"Porto Alegre está meio que dividida em matéria de casas noturnas. Há um grupo importante no Moinhos de Vento e Auxiliadora, outro no espaço intermediário entre Cidade Baixa, Bom Fim e Santana, mas a maior densidade de boates, barzinhos e restaurantes fica mesmo na Getúlio Vargas. Sugiro um passeio por essa avenida, que oferece opções a todos os gostos. Começa-se pelo Carlitus, ideal para se beber um uísque tranquilo com a mulher amada, jantar, bater papo e dançar." O relato do jornalista Danilo Ucha (1944-2016) era certeiro, há quase 40 anos: poucas áreas da cidade concentraram boemia tão intensa quando a via que corta de ponta a ponta o Menino Deus.
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- Alambique's, um piano-bar cheio de bossa na Independência
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Esse mesmo cenário estaria hoje completamente deserto após o cair da noite, não fosse a heroica resistência de dois ou três bares e uma loja de conveniência em posto de combustíveis. O processo de esvaziamento - pelos mais sortidos motivos - nos últimos anos contrasta com um passado de luminosos piscantes em ambas as calçadas ao longo das décadas. Scalaris, Chipp's, Viva Maria, Estrela Cadente, Rekint, Velha Guarda, Cigano's, Venezianos, Cenário, Fascinação, Sherlock's, Bar 1, Patamar, Noblesse, Barbaridade, Companhia dos Sanduíches, Blue Eyes, San Ciro, Âncora, Pimplus, La Boheme, Choupana, Pippo's, La Boheme, W-588, General De Gaulle, Bordô, Taco Pub.
E o já mencionado Carlitus. Localizado a 100 metros da avenida Erico Verissimo, o estabelecimento se manteve em evidência de 1978 a 2011, orgulha-se o empresário aposentado Ozório Dorneles, 81 anos, principal personagem do lugar. Natural de Itaqui e criado em São Borja (Fronteira-Oeste), ele desembarcara na capital gaúcha em 1963 para deflagrar, da estaca zero, uma exitosa trajetória nos negócios. Foi feirante, chofer, dono de pequena frota de táxis e pecuarista, até investir no ramo noturno em sociedade com o irmão do meio, Orestes, um ex-funcionário de supermercado e cujas experiências como garçom o haviam levado até o litoral paulista.
O primeiro capítulo da nova empreitada, em 1968, foi viabilizado pela soma de economias a um empréstimo bancário para a compra do bar Vizcaya, situado nos altos da avenida Protásio Alves (nº 3.185) e que, na sua primeira fase, tivera como dono o estudante de Direito e empresário José Carlos Athanásio junto com sua noiva e futura esposa, a ex-miss Universo (1963) Ieda Maria Vargas. O retorno financeiro inspiraria os irmãos Dorneles a enfileirar, no final da década seguinte, uma sequência de espaços boêmios em zona do bairro Santana mais próxima à Cidade Baixa, cataloga o hoje aposentado Orestes, 79 anos.
"Aquela região era uma das 'barlândias' da cidade na época, assim como as avenidas Protásio Alves e a Cristóvão Colombo, então investimos na abertura da casa Samantha (1978) no número 367 da rua Santana. Em seguida, foi a vez do bar Barcelona (depois Newport) na Jerônimo de Ornelas, 222. No mesmo trecho, também acabamos instalando, lado a lado, a boate Summeriu's e depois o bar Arcabuz (cuja lista de donos anteriores chegou a incluir, durante breve período de 1984, o então jogador gremista Renato Portaluppi). Algumas duraram bastante tempo, sempre com público fiel e administradas com a ajuda do Jorge Dorneles, nosso irmão caçula."
Luzes da cidade
Figura central no sucesso do Carlitus, Ozório Dorneles procurou manter o atendimento exclusivo a casais como uma das características permanentes da casa noturna
/ACERVO CLEUSA DORNELES/REPRODUÇÃO/JCA antena direcionada para novas oportunidades também acabara apontando para um ponto do mapa a um quilômetro e meio de distância, em meio a um dos pórticos imaginários de ingresso no Menino Deus. Fã de Charles Chaplin, o empresário Paulo Ribeiro não era do ramo, mas, em maio de 1978 - cinco meses após a morte do gênio - fundara no número 94 da Getúlio a boate Carlitus, de logomarca e decoração interna em preto-e-branco com pôsteres alusivos ao cinema mudo. Quase um ano transcorrera sem que o endereço embalasse e ele estava decidido a partir para uma aventura no garimpo de Serra Pelada, assim como seu ídolo em A Corrida do Ouro (1925).
O ponto à venda foi a deixa para os manos rebobinarem aquele filme em 14 de maio de 1979, paralelamente às atividades que o tornaram conhecidos no bairro Santana. Com maior capricho nos serviços de restaurante, reforço na divulgação e outros ajustes (a cor vermelha em tapetes, estofados e outros itens, por exemplo), manteve-se a estética do espaço comercial de 192 metros quadrados e mezanino no primeiro dos três andares de um prédio misto construído apenas cinco anos antes e que hospedara, em seus primórdios, o bar-chopp Hobby Show. O atendimento exclusivo a casais surtiu efeito, com uma frequência constante e destaque permanente nos jornais e guias noturnos.
"Com exceção de ocasiões como eventos particulares, a casa manteve a exigência até o fim, mas não foi a única... Ali mesmo na esquina com a Ipiranga tinha a Velha Guarda, comandada pela Tânia Silva, sem contar outras tantas em Porto Alegre", contextualiza Ozório, que, na metade da década seguinte, desfez a sociedade com Orestes para tocar sozinho o Carlitus. Anúncios de "ambiente requintado", "bom gosto" e "alto nível" não impediam eventuais episódios fora da curva. Ele se diverte com a malandragem de um cliente que dançava na pista com sua amante ao ser alertado sobre a presença da esposa do lado de fora, pronta para dar o bote.
"O sujeito foi rapidamente conduzido por um segurança até a saída de emergência nos fundos e pegou um táxi para casa a tempo de chegar antes da 'titular'. Sem conseguir o flagrante após ser finalmente autorizada a cruzar a portaria, ela pegou o rumo de casa, onde já o encontrou sob as cobertas, 'cansado do trabalho'. Intimado sobre o fato de seu automóvel estar em frente à boate, o malandro alegou ter emprestado a um amigo. Enquanto isso, um garçom incumbido de estacionar o carro em uma garagem próxima para aliviar a situação, acabou encontrando no porta-luvas uma pasta com 30 mil cruzeiros, devidamente devolvidos em momento oportuno".
Ambiente interno (em foto de 1989) era voltado ao conforto dos casais
ACERVO CLEUSA DORNELES/REPRODUÇÃO/JCHistórias à parte, a receita de sucesso era relativamente simples, porém temperada por trabalho duro, com poucas horas de sono. Funcionando de terça a domingo na faixa das 19h às 4h - jornada semanal impensável nos padrões atuais da noite porto-alegrense - o estabelecimento apregoava seus atrativos. Música mecânica variada para um ambiente "divertido e romântico". Estacionamento conveniado e com vigia. Ar-condicionado central. Lareira no inverno. Bebidas a preço justo. Cardápio de pretensões internacionais (incluindo peixes, frutos-do-mar e o concorrido Filé à Carlitus), a cargo de Dona América, cozinheira desde o período do Vizcaya.
A trajetória que fez do ambiente um dos preferidos de boa parte dos enamorados na faixa dos 30 aos 50 anos foi acompanhada à distância pela aposentada Cleusa Dorneles, 74 anos. Esposa de Ozório entre 1973 e 2015 (são frutos da relação os filhos Rodrigo e Cíntia, ambos advogados e nascidos em tempos pré-Carlitus), a então pedagoga e diretora de escola foi poucas vezes ao local, mas compartilha um fato curioso: "O lucro do próprio negócio e da criação de gado em uma propriedade no Interior permitiu a compra da loja, depois os demais andares, que deixaram de ser residenciais para dar lugar a escritórios. Com isso, a boate se livrou das reclamações de barulho dos inquilinos".
Tempos modernos
Ozório Dorneles, dono do Carlitus, curtindo a noite na casa noturna que marcou a boemia da Getúlio Vargas
ACERVO CLEUSA DORNELES/REPRODUÇÃO/JCO cuidado permanente com a qualidade e o espírito de camaradagem ajudavam o número 94 da avenida Getúlio Vargas a resistir a planos econômicos, intensa concorrência, mudanças de comportamento e outras variáveis, cruzando a década de noventa com sapatos lustrados e maquiagem em dia, com mudanças sutis na decoração. Pista de luzes automatizadas em contraste ao aconchegante mezanino à luz de velas. Substituição dos pôsteres por painéis de vidro jateado com imagens de antigos filmes de Chaplin. "Na penumbra, o ambiente ideal para quem não gosta de se mostrar", brincou o Guia L&PM de Porto Alegre em sua edição de 1997.
"Ainda existia na cidade uma programação bem interessante para se divertir acompanhado, afinal, nem todo mundo estava à procura de alguém", relembra a auditora contábil Cristiana Azevedo, 53 anos, frequentadora assídua com o marido Vinícius Teixeira desde a fase do namoro firme, no início da fase adulta. "Muitos casais 'sumiam' ao colocar uma aliança no dedo, mas somos do time que não deixou de sair à noite depois do casamento. E o Carlitus era bacana por ser mais tranquilo, sem barulheira, espaço superlotado e aquele clima de 'caçada' que estressava as mulheres solteiras que só queriam dançar ou bater papo".
Encarnação como Carlitus Music Bar era voltada à música ao vivo
CARLITUS MUSIC BAR/FACEBOOK/REPRODUÇÃO/JCA chegada do novo milênio, porém, trouxe um declínio progressivo no movimento. Para compensar, despesas passaram a ser cobertas pela venda de patrimônio pessoal. "A situação também se complicou quando o estacionamento privativo, em terreno da prefeitura quase na Erico Verissimo, teve o aluguel reajustado para valores impraticáveis, o que fez a casa perder um diferencial importante para os clientes", acrescenta a ex-esposa Cleusa. Havia também o processo de decadência que marca o ciclo da maioria das casas noturnas - tal como no cinema mudo de Chaplin e seus contemporâneos, depois da invenção do filme falado.
No primeiro semestre de 2011, Ozório avaliou que, após 32 anos à frente do negócio, sua contribuição para a boemia da cidade já estava mais do que suficiente. O longa-metragem ganharia continuação meses depois, com o arrendamento do local a um grupo de jovens que redirecionou o foco para shows de rock, sob a placa Carlitus Music Bar e novo logotipo: em vez do icônico rosto de bigodinho e cartola, uma releitura mesclando a desengonçada silhueta do personagem vagabundo a soprar uma flauta transversal, como se fosse o escocês Ian Anderson e sua banda Jethro Tull.
No primeiro semestre de 2011, Ozório avaliou que, após 32 anos à frente do negócio, sua contribuição para a boemia da cidade já estava mais do que suficiente. O longa-metragem ganharia continuação meses depois, com o arrendamento do local a um grupo de jovens que redirecionou o foco para shows de rock, sob a placa Carlitus Music Bar e novo logotipo: em vez do icônico rosto de bigodinho e cartola, uma releitura mesclando a desengonçada silhueta do personagem vagabundo a soprar uma flauta transversal, como se fosse o escocês Ian Anderson e sua banda Jethro Tull.
Última foto da fachada do Carlitus, já pelos idos de 2011
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCDepois o endereço teve o Open Bar e Velvet como inquilinos entre 2015 e 2017, ao som de funk carioca e música eletrônica. Enquanto uma escola de música e outra de dança permaneciam nos conjuntos comerciais logo acima, o antes disputado espaço no térreo ficou vazio até o prédio ser adquirido, em 2022, pelos empresários Luís Fernando e Henrique Giovanaz, de tradicional família do segmento de churrascarias. O segundo se associou à esposa para fazer do térreo o espaço de eventos Wish, plano transferido para os próximos meses devido à enchente que promoveu, em maio, um triste abraço da água do Guaíba ao Menino Deus.
Ozório Dorneles, por sua vez, curte um merecido descanso no mesmo sobrado do bairro Boa Vista (Zona Norte) onde mora desde os tempos de protagonista da noite. Sorridente e modesto ao fazer um balanço de sua contribuição para a vida social da cidade, ele não perde a piada. "Aquela época foi bem bonita, mas de trabalho duro para mim, praticamente sem folga. Para os clientes, um tempo de muita diversão e romantismo, com um detalhe: se ninguém circulava sozinho no Carlitus, a não ser eu mesmo e os funcionários, então nenhum coroa pode contar vantagem de que conheceu namorada, noiva ou esposa lá dentro."
Ozório Dorneles, por sua vez, curte um merecido descanso no mesmo sobrado do bairro Boa Vista (Zona Norte) onde mora desde os tempos de protagonista da noite. Sorridente e modesto ao fazer um balanço de sua contribuição para a vida social da cidade, ele não perde a piada. "Aquela época foi bem bonita, mas de trabalho duro para mim, praticamente sem folga. Para os clientes, um tempo de muita diversão e romantismo, com um detalhe: se ninguém circulava sozinho no Carlitus, a não ser eu mesmo e os funcionários, então nenhum coroa pode contar vantagem de que conheceu namorada, noiva ou esposa lá dentro."
Getúlio Vargas boêmia ao longo do tempo
Idealizador do Carlitus, Ozório Dorneles curte o calor da lareira, em foto de 1981
ACERVO CLEUSA DORNELES/REPRODUÇÃO/JC- Scalaris
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- Point Beer
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected].