João Vicente Ribas, especial para o JC *
Um dos maiores sucessos internacionais da música brasileira no início deste século foi a canção Ai se eu te pego, do sul-mato-grossense Michel Teló. Além de marcar o estouro do sertanejo pop, fez o mundo inteiro dançar um ritmo típico do Rio Grande do Sul, a vanera.
Esse intercâmbio já vinha ocorrendo há anos, em bailes, rodeios e programas de televisão, a partir de nomes como Berenice Azambuja, Gaúcho da Fronteira e Tchê Garotos. Suas performances enérgicas e brincalhonas já alcançavam a simpatia do público e dos músicos de outras regiões do País desde os anos 1980 e 1990.
A influência e as origens da vanera são o tema da quinta reportagem da série Gêneros Musicais Gaúchos, do Jornal do Comércio. Sua popularidade é abordada por herdeiros de músicos tradicionais e por tocadores de bailes que extrapolam o território gaúcho.
Tio Bilia (Santo Ângelo, 1906-1991), conhecido como o Rei da Oito Baixos, foi um dos nomes icônicos da vanera no Estado. Da região das Missões, também surgiu a família Guedes, que mantém o legado musical do ritmo até hoje.
Vanera, vanerinha e vanerão têm o mesmo compasso binário (célula rítmica formada por dois tempos: um pulso forte, outro fraco). De acordo com Elvio Alberto Walter, pesquisador responsável pela série 50 anos de Nativismo (Henrique de Freitas Lima, 2022), a diferença entre as três variações é o andamento. "A vanerinha é um pouco mais rápida que a vanera e um pouco mais lenta que o vanerão. São dançadas com uma marcação de 2 e 2, ou seja, dois passos para a esquerda, dois passos para a direita e sem figurações. Por essa simplicidade, o seu sucesso", explica.
Uma das músicas mais famosas, É disto que o velho gosta, potencializou a popularização do do gênero em todo o País. Composta pela porto-alegrense Berenice Azambuja e gravada por Gaúcho da Fronteira, foi regravada também por grandes nomes da música sertaneja, como Chitãozinho & Xororó e Sérgio Reis.
Em depoimento a Henrique Mann, na pesquisa Som do Sul (2002), a autora, falecida em 2021, afirmou que o vanerão se identifica muito com outros ritmos brasileiros e revelou que gostava de misturar. "A música do Rio Grande do Sul tem ótimos compositores, mas o feijão com arroz enjoa um pouco. Então, boto forró, xaxado e até rock nas minhas músicas para inovar e, dentro do possível, sem fugir do tradicionalismo. Acho que isso leva a nossa música mais adiante, mais conhecida no Brasil."
Berenice Azambuja abriu cancha para que as mulheres adentrassem esse campo dos bailes, dominado por gaiteiros e conjuntos masculinos. Recentemente, no Instagram, a cantora sapucaiense Su Paz publicou um vídeo reverenciando cinco vaneras cantadas por mulheres. Ao lado do clássico de Berenice, citou Abrindo a cordeona, com Marinês Siqueira, Gaita e violão, com Mary Terezinha, Bem gaúcha, com Analise Severo, e Feio apaixonado, com Kauanny Klein e ela mesma.
Su Paz acredita que a música gaúcha está vivendo um novo momento. "Uma página se vira, agora está chegando uma leva de novas compositoras que refletiram sobre como entrar em novos espaços, escrevendo seu ponto de vista. Também no ritmo da vanera, a gente vê várias mulheres puxando grupos de baile, o que não se via antigamente", afirma.
Assim, a popularização da vanera no Brasil deve muito a Berenice Azambuja. De acordo com Su Paz, ela é uma referência de um dos ritmos mais representativos da cultura do Rio Grande do Sul. Ritmo que aprendeu a cantar nos momentos alegres, no churrasco de domingo, tomando um mate com a família e, principalmente, nos bailes.
Veio de Cuba, passou pelaEuropa e se aquerenciou aqui
Ritmo dominante nos bailes gaúchos, vanera deriva da habanera, oriunda da capital cubana, Havana
BRASIS EM TRAÇOS/LU PATERNOSTRO/DIVULGAÇÃO/JCA gênese desse gênero musical está ligada ao ritmo cubano da habanera. Como diversos outros ritmos surgidos na América, é uma mescla de influência africana e europeia, sintetiza o pesquisador Elvio Alberto Walter. "Já li que ela tenha surgido no século XVII, mas o que se tem registro é que ela tenha origem na primeira metade do século XIX em Cuba, daí o nome vanera, da música que passou a ser chamada de habanera, por causa da capital de Cuba, Habana", afirma.
A grafia varia. Escreve-se vaneira, com o acréscimo do "i", quando se remonta a origem na havaneira, dança lançada por Paris, que fez sucesso em salões de chão batido no Rio Grande do Sul. Conforme Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, no livro de referência Danças e andanças da tradição gaúcha (1975), havia havaneira sapateada e havaneira marcada.
A entrada da matriz do gênero no Rio Grande do Sul é incerta. Walter admite que não se pode precisar se foi pela fronteira com os países do Prata ou trazida por imigrantes vindos da Europa no século XIX. "Chamada de vanera, chega aqui já transformada da versão original, com elementos da sua passagem pela Europa", observa.
Música originalmente não surgida para dançar, sofreu transformações e se adaptou, principalmente em relação ao andamento. "Se tornou popular como dança de salão por ser um ritmo binário, como a maior parte das músicas e danças populares (frevo, samba, blues, polca, rumba)", acredita Walter. Por essa qualidade, também foi chamada de limpa-banco.
Vanera brasileira
Berenice Azambuja lançou É disto que o velho gosta em 1980, vanerão regravado por nomes como Chitãozinho & Xororó e Sérgio Reis
CONTINENTAL/DIVULGAÇÃO/JCElton Saldanha, autor de algumas das vaneras e vanerões mais conhecidos no Estado, como Castelhana e Bailanta do Tio Flor, contribui para compreendermos a sua origem. "A vaneira é uma adaptação de um ritmo que percorre todo o mundo, e aqui se torna extremamente popular", diz. No Brasil, leva outra acentuação. "O sertanejo pega agora a vaneira e transforma num ritmo que podia se chamar de levada brasileira, levada gaúcha, balanço do sul."
Já Walter atribui a incorporação da vanera ao sertanejo ao sucesso nos bailes gaúchos espalhados Brasil afora. "Normalmente, num baile, a proporção é mais ou menos assim: uma valsa, um xote, um bugio, uma marcha, uma rancheira, no meio de trinta vaneras, vanerinhas e vanerões", atesta.
Entre os principais responsáveis por essa atual popularização no País está Michel Teló. Nascido no Paraná, criado no Mato Grosso do Sul, despontou como artista do Grupo Tradição, nos anos 1990 e 2000. Walter observa que Teló "sempre cita a influência da música gaúcha na sua carreira".
Além dos bailes, a vanera se faz presente na música instrumental. O violonista gaúcho Yamandu Costa relaciona-a ao gênero brasileiro do choro, que possui nuances em diversos estados do país. No documentário Naquele Tempo (João Corteze, 2021), testemunha que o choro é uma linguagem ampla. "Existem até ritmos regionais que são muito parecidos com o choro. No Rio Grande do Sul tem o vanerão, que é o nosso tipo de choro", conclui.
O rei da oito baixos
Tio Bilia, de Santo Ângelo, foi pioneiro ao registrar o vanerão em disco, em 1963
ACERVO HONEIDE BILIA/REPRODUÇÃO/JCO instrumento que mais caracteriza a sonoridade do vanerão é a gaita ponto, ou gaita de oito baixos. A primeira gravação teria sido em 1963, com o santo-angelense Tio Bilia. Seu neto Honeide relata que o avô recolheu a música O Missioneiro dos gaiteiros antigos. "Ele se inspirou vendo os gaiteiros tocar na época, Otávio, Marcolino, Cabo Batista e aí por diante", comenta.
Depois, registrou em vinil outros temas recolhidos do folclore, como Vanerão gaúcho, Casório do Batista e Nego Marcolino. Ficou conhecido como o Rei da Oito Baixos. De acordo com os Irmãos Bertussi na apresentação do disco Baile Gaúcho (Copacabana, 1968), "Antônio Soares de Oliveira (Tio Bilia), natural de Santo Ângelo, traz na 8 baixos o estilo guapo da região missioneira”.
Tio Bilia faleceu em 1991, deixando 111 músicas gravadas e uma gaita de botão de herança. Nos últimos anos de vida, teve a oportunidade de subir ao palco com seu filho, Arnaldo, e os netos. Um encontro de gerações que deu origem ao grupo Os Bilias, hoje formado por três netos e um bisneto. "Pra nós, a história do Tio Bilia é um legado que a gente carrega na alma e no coração", assegura Honeide.
Família missioneira
Grupo Jorge Guedes & Família carrega legado missioneiro de Chico e Nenê Guedes
CLIO LUCONI/DIVULGAÇÃO/JCOutra família que perpetua a vanera, há mais de 100 anos, é a família Guedes. O precursor foi Chico Guedes (1912-1986), que de acordo com os herdeiros sempre cultuou esse ritmo, intimamente ligado às Missões. É na região que as expressões "vaneira de cantar" e "vaneira grossa" se tornaram recorrentes. "Nós, como missioneiros, somos abençoados com a safra de grandes músicos que se tornaram referência tocando vaneira, como Reduzino Malaquias, Tio Bilia, Telmo de Lima Freitas, Luiz Carlos Borges e muitos outros", afirmam.
A reportagem teve acesso ao arquivo da família, que compartilhou anotações de palavras dos seus predecessores. Sabe-se assim que Nenê Guedes (1952 - 2018), professor e compositor, filho de Chico, dizia que a música folclórica sempre foi abundante na região. "Nas missões existia muita música que ninguém sabia de quem era", comentava. Em referência à vaneira grossa, Nenê Guedes dizia: "uma música muito conhecida, todos cantam um 'poucasso' dela. Um pega de um jeito, outro pega de outro, mas é a mesma vaneira!"
Hoje, com o grupo Jorge Guedes & Família, seguem resguardando o gênero musical como algo valioso, embalando fandangos além fronteiras. Com ele, reafirmam a integração cultural típica da música missioneira, que inclui diversos outros ritmos, entre eles o chamamé.
Nheco vari nheco fum
Gaúcho da Fronteira lançou vanerões que marcaram época
GAÚCHO DA FRONTEIRA/DIVULGAÇÃO/JCLá se vão 70 anos tocando gaita de botão, com um carisma que transborda limites. Héber Artigas Armua Frós ingressou guri na carreira musical, aos 7 anos de idade, quando vivia entre Rivera e Santana do Livramento. Hoje, Gaúcho da Fronteira recorda esse tempo de infância com uma composição ainda inédita, O guri do varifum. Evidência de que, após inúmeros sucessos, segue com a criatividade ativa.
O lançamento mais recente, do final de 2023, é a parceria com Paullo Costa, Tá bombando Vaneirão. Além do ritmo acelerado costumaz, a letra picaresca de sempre: "Quando vejo alguém troteando na Redença ou no Parcão/ Já penso que tá ensaiando, só pra dançar vanerão/ Isto é especial pra saúde, ajuda a circulação/ Reduz o colesterol, bem de bem pro coração".
Gaúcho da Fronteira conversou com nossa reportagem por telefone, num intervalo para preservar a saúde, entre os shows espaçados que segue fazendo com toda energia. "O vanerão é nossa música típica, a música mais rodada no país, o ritmo mais gostoso, acelerado, quente, o ritmo para cima e para bailar. Se adapta muito bem para o cantor, para o intérprete desenhar um tema e escrever e falar, e para o meu sabor de gaiteiro", declara.
Além de definir o gênero do vanerão, contou histórias da criação de alguns de seus maiores sucessos. Nheco vari nheco fum, por exemplo, foi criado a partir de duas canções inspiradoras. "É, porque eu escutava os Três Xirus tocando Na base do varifum, e depois, um pouquinho mais para diante, os Araganos cantando Nheco-nheco", conta.
Já a inspiração para compor Vanerão sambado foi fronteiriça. "Lá naquele tempo, quando chegava na cidade, tinha um aniversário, um batizado, um casamento, e sempre tinha samba, cuíca, pandeiro, cavaco. E eu floreei tudo, com a cordeona de botão. Aquele arranjo na minha cabeça ficava legal, tocando uma vaneira, um vaneirão, um xote, uma milonga, acompanhado por aquele ritmo. Então, ficou na minha memória", lembra. A composição de Vanerão sambado sairia anos depois, com letra de Vaine Darde.
Fãs sertanejos
Gaúcho da Fronteira conta que tem grandes amigos e fãs na música sertaneja, desde quando começou a participar dos programas na TV Record, em São Paulo, nos anos 1980. "Um belo dia, tô lá no canto preparando a minha música. De repente está entrando aquela muvuca de gente, e aqueles caras vieram direito a mim. Quando chegaram, eram Chitãozinho e Xororó, dois guris. Aí, eles disseram assim: 'bah, seu gaúcho, nós temos todo o seu repertório, seus discos, suas fitas no nosso carro, porque nós somos fãs do senhor'. E desde ali ficou uma amizade bonita".
Outros foram Leandro e Leonardo. "Eu tava na gravadora, lá na Warner, no selo Rodeio, e eles chegaram de Goiás. Batemos papo e ali mesmo cantamos e tocamos. Ficaram meus fãs desde o começo, eram bem gurizote. Leonardo sempre foi meu peixe", orgulha-se.
Também conheceu César Menotti e Fabiano quando eram guris recém chegados de Apucarana (PR), "pequenininhos com a violinha e de bombacha, fazendo música sertaneja e de vez em quando gaúcha também".
Tchê Music e sertanejo
Markynhos Ulyian do Tchê Garotos observa que parte do Brasil acha que a vanera é um ritmo sertanejo
ACERVO PESSOAL MARKYNHOS ULYIAN/DIVULGAÇÃO/JCEntre os grupos de baile gaúcho mais consolidados está o Tchê Garotos. Na estrada há quase três décadas, foram pioneiros na tchê music, tocando vanera com swing. O primeiro grande sucesso, cantado até hoje, foi a vanera Tô voltando pra ficar.
O gaiteiro do grupo Tchê Garotos, Markynhos Ulyian, é paulistano, veio com 16 anos pro Sul tocar em bandas de baile. Filho adotivo de pais gaúchos, frequentava churrascarias e CTGs em São Paulo, e assim foi gostando e aprendendo a tocar gaita.
Essa influência estende-se a todo o gênero sertanejo atual. "Qualquer dupla hoje tem um sanfoneiro que é gaúcho, ou é catarinense, ou é paranaense. Eu mesmo tenho grande amizade com o goiano Gustavo Beltrão, que é gaiteiro do Gusttavo Lima e é apaixonado por música gaúcha. Curte demais o meu trabalho e tantos outros acordeonistas."
Ulyian acredita que o sertanejo viu esse filão da vanera, por ser um ritmo alegre, pra cima. "Uns chamam de batidão, outros tocam um pouquinho diferente, mas sabem que é a vanera", observa. Inclusive alguns lhe contam que ouviam CDs do Tchê Garotos.
Sobre esse sucesso nacional, Ulyian analisa que o sertanejo tem uma abrangência muito forte, mas nem sempre o público reconhece que os ritmos das canções vêm de diversos Estados. "Você pega o próprio arrocha, que o sertanejo também tomou conta. Começou a gravar, gravar, gravar e virou deles. Pouca gente sabe que é da periferia baiana, que também faz parte do brega do Nordeste. Então, quer queira ou não, grande parte do Brasil, que não conhece o trabalho dos grupos gaúchos, acha que é um ritmo sertanejo", conclui.
* João Vicente Ribas é editor da newsletter Canciones para despertar en Latinoamérica e jornalista na Emater/RS-Ascar.