora do longa, Juliana Rojas. "Eu, como indivíduo, me sinto impotente diante de questões que têm a ver com esse capitalismo exacerbado, com engrenagens muito amplas que não se pode combater sozinha. Mas é importante pensar que é possível resistir, ter estratégias para lutar dentro dessa realidade". A realizadora tem história longa em Gramado: sua estreia, com o curta-metragem O Lençol Branco, aconteceu na tela do Palácio dos Festivais, e foi premiada na edição de 2014 com Sinfonia da Necrópole.
Um disposição para a novidade e o questionamento que pode não casar perfeitamente com a pomposa catedral de Nachtergaele, mas que tem bastante a ver com o espírito que a organização e a curadoria procuram imprimir ao Festival. "Os filmes que vêm a Gramado, eles não vêm pra morrer em Gramado. Eles vêm pra nascer em Gramado", acentua o curador Marcos Santiago. "Essa é a ideia que nos leva ao ineditismo. A gente exige o ineditismo para que Gramado seja o lugar onde essa gente toda vem para assistir o novo. Que todo mundo saiba que, se vier a Gramado, vai ver pela primeira vez filmes que, depois, podem ganhar outras latitudes, outras telas."
Inteligência artificial e streaming são preocupações
"Multinacionais de streaming estão eliminando o trabalho autoral em nome de enlatados produzidos em massa", critica diretora Ana Muylaert
CLEITON THIELE/PRESSPHOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Ao final da 52ª edição do Festival, a organização publicou uma carta oficial, na qual subscreve duas preocupações crescentes do setor audiovisual brasileiro: a regulamentação do uso da Inteligência Artificial e da operação das empresas internacionais de streaming no País. "É preciso agir rápido para que não sejamos coadjuvantes em nossa própria história", diz o texto. "Marcamos aqui, neste festival, a criação de um grupo de Inteligência Artificial no Audiovisual Brasileiro para mapear e conduzir o impacto dessa revolução no setor."
Quanto ao streaming, o documento pede regulação imediata, afirmando que a ausência de legislação abre brecha para competição desleal no setor. No momento, as empresas de streaming não pagam impostos no Brasil. "Estão em risco os direitos autorais, a privacidade e a soberania do nosso País. Precisamos regular a atividade de vídeo não linear, a internet em todos os níveis, a TV aberta e preparar a chegada da TV 3.0. Mais de uma década de operação e seguimos sem regulamentação", lamenta o texto, que também solicita medidas como o fortalecimento do Fundo Setorial do Audiovisual.
A diretora Ana Muylaert critica o estado de coisas envolvendo as multinacionais de streaming no País - problema, segundo ela, que vai além do desequilíbrio econômico no setor. "As multinacionais estão eliminando o trabalho autoral de diretores, produtores e roteiristas em nome de enlatados produzidos em massa, concebidos a partir de um algoritmo", afirma. "Esses executivos, que estão pelo mundo afora colonizando o audiovisual de muitos países, precisam entender que, sem autoralidade, vão perder o público. Porque é a autoria, a humanidade que atrai as pessoas, que as faz querer assistir um filme ou seriado. Sem isso, as pessoas vão preferir ver filmes de gatinho no (aplicativo de vídeos) TikTok."
Homenageado com o
troféu Eduardo Abelin na edição deste ano, o cineasta
Jorge Furtado nutre preocupações semelhantes. "Acho que estamos num momento bem difícil.
Hoje vivemos os tempos do TikTok, que não é arte nem entretenimento, é distração: um gato caindo na escada, uma criança chupando limão, aquilo tudo passando ali na tela e daqui a pouco acaba, não sobrou nada. Acabar, o cinema não vai, mas a gente vai ter que repensar", reforçou Furtado, que estava em Gramado também para a divulgação do filme
Virgínia e Adelaide, em parceria com
Yasmin Thayná.
Para que lugares como Gramado possam, de fato, ser catedrais no culto ao cinema autoral, há que se garantir que os realizadores possam sobreviver ao momento da forma que sabem melhor: produzindo conteúdo audiovisual de qualidade e com assinatura. "Precisamos de mais políticas públicas que reconheçam o cinema como manifestação artística", argumenta Cristiane Oliveira. "Os projetos não devem ser avaliados apenas pela quantidade de ingressos vendidos em títulos anteriores do produtor ou do distribuidor, ou pela quantidade de festivais em que os filmes prévios do diretor entraram. Precisamos de curadorias de fomento que analisem os projetos na íntegra e que tenham um olhar para perceber a importância da diversidade e da experimentação de linguagem, não apenas o potencial de lucro que eles podem dar quando lançados."
* Igor Natusch é jornalista e escritor e atua como editor de Cultura do Jornal do Comércio. Nos anos de 2019 e 2020, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Ari de Jornalismo, na categoria Reportagem Cultural.