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Publicada em 25 de Julho de 2024 às 19:02

Pub Abbey Road aqueceu a agenda musical de Porto Alegre nos anos 2000

Pub no bairro Higienópolis aqueceu o mercado porto-alegrense de shows durante sete anos, com serviço de primeira e atrações gaúchas, nacionais e estrangeiras

Pub no bairro Higienópolis aqueceu o mercado porto-alegrense de shows durante sete anos, com serviço de primeira e atrações gaúchas, nacionais e estrangeiras

ACERVO JULIO FURST/REPRODUÇÃO/JC
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Marcello Campos
O estúdio da gravadora EMI em Londres já somava quase 38 anos de serviços prestados quando os Beatles caminharam em fila sobre a faixa de segurança próxima ao pequeno prédio com jeito de mansão, no final da manhã de 8 de agosto de 1969, sexta-feira. Rumo às suas derradeiras gravações como grupo, ali estavam os ingleses George Harrison, Paul McCartney, Ringo Starr e John Lennon para meia-dúzia de fotos, uma das quais viraria capa do penúltimo disco do quarteto, lançado em 26 de setembro e com título alusivo àquela via do bairro Saint John's Wood: Abbey Road ("Estrada da Abadia", em tradução literal).
O estúdio da gravadora EMI em Londres já somava quase 38 anos de serviços prestados quando os Beatles caminharam em fila sobre a faixa de segurança próxima ao pequeno prédio com jeito de mansão, no final da manhã de 8 de agosto de 1969, sexta-feira. Rumo às suas derradeiras gravações como grupo, ali estavam os ingleses George Harrison, Paul McCartney, Ringo Starr e John Lennon para meia-dúzia de fotos, uma das quais viraria capa do penúltimo disco do quarteto, lançado em 26 de setembro e com título alusivo àquela via do bairro Saint John's Wood: Abbey Road ("Estrada da Abadia", em tradução literal).
Peça simbólica da cultura pop ocidental, a imagem clicada pelo irlandês Iain Macmillan (1938-2006) também celebrizou a travessia de pedestres como a mais famosa do planeta, status confirmado pelos mais de 120 mil visitantes que, a cada ano, se arriscam no trânsito local para repetir a cena. Ou por quem curte camisetas, pôsteres, canecas e, é claro, o próprio álbum. São mais de 31 milhões de cópias vendidas em 55 anos, sem contar os serviços digitais de música (a faixa Here Comes The Sun é a mais ouvida da banda, com 1,34 bilhão de acessos na plataforma Spotify). Há quem tenha ido além, tomando emprestado o nome do LP para lojas, bares e restaurantes. Dezenas, talvez centenas. De Novo Hamburgo à chinesa Xangai.
Que o digam João Antônio Araújo e Julio Fürst, figuras carismáticas da mídia gaúcha desde a década de 1970. Músicos, radialistas, empreendedores, garotos-propaganda e membros do quarteto humorístico Discocuecas (1977-1986), eles retomaram a parceria em 17 de outubro de 2001 com o Abbey Road Studio Pub, um dos melhores (e mais premiados) endereços noturnos deste século em Porto Alegre - o número 1.185 da avenida Plínio Brasil Milano, mesmo ponto do Higienópolis que quase recebera uma galeteria antes de abrigar as boates Cosa Nostra (1992-1994), Mea Culpa (1994-1996) e Scape Coffee Club (1997-1998).
Tão sólido quanto seu layout de madeira e tijolos em estilo britânico foi o reconhecimento obtido pela casa, dirigida a uma clientela de classe "AB" na faixa dos 25 aos 50 anos. Por trás desse sucesso de público e crítica havia um marketing cuidadoso, centrado no menu de rock, blues, jazz, soul e MPB, a cargo da banda residente (incrementada pela participação dos donos) ou atrações das mais diversas procedências. Palco e camarim receberam destaques locais como Totonho Villeroy e Frank Solari, nacionais do porte de Lô Borges, Vanessa da Mata e Cláudio Zoli e internacionais como o baixista norte-americano Stanley Jordan e o guitarrista britânico Andy Summers, ex-The Police.
"Desde o início a ideia foi de um empreendimento de alto nível em região menos óbvia, o que nos fez evitar o bairro Cidade Baixa, por exemplo", esclarece João Antônio, 70 anos. Ele já trazia no currículo as experiências de cofundador de outro pub fundamental na cidade, o Sgt. Peppers (inaugurado em 1987, ainda na ativa e de nome também inspirado em Beatles), intérprete de voz e violão em bares e modelo nos comerciais de moda masculina das lojas Tevah. Igualmente variada era a trajetória do sócio, ex-proprietário de loja de discos no bairro Moinhos de Vento, produtor cultural, showman, apresentador e executivo de rádio.
Julio contribui, aos 75 anos: "Chegamos a pensar em algo country, porém prevaleceu um conceito de rádio, estúdio etc., mais a ver conosco. Foi quando surgiu a alusão a Abbey Road, em continuidade ao trabalho de João Antônio no Sgt Peppers. Reformamos tudo. A fachada ganhou letreiro em sucata de ferro do Estaleiro Só, e no saguão foi suspensa a carcaça de um piano branco como o de John Lennon. Providenciamos itens retrô como um antigo armário de farmácia para o bar, paredes decoradas com válvulas e pôsteres temáticos, portas com puxadores em forma de microfone e, na lateral do palco, uma estante com discos de vinil". Sem faixa de segurança naquela parte da avenida, pintou-se uma miniatura diante da escada de acesso.
 

Trabalho duro e música de qualidade

Espaço amplo e decoração interna marcante eram marcas do Abbey Road, causando admiração até em artistas estrangeiros que tocaram no local

Espaço amplo e decoração interna marcante eram marcas do Abbey Road, causando admiração até em artistas estrangeiros que tocaram no local

ACERVO JULIO FURST/REPRODUÇÃO/JC
Junto com a relação de trabalho entre João Antônio Araújo e Julio Fürst havia uma amizade iniciada na edição de 1975 do festival Musipuc, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), quando o primeiro concorria pelo trio Inconsciente Coletivo e o segundo participava do júri, como radialista. A ideia de sociedade em um bar, aliás, já havia sido cogitada no tempo dos Discocuecas, antes de esbarrar na falta de unanimidade entre o quarteto - Beto Roncaferro topara mas Gilberto Travi (1951-2011) não, porque era também engenheiro em uma construtora e não via como conciliar mais uma atividade.
Remixado o plano décadas depois com o Abbey Road Studio Pub, a dupla fez um trato: cumprir jornada todas as noites, da abertura ao fechamento. "A combinação foi seguida à risca até o fim, sem contar o expediente em horário comercial no escritório dos fundos da casa, resolvendo assuntos de publicidade, contratação de artistas e burocracias", salienta Julio. Seus arquivos revelam um marketing meticuloso, incluindo decoração interna da arquiteta Zora Machado, identidade visual da agência Praetzel, fotos caprichadas de Duche Chaves Barcellos, prospectos com perfil detalhado do negócio, cardápio com pitacos do culinarista e comunicador José Antônio 'Anonymus Gourmet' Pinheiro Machado e estacionamento com 100 vagas.
O retorno foi impressionante. Funcionado de quarta a sábado das 21h ao último cliente (por volta das 3h), a casa passou a ter seus 300 lugares costumeiramente esgotados em uma cidade com outros pubs bacanas (Fog, Music Hall, Cherry Blues, Mulligan, Shamrock, Mercato Jazz e o próprio Sgt. Peppers). Dentre os diferenciais, camarim subterrâneo, palco com aparelhagem sofisticada, isolamento acústico e visibilidade de qualquer parte do bar-restaurante ou mezanino, além de estacionamento anexo. "A música é a prata da casa", frisou o guia Veja Porto Alegre ao eleger o Abbey Road por três anos seguidos o melhor estabelecimento com som ao vivo na capital gaúcha, fosse com a banda fixa ou atrações especiais. 

Derico, da famosa banda de apoio de Jô Soares, mandando ver no Abbey Road

Derico, da famosa banda de apoio de Jô Soares, mandando ver no Abbey Road

ACERVO JULIO FURST/REPRODUÇÃO/JC
A presença diária de Julio na 102.3 FM, voltada ao mesmo segmento de público, também ampliava indiretamente a propaganda, além de facilitar a veiculação de spots sobre os eventos, mediante desconto no valor de mídia. Outro aspecto decisivo foram as parcerias com empresas de diferentes ramos, via permuta por citação nas peças publicitárias e cedência do espaço para festas privativas. Estavam nessa lista a rede de hotéis Plaza (que passou a hospedar estrelas em cartaz) e a casa paulista de espetáculos Bourbon Street, em uma espécie de convênio logístico a diluir custos na vinda de artistas estrangeiros.

Nuno Mindelis. J.J. Jackson. Maggie Green. Andy Summers encantou-se com o lugar, fotografando todos os ambientes internos após a passagem de som. O jazzista Stanley Jordan gostou tanto que veio duas vezes - certa ocasião, pediu apenas creme de ervilhas e suco de laranja. São muitas histórias, diverte-se João Antônio. "Com 2 metros de altura e meio gordão, o bluesman Magic Slim [1937-2013] preferiu o bar ao camarim. Temi que ele não tivesse condições de chegar ao palco após mais de meio litro de uísque e quase um maço de Marlboro, mas me enganei. Foram duas horas de um baita show e o cara ainda voltou para o balcão."

A proposta com foco em um público "adulto e contemporâneo" também abria espaço a talentos gaúchos - incluindo humoristas como André Damasceno e Jair Kobe - e nomes emergentes da cena musical brasileira. Praticamente todo o elenco da então novata gravadora Trama se apresentou no Abbey Road, incluindo o cantor Pedro Camargo Mariano, filho da porto-alegrense Elis Regina (1945-1982), assim como João Marcello Bôscoli, dono do selo. Detalhe: antes da mudança para o Centro do País, ela vivera dos 6 aos 18 anos em uma rua do bairro IAPI localizada a 10 minutos de caminhada dali.

Banda fixa

Uma das muitas formações da banda residente do Abbey Road, em frente à fachada do estabelecimento

Uma das muitas formações da banda residente do Abbey Road, em frente à fachada do estabelecimento

ACERVO JULIO FURST/REPRODUÇÃO/JC
Um dos primeiros folders de divulgação enaltecia em texto bilíngue português-inglês o cardápio de drinques, petiscos e pratos mais elaborados (apenas quatro de 150 itens aludiam ao título do disco que batizara o nome da casa), "tudo temperado por muita música ao vivo". Não bastasse o impacto positivo dos shows com artistas de fora da casa, a residente Abbey Road House Band garantia um bem temperado menu de pop, rock e soul. "Nas noites de quarta a sábado são servidas doces melodias, ritmos quentes e grandes porções de canções que fizeram e continuam a fazer história", poetizava o material.
Diferentes formações ao longo do tempo abraçaram talentos já tarimbados ou pedindo passagem. Rê Adegas. Ana Krüger. Lúcia Severo. Maurício Nader. Luiz Panta. Os irmãos André e Marco Azevedo. Léo Ferlauto. Aldo Ibanez. Edson Júnior. César Audi. Ângelo Primon. Giovani Berti. Henrique Morales. O próprio João Antônio em voz, violão e teclado. Canjas de bateria por Julio Fürst - que ainda ajudava a incrementar o repertório do grupo com sugestões de clássicos e novidades rodados com sucesso em seu programa de rádio, evitando que as apresentações caíssem na mesmice.
"O clima de trabalho era ótimo, com um público muito participativo", elogia a cantora e compositora Rê Adegas, 43 anos, crooner da turma em 2002-2006 e que teve ali a oportunidade de estrelar seu primeiro espetáculo solo, Querelas do Brasil, em homenagem a Elis. Hoje reconhecida nacionalmente e com uma discografia de dois álbuns e cinco singles, a artista recorda um momento tragicômico daquele período, quando o colega Luiz Panta se aproximou perigosamente da beira do palco, de microfone em punho: "Como que em câmera lenta, ele acabou estatelado sobre as mesas de alguns clientes e, logo após o estrondo, ressurgiu cantando como se nada tivesse acontecido".
Episódio, aliás, testemunhado pela advogada Jamile Marum, 61 anos, e o empresário Roque Bresolin, 68. Casal morador do bairro Chácara das Pedras, também na Zona Norte, eles fizeram do início ao fim do Abbey Road sua opção noturna preferencial, com mesa reservada no "gargarejo" ao menos uma vez por semana. "Música, atendimento, cenário e comida eram fora de série, adorávamos pratos como iscas de filé ao molho madeira e o peixe à belle meunière", aplaude Jamile. "Foi também um lugar onde fizemos amizades duradouras com os donos, funcionários, banda e outros frequentadores. Éramos quase sempre um dos últimos a saírem."
Para Bresolin (que elege como canção emblemática do pub o rock Another Brick On The Wall, gravado em 1979 pelo grupo inglês Pink Floyd), a experiência deixou um legado emocional extra: "Quando completei 50 anos, no dia 17 de agosto de 2005, fizemos uma festa fechada para 260 convidados, algo mágico e inesquecível. Sem contar que, trabalhando com uma empresa italiana do segmento de máquinas para curtumes, seguidamente eu recebia executivos da matriz europeia, então levava os caras no Abbey Road. Eles achavam o máximo e quando voltavam já saíam perguntando quando iríamos lá".
 

Travessia concluída

Julio Fürst (esquerda) e João Antônio Araújo, em foto de 2024

Julio Fürst (esquerda) e João Antônio Araújo, em foto de 2024

MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
O desenrolar de 2008 foi determinante para os rumos do pub da Plínio Brasil Milano. Após sete anos de uma travessia relativamente segura, a dupla Araújo-Fürst deparou com um inédito sinal amarelo: a perda do estacionamento privativo, requisitado para um projeto imobiliário. "Some-se a isso o fato de que já estávamos cansados de trabalhar todas aquelas madrugadas por semana, isso acelerou a decisão conjunta de passar adiante a operação", contextualiza Julio. Foi quando dois jovens empresários catarinenses surgiram com uma proposta de compra, concretizada no verão de 2009 - tal como os Beatles, a bem-sucedida aventura terminou em alta.
A nova dupla ali instalou uma filial do Drakkar Music Hall de Florianópolis, com som mecânico e shows (MPB, rock alternativo) depois substituídos por uma salada de pagode, sertanejo universitário e outros gêneros. O novo conceito manteve em destaque o ponto do Higienópolis até o fim da experiência, em outubro de 2010 - poucos lembram de sua substituta, a efêmera Casa Rio Show.
Progressivamente descaracterizado (sobretudo na parte interna), o imóvel jamais voltou a receber inquilinos do segmento: intercalado por placas de venda ou aluguel, nos últimos anos sediou academia, agência de modelos, estética, café e outros estabelecimentos, antes de sua mais abrangente reforma, entre maio e dezembro de 2023.
O resultado é um minicentro comercial de 65 metros-quadrados com café, grife de moda feminina, e-commerce de vestuário, salão de beleza e bronzeamento, mais clínica de psicanálise e auditório de eventos para cursos, palestras sobre empreendedorismo. "Tínhamos uma loja na avenida Azenha desde 2020 e migramos para esse espaço da Plínio Brasil Milano no fim do ano passado, a fim de oferecer a praticidade de um mix de serviços em um só lugar, além da possibilidade de crescimento pessoal e profissional para quem ali trabalha", conta o empresário André Xavier, 33 anos, coproprietário do café, junto com a esposa Larissa Santos, e administrador dos demais espaços.
Já para os idealizadores do Abbey Road, permanecem as boas lembranças de um trabalho gratificante, responsável por 25 empregos e até hoje lembrado com carinho pelo pessoal. "A gente se divertiu e ainda ganhou um bom dinheirinho. O César Audi (um dos músicos da casa) morou na Alemanha e disse que teríamos enriquecido se o nosso bar funcionasse na Europa", orgulha-se João Antônio, único dos dois a ter visitado o lendário ponto turístico dos Beatles em Londres. Após abrir no bairro Auxiliadora o John's Pub (2010-2012), ele hoje dá prosseguimento à trajetória de músico da noite. Julio Fürst, por sua vez, deu por encerrada a carreira no segmento mas sua voz inconfundível continua a serviço do rádio, com audiência fiel na 102.3 FM.
 

Atrações de destaque no Abbey Road

Logomarca do Abbey Road, espaço para música ao vivo que fez sucesso na noite da Capital

Logomarca do Abbey Road, espaço para música ao vivo que fez sucesso na noite da Capital

ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
 Andy Summers
 Stanley Jordan
 Magic Slim
 J.J. Jackson
 Maggie Green
 Nuno Mindelis
 Tradidional Jazz Band
 14 Bis
 The Fevers
 Miúcha
 Lô Borges
 Marcos Valle
 Toninho Horta
 Victor Biglione
 Dulce Quental
 Leo Jaime
 Derico
 Vanessa da Matta
 Cláudio Zoli
 Fernanda Porto
 Wilson Simoninha
 Max de Castro
 Pedro Mariano
 Jair Oliveira
 Preta Gil
 Ricardo Graça Mello
 Solon Fishbone
 Frank Solari
 Papas da Língua
 Totonho Villeroy
 Rafael Brasil
 

Convite para show de Claudio Zoli no Abbey Road (abril de 2002)

Convite para show de Claudio Zoli no Abbey Road (abril de 2002)

ACERVO JULIO FURST/REPRODUÇÃO/JC
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected].

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