Caroline Grüne, especial para JC *
"Ela estava feliz por desafiar o convencional". Esse é um trecho do filme The godmother of rock'n'roll, ou, em português, A madrinha do rock'n'roll. O documentário de 2014 fala sobre a história não tão conhecida da musicista Sister Rosetta Tharpe, que iniciou a carreira nos anos 1920 e influenciou gerações de músicos. A obra é recomendada pela baterista gaúcha Biba Meira, nas suas aulas de percussão.
Pensar na inventividade e na quebra de padrões das mulheres no rock também é pensar na história de Biba. Enquanto Tharpe se dedicou às cordas e à voz, a rockeira gaúcha optou pelas baquetas. Sendo uma das pouquíssimas artistas femininas na bateria em todo o Brasil nos anos 1980, ela foi escolhida, em 1987, como uma das instrumentistas do ano pela revista musical Bizz, mostrando que era possível uma mulher conquistar seu espaço no fazer musical e ser escolhida a maior baterista do País.
A artista em destaque no rock gaúcho passou por diferentes bandas, mas foi no DeFalla que encontrou com liberdade o estilo de tocar que a consagrou. "Bateria não é acompanhamento", diz ela, que vê no instrumento um potencial muito maior. Quando começou a tocar, Biba quase desistiu. Não se encaixava num som limitante, então decidiu seguir o seu próprio. "Só bumbo e caixa me incomodavam. Eu busquei outras referências: MPB, baião, rock, funk, samba, bossa nova - uma 'mistureba' de ritmos na bateria. O Brasil tem uma grande miscelânea de influências. É muito bom poder mesclar essas culturas", afirma.
Para ela, a bateria é parte importante da composição musical, e foi através da sua criatividade e inventividade que desenvolveu um estilo próprio. São mudanças de tons, compassos ímpares, polirritmias e "coisas esquisitas" (usando suas palavras), que destacam a instrumentista. Para Edu K, vocalista do DeFalla, a bateria de Biba não só marca o ritmo: "ela canta as notas".
Quando começou a se destacar no meio musical, se tornou comum escutar que Biba "tocava que nem homem". Foi só muito tempo depois que percebeu a conotação machista de alguns comentários. "Eu não toco que nem homem, eu toco que nem eu toco", diz. E foi no desejo de ser quem era e fazer o que queria que, mesmo antes de saber, a artista já era um ícone feminista. "Eu nunca pensei em parar. Naquela época, tinha que ter coragem para fazer isso. Eu sempre me impus", relembra.
Biba tem seu nome ligado a musicistas e bandas como Wander Wildner, Jimi Joe, Edgard Scandurra, Justine, Os Clássicos e Dolly. Por vezes, ela tocava em quatro grupos simultaneamente.
Com o passar das décadas, veio também o desejo de empoderar outras mulheres por meio da música. Em 2015, Biba fundou As Batucas, uma orquestra que reúne alunas de diferentes idades e níveis de musicalidade para se aventurarem no mundo da bateria e percussão. Pelo menos 1 mil "batucas" já passaram no que hoje também é uma escola de música para mulheres.
Seja no Mississipi de 1920, de Sister Rosetta Tharpe, ou no Rio Grande do Sul dos anos 1980, de Biba Meira, mulheres que conquistaram seu lugar na história a seu tempo e irreverência deixam legados importantes para a música.
Fora da curva
A baterista iniciou na Urubu Rei, com Flávio 'Flu' Santos, Carlos Eduardo Miranda, Castor Daudt e Júlio Reny
EVANDRO OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCAna Isabel Goelzer Meira (nome de batismo de Biba Meira), até tentou seguir uma carreira tradicional. Entrou na Graduação de Direito, aos 18 anos; depois pausou e iniciou a Licenciatura em História. Após um ou dois anos, decidiu que não queria "se encaixar": queria fazer algo que "despertasse paixão". Olhou para uma colega de classe e disse que iria largar tudo e fazer música.
Na família, apesar da presença constante de influências de diferentes ritmos, ainda não haviam instrumentistas. O pai era um devorador de discos - da música erudita ao jazz, ele apresentava uma extensa coleção de vinis. O gosto pelo rock veio dele e do irmão - com influências como Rush, Genesis, Led Zeppelin e The Who.
Imersa na predisposição pela música, ainda antes de começar a tocar, Biba já convivia no meio dos artistas. Entre os amigos, estavam Carlos Eduardo Miranda, (mais conhecido por Gordo Miranda), um agitador cultural, produtor musical e um dos mais atuantes músicos do cenário de rock alternativo do Rio Grande do Sul. Na época, Miranda era tecladista do grupo Taranatiriça.
Marcando presença nos ensaios da banda, Biba observava a bateria com olhos e ouvidos atentos e se encantava com as possibilidades que os tambores e caixas podiam trazer. Foi através dessas vivências musicais que ela escolheu se dedicar ao instrumento. Quando saiu da faculdade decidida a falar com a família, teve a sorte de ser bem recebida. O pai, seu grande apoiador, afirmou que se fosse essa sua decisão, ela iria estudar com os melhores professores. Entre os mestres renomados que lhe ensinaram o ofício, estão Kiko Freitas, Daniel Lima e Duda Neves.
Meses depois de aprender a tocar (em 1984), a convite de Miranda, Biba iniciou sua carreira nos palcos com sua primeira banda: a Urubu Rei.
A baterista mulher do rock gaúcho
Formação clássica do DeFalla tinha Castor Daudt, Biba Meira, Flávio 'Flu' Santos e Edu K
EVANDRO OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCFoi em um ensaio da Urubu Rei que Edu K conheceu Biba Meira e decidiu convidá-la para participar de um outro projeto. "Só o estilo dela já chamava atenção: com o cabelo assimétrico e as roupas new-wave, além de um talento que já apareceu logo que ela começou a tocar", conta o artista. Em 1985, a baterista entrou para sua "banda do coração": o DeFalla.
Além de Edu K (vocal), a primeira formação contava com Carlo Pianta (baixo). Depois, vieram Castor Daudt (guitarra), e Flávio "Flu" Santos, que substituiu Pianta no baixo - ambos eram ex-colegas de Biba na Urubu Rei. Essa se tornou a formação clássica do DeFalla. Ali, a instrumentista descobriu sua identificação musical.
A música nascia de forma orgânica e instintiva no grupo - cada um tocava seu instrumento e as canções iam surgindo. "A minha identidade 'baterística' nasceu ali. Eu tinha liberdade para criar e fazer o que eu queria." Com isso, a artista foi descobrindo seu estilo "livre, maluco e inventivo". "Eu gosto de tambores, sons quebrados, rolos, coexistência de sons em harmonia, mudanças de tons, compassos ímpares", pontua.
"Não era possível falar da música do DeFalla sem citar a bateria", recorda o antropólogo Emerson Giumbelli, coautor do livro Sem nenhuma direção: DeFalla, 1987. Para ele, a banda se diferenciava através da abrangência de diferentes referências, com destaques para sons afro-americanos, como funk e hip hop. Já a bateria de Biba tinha influências do rock clássico, disco music e King Crimson.
"Esse perfil cosmopolita trouxe visibilidade. Se ouvir o primeiro disco do DeFalla hoje, não soa parado no tempo", contextualiza Giumbelli. Ele conta que, naquela época, sempre perguntavam quem era o baterista. "Era algo muito vigoroso. E Biba aparecia, pequeninha, mas com essa força. Só ela tocava bateria daquele jeito", comenta. Para Giumbelli, uma faixa que destaca esse estilo único é Ideias primais. "Começa com uma coisa bem tribal até virar algo mais trepidante, quebrado e swingado", descreve.
Nos anos 1980, Biba gravou dois discos com o DeFalla, que "têm a sua cara". Lançados pelo selo Plug, da RCA, vieram os álbuns apelidados de Papaparty, em 1987, e It's fuckin' borin' to death, em 1988.
Edu K conta que os arranjos e estruturas desses álbuns eram muito baseados no que Biba tocava. "Era uma bateria tribal, com foco nos tambores e não nos pratos, com ritmos quebrados e raízes africanas. Ela criava essas batidas e a gente construía em cima. Tem muito dela ali". Para Edu K, uma das músicas que evidencia essa característica da bateria de Biba Meira é Não Me Mande Flores, composta antes do DeFalla.
Para além da influência clara da artista na música, Edu K destaca a influência que ela teve, também, na sociedade: "A Biba abriu o caminho com um facão para que outras mulheres incríveis pudessem surgir depois dela."
Através da sua presença musical e de sua forma de se portar e vestir, com seu cabelos curtos e looks punk, a baterista inspirava os jovens dos anos 1980 que queriam quebrar os padrões de machismo no Rio Grande do Sul. "Ela era um farol que iluminava tudo por onde passava e isso se reflete nela até hoje", conta Edu K. O preço, por vezes, era caro: "Eu não abria mão de tocar de minissaia, o que muitas vezes foi um sofrimento por conta do assédio. Mesmo assim, nunca deixei de meter a cara", relembra Biba.
A baterista viveu momentos icônicos com o DeFalla; mas, nas várias viagens do grupo, sentia falta de uma presença feminina. Dos colegas até os produtores de álbum, roadies, donos de gravadora… todos eram homens.
Foi só nos anos 1990, depois de muitas experiências sendo a única em diferentes grupos musicais, que Biba fundou a banda Dolly, formada só por mulheres. Naquele período, algo marcou a história da instrumentista: uma matéria que divulgava o grupo feminino tinha como título Música boa para os olhos. "Muitas coisas que pareciam naturais para nós (questões de desvalorização da mulher), percebemos como problemático anos depois. Nós éramos muito boas, e isso não tinha nada a ver com o físico", desabafa.
Uma batucada feminina
Idealizada pela artista, As Batucas conta, atualmente, com 40 integrantes
GIOVANI PAIM/DIVULGAÇÃO/JCLicenciada em Música pelo Centro Universitário Metodista IPA e especialista em Pedagogia da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Biba Meira sempre encontrou no ensino uma forma de repassar o gosto pela música. Porém, algo a incomodava nas escolas em que lecionava: enquanto os meninos tinham banda, as meninas só tocavam nas festas de final de ano. Um dia, ela resolveu mudar essa história. Assim, em 2015, fundou As Batucas - Orquestra Feminina de Bateria e Percussão. "Eu queria que elas ocupassem um espaço que também é delas", diz.
O primeiro grupo de percussão e bateria formado exclusivamente por mulheres em Porto Alegre começou com o objetivo de reunir aspirantes de todas as idades, independente do nível de iniciação musical. No primeiro dia, eram oito participantes. Na aula seguinte, já estava lotado. Rapidamente, o grupo ganhou notoriedade e se tornou um ícone na capital gaúcha.
Do rock ao samba, do baião à bossa nova, As Batucas são um encontro de ritmos e referências. Muitas dessas influências vieram de Biba. "Uma das coisas que sempre nos diferenciou foi tocar não somente um ritmo". Quem conta é Julia Pianta, filha de Biba e uma das regentes do grupo. Ela revela que, para além da diversidade musical, outras características da mãe guiaram o que se tornou uma parte da personalidade do coletivo.
"Ela é muito inquieta; gosta de improvisar. Se tem uma ideia, coloca em prática. Se quiser, segue um caminho; e, se for necessário, volta", conta. Esses instintos imprevisíveis e inusitados de Biba, tanto na hora da construção musical quanto para tomar decisões para a evolução de As Batucas, foram essenciais para que o grupo estivesse em crescimento exponencial, na avaliação de Julia.
Uma das inspirações inesperadas foi o uso de sucata. Biba buscou em diferentes fontes de reciclagem, materiais que tivessem potencial de fazer som. As Batucas mergulharam na investigação de timbres e de sons, trazendo novas percepções e usando esses objetos, já pintados e estilizados, nas suas apresentações. Para quem observa, é mágico ver o que seria considerado "lixo" servir de ferramenta para se fazer música. "Eu sempre procuro essas coisas mais inusitadas", diz Biba.
Atualmente, quando se apresentam, mais de 40 "batucas" sobem no palco. São mulheres de diferentes referências, idades e influências musicais, unidas ali pela vontade de tocar. "Para além da inquietude, ela tem uma força para botar a cara e fazer. Esse traço da personalidade dela foi repassado para mim, e também passou a integrar a essência de As Batucas", sinaliza Julia, que começou a tocar bateria com apenas três anos de idade - numa época em que seus pés nem podiam tocar o tambor, mas a influência da mãe já tocava alto.
Com o tempo, As Batucas deixaram de ser somente uma orquestra, como era na sua fundação. Hoje em dia, o projeto também é uma escola de música, com aulas de percussão, pandeiro, vocal e até dança. São diferentes possibilidades de vivência artística que se encontram na rua Miguel Tostes, no Bom Fim - um clássico bairro de efervescência do rock gaúcho, onde as gurias se encontram para tocar.
Após os desafios impostos pela pandemia de Covid-19 e pelas enchentes no Estado, que atingiram em cheio a classe artística, Julia relembra o que aprendeu com a mãe: "Não temos certeza do que vai acontecer, mas provavelmente vai dar certo. Se não der, estamos em um processo de aprendizado e vamos trilhar esse caminho com coragem e paciência", afirma.
Sem expectativas de agradar
Nos anos 1990, Biba fundou a banda Dolly, formada somente por mulheres
EVANDRO OLIVEIRA/REPRODUÇÃO/JCPassando por incontáveis bandas (ela mesma já não sabe quantificar) e contribuindo para os trabalhos de diferentes músicos, foi só em 2018 que Biba Meira resolveu investir em um álbum solo. "Depois de tanto tempo de carreira, eu já não ligava mais para a crítica ou para o fato de os compositores serem, em maioria, homens. Eu tinha muitas ideias guardadas e resolvi que devia gravar algo meu", revela.
A artista se despiu do medo. Naquele momento, já não era mais sobre a expectativa que se tinha nos anos 1980 e sobre vender (ou não) discos. Ela mesma já via na palavra sucesso uma "certa agonia". Acostumada a criar antes da era dos streamings, já tinha superado há tempos a necessidade de fazer música para tocar na rádio.
Mesmo sem expectativas de agradar, Suave coisa nenhuma rendeu à baterista o troféu de Melhor Instrumentista na categoria Instrumental do Açorianos de Música, o prêmio mais importante do gênero do Rio Grande do Sul.
Depois, em 2021, veio Microscópicos ritmos de uma máquina de escrever. De maneira mais experimental, em meio à vivência pandêmica, Biba utilizou os sons da máquina de escrever junto com sons de uma Porto Alegre um pouco mais silenciosa para fazer música. Foram os galopes dos cavalos, a montanha russa do Parquinho da Redenção, o elevador do prédio e outras influências sonoras que fizeram parte da criação artística.
Além disso, Biba chamou vários parceiros, desde os ex-integrantes do DeFalla (Edu K, Flávio Santos e Castor Daudt) até Negra Jaque, Gutcha Ramil, Nina Nicolaiewsky, Julia Pianta, Raquel Pianta e Arthur de Faria. Mais de 20 músicos deram suas contribuições para a construção do disco.
Para a baterista, criar música em conjunto é um espaço para a liberdade artística. Da mesma maneira que se descobriu em bandas, mas com espaço para se desenvolver, gosta de chamar nomes que admira para colaborar e preza que cada um possa trazer algo de si.
Naquele contexto pandêmico, uma maneira de se comunicar era essa: ceder parte de uma criação, abrindo espaço para os parceiros contribuírem com novas ideias.
Através dessas produções, se construiu um disco que marca um momento histórico através de importantes encontros para a música gaúcha.
Sozinha, com bandas, com colaborações ou através de As Batucas, Biba Meira segue experimentando e criando a música a partir da sua criatividade e inventividade, consolidando seu legado na cena gaúcha e nacional.
Discos com o DeFalla
Rock Grande do Sul (1985)
DeFalla - Papaparty (1987)
DeFalla - It's fuckin' borin' to death (1988)
Monstro (2016)
Discos solo
Suave coisa nenhuma (2018)
Microscópicos ritmos de uma máquina de escrever (2021)
* Caroline Grüne é jornalista formada pela Puc/RS, com passagens pelo Jornal do Comércio e Correio do Povo. Atualmente, trabalha como social media na República – Agência de Conteúdo.