Juarez Fonseca, especial para o JC
Ele nunca foi de ir a médicos. Nem costumava dedicar cuidados especiais à saúde. Até que em um dia de junho de 1974 não houve saída: uma internação hospitalar por infecção urinária revela vários problemas. Tinha diabetes, insuficiência renal, e o coração, logo ele, pedia trégua. Assumiu com os médicos e a esposa Cerenita o compromisso de largar a boemia e se cuidar. Mas quem? Passado o susto, quase tudo volta ao normal. Acordar às 10h, alimentar as galinhas e passarinhos no quintal, fazer o almoço da família, às 16h seguir para o escritório da Sbacem (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), da qual era o representante no RS, e depois partir para a sagrada ronda dos bares, onde os amigos o esperam.
Mas desta vez o normal duraria pouco. Em 21 de agosto volta à UTI do Hospital Ernesto Dornelles, lá permanecendo. Dois dias depois, o filho Lupinho traz a alegria de que a música Felicidade, recém-gravada por Caetano Veloso, tocava em todas as rádios, era sucesso nacional! Diz a lenda que ele teria comentado: "Finalmente, de novo, estão reconhecendo o velhinho". Lupicínio Rodrigues morre no dia 27 - faria 60 anos pouco depois, 16 de setembro. Sai de cena como um dos pilares da música brasileira. E o "finalmente" fica por conta da emoção daquele momento, pois na verdade esse reconhecimento já vinha desde o início da década. Desconsidere a lenda (mais uma em uma vida cheia delas) de que estava "quase esquecido" ao morrer.
No mesmo 1974, Elis, a maior cantora, grava Cadeira Vazia e Maria Rosa.
Em 1973, a gravadora Continental lançara o LP Dor de Cotovelo, com Lupi cantando 12 músicas novas. Gal gravara Volta, Gilberto Gil gravara Esses Moços (Pobres Moços), Paulinho da Viola dera em seu LP Nervos de Aço uma das mais primorosas interpretações dessa música. Lupi também fora o destaque do programa MPB Especial na TV Cultura paulista (lançado em CD e DVD em 2000). Foi ainda o ano da histórica entrevista ao jornal Pasquim, raro documento para o futuro. É onde ele se define: "Não tenho nada com o ambiente musical brasileiro. Não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Eu sou um boêmio". Essa definição deve ter inspirado o repórter André Pereira, do jornal Zero Hora.
Na comemoração dos 59 anos de Lupi, André o acompanhou durante quase 18 horas, da festa em família à madrugada no Batelão (um de seus bares). Além de descrever tudo o que viu, também resumiu a história dele na reportagem publicada em setembro de 1973, cujo título destacava: Profissão: Boêmio. Trecho: "As pessoas olham para o relógio e não disfarçam a expectativa. São 2h45min. E então ele, Lupicínio Rodrigues, aparece. Caminhando devagar, um sorriso calmo nos lábios, as mãos nos bolsos do casaco preto, e os aplausos irrompem, fartos. Lupi tira uma caixinha de fósforos do bolso, senta-se na mesa sob os olhares atentos e pega o microfone. É como um ritual: começa a cantar e atmosfera vai se transformando."
Coisas de Lupi, nascido na antiga vila proletária da Ilhota, em Porto Alegre, e considerado pelo consagrado crítico e historiador musical Zuza Homem de Mello o maior compositor da história do samba-canção: "Ele construiu a mais significativa obra num gênero em que supera qualquer um com que possa ser confrontado". A vida e a obra de Lupicínio já renderam oito (!) livros biográficos, inúmeros trabalhos acadêmicos e quatro filmes (dois curtas e dois longas). "Deixou" quase 300 músicas, sendo 188 gravadas desde 1936 pelos maiores intérpretes brasileiros, de Francisco Alves a Zizi Possi, de Luiz Gonzaga a Arrigo Barnabé, e Moreira da Silva, Jamelão, Ângela Maria, Elza Soares, Nelson Gonçalves, Jair Rodrigues, Maria Bethânia, Emílio Santiago, Beth Carvalho, Arnaldo Antunes, sem falar nos conterrâneos Lourdes Rodrigues, Zilah Machado, Berê, Adriana Calcanhotto, Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Gélson Oliveira, Teddy Corrêa (este com uma versão eletropop no CD Loopcinio).
Idas e vindas de um boêmio
Lupicínio (em foto de 1939, no Rio de Janeiro) foi cronista - em música e, às vezes, em texto - de personagens e lugares da noite porto-alegrense
/ ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCEm fevereiro de 1963, a edição gaúcha do jornal Última Hora convidou Lupicínio para escrever uma crônica semanal. Ele gostou e convocou seus amigos jornalistas Hamilton Chaves e Demósthenes Gonzalez para ajudá-lo a dar forma aos textos. Nascia assim a coluna Roteiro de um Boêmio, publicada durante um ano. Trinta e dois anos depois, as 42 crônicas foram reunidas pela editora L&PM no livro Foi Assim - O cronista Lupicínio conta as histórias de suas músicas.
Na primeira crônica, obviamente sobre a boemia, Lupi traz a tese de que o sol tem excesso de luz, defendendo a lua e sua penumbra. Em outra crônica, argumenta sobre a necessidade de casamento para os boêmios. Enfim, são todas reveladoras de uma personalidade absolutamente original. Além do boêmio profissional e do poeta, elas desvendam o antropólogo, o historiador, o filósofo, o observador e intérprete das "coisas" do mundo.
"Sempre que falo do bem gosto de falar do mal, porque eles são companheiros inseparáveis", escreveu. Das crônicas emergem personagens esquecidos da história mundana de Porto Alegre, vêm à tona os bares, os inferninhos, os lugares - e os tempos - que desapareceram. O que seria a inflação, por exemplo: "O rei do mal colocou o Exu no corpo de cada tubarão dos gêneros de primeira necessidade".
Sua poética era sofrida - e segue atual
1960 - Lupicinio em Sao Paulo
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCNas letras de músicas reproduzidas nas crônicas há muitas desconhecidas, como Eu Não Sou Louco, Ladrão Conselheiro, Boneca de Doce. Como já vimos, ele compôs perto de 300 músicas (a relação completa está no livro Lupicínio - Uma biografia musical, de Arthur de Faria), 188 gravadas. Seu parceiro Alcides Gonçalves foi o primeiro a gravar, Triste História e Pergunta aos Meus Tamancos, em 1936. Mas as canções que se tornaram clássicos, grudando definitivamente na história da música brasileira, são cerca de 20, entre elas gravadas e regravadas como Vingança, Cadeira Vazia, Esses Moços (Pobres Moços), Ela Disse-me Assim, Volta, Nervos de Aço, Se Acaso Você Chegasse, Loucura, Um Favor, Quem Há de Dizer, Castigo, Nunca, Maria Rosa, Judiaria, Felicidade (originalmente (Xote da) Felicidade)...
De certa forma, a força destas acabou prejudicando o conhecimento maior de muitas outras. Maravilhas como Torre de Babel, Eu e o Meu Coração, Brasa, Cevando o Amargo, Exemplo, Se é Verdade, Aves Daninhas, Triste História, Foi Assim, Dona Divergência, Jardim da Saudade, Contando os Dias, Paciência, Minha Ignorância, Homenagem e Sozinha (mais lembrada como Bicho de Pé), têm popularidade restrita ao Rio Grande do Sul e entre lupicinianos de carteirinha espalhados pelo Brasil. Sem falar de tantas conhecidas apenas em círculos boêmios que preservam a memória do compositor, como Zé Ponte, Tem Navio no Porto, Pra São João Decidir, Há um Deus, Caixa de Ódio, Dona do Bar... Algumas receberam nomes de mulheres, Inah (sua primeira e eterna paixão), Beatriz, Theresa, Cecília, Margarida.
Mas ter pelo menos 20 clássicos (clássicos mesmo!) já é um fenômeno. Quantos têm, daquela geração? Noel Rosa, Ary Barroso, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi? E das gerações futuras, a partir da bossa nova? Poucos. A história de nossa música preserva várias lendas do passado, e a verdade é que boa parte de suas obras, pelo menos em termos poéticos, não passa hoje de documentos antigos, registros em linguagem empolada, como por exemplo, com todo respeito: "Dentro d'alma dolorida tenho um riso teu/ Meu amor/ Teu sorriso é um lindo albor/ Uma existência, um céu/ Tens na boca embelecida/ Pérolas de luz/ Rubra ilusão do astral/ Perolário a iluminar/ Um eclipse de sol com luar", diz a letra de Mimi, famosa valsa de Uriel Lourival, de 1933, gravada por vários cantores até os anos 1950.
Já as letras de Lupicínio têm uma atualidade poética surpreendente. É de 1950 a primeira gravação de Cadeira Vazia, por Francisco Alves: "Entra, meu amor, fica à vontade/ E diz com sinceridade o que desejas de mim/ Entra, podes entrar, a casa é tua/ Já te cansaste de viver na rua/ E os teus sonhos chegaram ao fim". Em 1974 Elis provou que continuava novíssima. Volta, sucesso de Linda Batista em 1957, e sucesso com Gal Costa em 1973: "Quantas noites não durmo/ A rolar-me na cama/ A sentir tantas coisas/ Que a gente não pode explicar quando ama". E o que dizer de Dona Divergência, de 1951? "Dona Divergência, com o seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais/ E eu, combatente atingido/ Sou qual um país vencido/ Que não se organiza mais".
Ele praticava um português enxuto, substantivo, usava frases curtas, e esse é um dos segredos de sua atualidade. A temática era aquela que a imaginação e a vida dos homens, através dos séculos, tornaram mitologia: o drama da paixão, do coração partido, que leva a pessoa a cometer loucuras. Tema também dos tangos e boleros, influências irresistíveis na Porto Alegre da época, mas transposto para o âmbito do samba e do samba-canção. Canções que narram amores felizes são em geral individuais, correm o risco de tornar-se piegas. Canções de amor dilacerado são profundas, têm eco em cada esquina, em cada bar, em cada quarto. Quem nunca rimou amor e dor?
Lupicínio dizia que suas letras reproduziam experiências vividas por ele ou seus amigos. Muitas músicas eram de última consequência, compunha por necessidade de expressão. Dizia ainda, quase cinicamente, que as mulheres boazinhas não lhe deram dinheiro; só as que o traíram. "Meu primeiro automóvel foi comprado com o dinheiro de um samba feito para uma mulher que me machucou", escreveu numa das crônicas da Última Hora. Vivia pelos bares, abriu alguns para que ele e os amigos tivessem onde tocar, cantar, beber de graça (em seu caso, um conhaquinho) e, enfim, namorar. Um desses bares, o célebre Clube dos Cozinheiros, criado em sociedade com o cantor carioca Rubens Santos (também frequente parceiro musical) tinha uma placa na parede: "Quem fala quando alguém canta põe a própria ignorância na vitrine".
Trecho de outra crônica: "As boêmias são mulheres que gostam da noite e sabem que é na noite que se faz música, que se diz poesia com mais sentimento e onde, enfim, o amor é mais amor. Sem elas, sem a lua e as estrêlas, nós boêmios não teríamos razão para viver e nem teríamos escolhido a noite para nossa companheira". Mas o verdadeiro boêmio sempre volta para casa, é casado, gosta de viver muito. Na estatística de Lupicínio, os boêmios solteiros morrem em média aos 40 anos. Ele estabelecia que as esposas devem substituir as mães, cabendo-lhes a função de fazer companhia quando o boêmio estiver de ressaca e de passar carraspana quando estiver abusando. "As esposas devem se sentir felizes quando seus maridos voltam de suas noitadas, porque sua volta é a maior prova de amor que um homem pode dar", escreveu.
Os amigos, os amores, as paixões e os mosquitos
Hoje, perante um tribunal feminista, seria condenado em primeira instância por machismo. Mas parecia um padre. Era incapaz de fazer mal a uma mosca - ou a um mosquito, o inseto de sua predileção por viver na noite e ter a mania de cantar no ouvido das pessoas. De temperamento doce, calmo, falava em tom bem baixo e quase sempre com um meio sorriso nos lábios. Tinha devoção pelos amigos, os seus "camaradinhas". A seu modo, conjugava os fatores centrais da relação humana: o amor, pacífico, seguro, caseiro, e a paixão, arrebatadora, inconstante, dramática, fator direto do impulso criador.
Ele conheceu o sucesso no período que alguns historiadores consideram os anos dourados de Porto Alegre. O Centro vivia grandes transformações. Tudo era novo - a Galeria Chaves, cine-teatros luxuosos como o Imperial, a Avenida Borges de Medeiros e seu impressionante Viaduto Otávio Rocha, a Avenida Farrapos, os primeiros arranha-céus. Recheada de lojas "chiques", a Rua da Praia, ponto de encontro de estudantes e jovens, fervilhava com o footing, os cafés e confeitarias, a Livraria do Globo. O rádio era uma febre com seus programas de auditório...
Nasceu para ser músico
Lupicínio entre amigos de boemia, em foto registrada em 1949
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCFilho do funcionário público Francisco e da dona de casa Abigail (que reforçava o orçamento lavando roupa para fora), o menino nasceu na Ilhota, uma vila pobre e alagadiça no bairro Cidade Baixa - onde futuramente emergiria o Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues. Completou o curso primário a pau-e-corda; aos 12 anos já cantava em um grupo de seresteiros e chorões da Ilhota ao lado do pai. Aos 14, compôs a primeira música, uma marchinha chamada Carnaval. Aos 16, foi engajado pelo pai como "voluntário" no Exército. Em 1932 estava em São Paulo, em meio à Revolução Constitucionalista. Não participa de nenhum combate, mas faz uma música criticando a comida da tropa.
Depois da "experiência" no Exército, em 1935, com nova interferência do pai, conhecido do diretor, passa a trabalhar como bedel da Faculdade de Direito de Porto Alegre. O "cabide" dura até 1947, quando consegue a aposentadoria precoce por problemas de saúde - que em nada interferiam em sua vida boêmia. A essa altura já era um nome nacional, com músicas gravadas pelas grandes estrelas da época.
Durante a década de 1960, Lupi experimentou um relativo ostracismo nacional. Relativo por quê? Porque em 1960 Se Acaso Você Chegasse volta ao sucesso em sua talvez melhor versão, na voz de Elza Soares. Em 1968, ele dá longo depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Mas esse "ostracismo" foi também dos outros de sua geração. Afinal, naquela década surgiriam quase em sequência a bossa nova, os festivais de MPB, a música de protesto, a jovem guarda, revelando João, Tom, Nara, Vandré, Chico, Elis, Caetano, Gil, Gal, Roberto, Paulinho, Milton e mais.
'Quero todo mundo cantando'
Já descrente de sua máxima de que os boêmios vivem mais, Lupi avisara Dona Cerenita: "Não quero ninguém chorando no meu enterro, quero todo mundo cantando". Em 27 de agosto de 1974 as rádios noticiam sua morte. Muitos bares fecham as portas. O corpo é levado para o Estádio Olímpico e coberto com a bandeira do Grêmio, para o qual ele compôs o "Até a pé nós iremos". No dia seguinte, ao som um trompete tocando Se Acaso Você Chegasse o caixão ruma ao cemitério. Foi uma despedida longa e cheia de música. Morria o homem, nascia o mito.
Bibliografia exclusiva
A obra de Lupicínio é abordada em muitos livros, entre eles o já clássico Balanço da Bossa e Outras Bossas, de Augusto de Campos (Editora Perspectiva, 1968). Mas as publicações exclusivas sobre ele são estas:
Lupicínio Rodrigues - O poeta da dor de cotovelo, seus amores, o boêmio e sua obra genial, de Mário Goulart (Coleção Esses Gaúchos, editora Tchê, 1984.
Roteiro de um Boêmio - Vida e obra de Lupicínio Rodrigues, de Demósthenes Gonzalez (Editora Sulina, 1986)
As Paixões Tristes - Lupicínio e a dor-de-cotovelo, de Rosa Maria Dias (Editora Leviatã, 1995)
Foi Assim - O cronista Lupicínio conta as histórias de suas músicas (L&PM Editores, 1995)
Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues, de Maria Izilda Mattos e Fernando Faria (Editora Bertrand, 1996)
Lupicínio: a cidade, a música, os amigos, de Márcia Ramos de Oliveira (Editora Udesc, 2013)
Almanaque do Lupi, de Marcello Campos (Editora da Cidade, 2015)
Lupicínio - Uma biografia musical, de Arthur de Faria (Arquipélago, 2023)