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Publicada em 23 de Maio de 2024 às 18:38

Escritor Charles Kiefer, agora dedicado à Kaballah: "na literatura, desejo ser esquecido"

Distanciado da literatura, Charles Kiefer encontrou na Kaballah um novo caminho

Distanciado da literatura, Charles Kiefer encontrou na Kaballah um novo caminho

/THAYNÁ WEISSBACH/JC
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Rafael Gloria
Charles Kiefer foi, durante anos, um dos nomes mais destacados da literatura gaúcha. Caminhando na chuva teve sucesso nacional de vendas, obras como Valsa para Bruno Stein foram levadas ao cinema, e o escritor acumulou honrarias, como três prêmios Jabuti. Não era exagero dizer que Kiefer era o expoente da literatura gaúcha dos anos 1980-90, visto como nome promissor na terra de gigantes como Mario Quintana e Erico Verissimo.
Charles Kiefer foi, durante anos, um dos nomes mais destacados da literatura gaúcha. Caminhando na chuva teve sucesso nacional de vendas, obras como Valsa para Bruno Stein foram levadas ao cinema, e o escritor acumulou honrarias, como três prêmios Jabuti. Não era exagero dizer que Kiefer era o expoente da literatura gaúcha dos anos 1980-90, visto como nome promissor na terra de gigantes como Mario Quintana e Erico Verissimo.
Há alguns anos, porém, tudo mudou. Abandonou a literatura, tanto a escrita ficcional quanto à dedicação ao ensino - como ele mesmo diz, foi se retirando da cena aos poucos. Ele raramente dá entrevistas, mas depois de reiterados pedidos acabou aceitando conversar em uma tarde chuvosa no final de abril. "A literatura para mim não tem mais importância", admite. "Mas não renego. Tanto que estou aqui contigo. Confesso que eu cedi por uma questão pessoal: Tu me aguentou como professor e pode me aguentar agora como entrevistado." Kiefer se refere ao fato de que fui seu aluno nas famosas oficinas literárias que ele criou no início dos anos 2000 e que reuniram muitos aficionados por literatura.
Kiefer também não esconde seu maior interesse e o que relata ser a sua verdadeira missão: a Cabala, ou como ele prefere, em inglês, a Kabbalah. "Na vida eu quero ser lembrado como professor de Kabbalah. Como alguém que ajudou as pessoas a fazer a iluminação", esclarece. Atualmente, ele conta com vários alunos, inclusive em outros países. Sua base de trabalho é a Casa do Mikvê, no bairro Petrópolis, em que ele e a esposa, Marta Tejera, reúnem grupos de interessados para difundir essa sabedoria. "Trata-se de uma ciência prática que te ensina como viver melhor. A Marta diz: é um método de administrar a vida. Não tem nada de acreditar nisso ou naquilo", resume.
No meio da conversa, sua filha mais nova aparece. Anna tem 5 anos e quer ser confeiteira. O semblante no rosto de Kiefer fica mais animado. "Estou escrevendo uma história infantil para a Anninha. Um poema em sextilha maior. Porque para a primeira e para a segunda filha eu fiz dois livros infantis. Aí a Marta me disse, e agora? Tem que fazer. Senão ela vai se sentir magoada", diz.
Durante nossa conversa, ele revela ter escrito mais de 40 livros em gêneros como poesia, ficção e também de kabbalah. Todos ainda não publicados. E também uma autobiografia. "Ela se chama Suor no Rosto porque o que eu mais fiz na vida foi trabalhar. Então eu referencio a Bíblia, lá no Gênesis: no suor do teu rosto comerás o teu pão", diz. Todos esses livros só serão publicados após a sua morte. Mas por quê? "Eu não quero saber a opinião das pessoas. Antes eu gostava. Agora não dou bola. Sou feliz sem depender disso", aponta.
É impossível falar da trajetória de Charles Kiefer sem citar a experiência de quase morte (EQM) pela qual ele passou em 2006, após complicações em uma cirurgia. "Todo mundo que tem uma EQM muda completamente de vida. Porque antes a pessoa vivia de forma errada. Eu mesmo. Tu assumes uma outra responsabilidade", diz. A partir dessa experiência que a Kabbalah foi introduzida como sua nova missão.
Mas há resquícios literários na fala de Charles Kiefer, no modo como ele descreve as situações, as referências que traz para explicar ideias, por exemplo, como quando reflete sobre a importância do tempo para o reconhecimento do escritor ou do artista. "Quem vai definir se vai ser escritor ou não? É a história. Não é o professor, não é o jornalista, não é o sistema. Pensa bem o quanto o Kafka… Quantos escritores maravilhosos não viram os seus livros publicados?", afirma.
Para ele, a literatura é nada mais do que um relicário de acontecimentos do passado. "A questão agrária brasileira, do Rio Grande do Sul. Por exemplo, Valsa para Bruno Stein. É como funcionava no século XX o pré-capitalismo agrário. Só. É isso que está lá. Então, lá no futuro, quando alguém quiser estudar isso, onde ele vai? Ele vai no relicário. Então, vê, se isto for importante para o futuro, aí o meu livro volta a ser importante. Se não for, ninguém vai ler. Mas como eu gostaria de ser lembrado na literatura? Na literatura, eu gostaria de ser esquecido."
 

Uma oficina democrática

Para Charles Kiefer, período de sucesso como escritor é "uma época que já não faz mais sentido"

Para Charles Kiefer, período de sucesso como escritor é "uma época que já não faz mais sentido"

/THAYNÁ WEISSBACH/JC
Charles Kiefer também ficou conhecido por manter uma oficina de escrita em que se abordava as nuances do trabalho literário, analisava-se textos de autores consolidados e os participantes liam e comentavam as produções uns dos outros. Atualmente, há muitas iniciativas desse tipo, mas, no fim do século passado, a oferta era muito menor.
A oficina também publicava livros. "Eu tive muitos alunos. Lembro quando publicamos o 101 que contam lá no Opinião. Nós fechamos para o lançamento. Vendemos nessa noite 980 exemplares. Estimo que passaram cerca de 5 mil pessoas lá, entre convidados e interessados. Teve peça de teatro, banda, e ficamos até de madrugada vendendo livro", conta. Ao total, foram cinco obras lançadas nesse formato, com os textos dos alunos.
Ele conta que volta e meia procura na internet para ver se encontra algum exemplar, mas a maioria está esgotada. "É algo que, para um autor novo, é importante. E eu criei um padrão que, segundo alguns, destruiu a literatura do Rio Grande do Sul", diz. Perguntando o porquê, ele diz que, na seleção dos contos para as antologias, não havia exatamente um julgamento. "Quem estabelecia o juízo era o próprio autor: se a pessoa quisesse publicar, publicava. Então, tem contos ruins nesses cinco volumes. Mas criei um sistema super democrático. Quem decidia se publicava ou não era o aluno. E aí me criticaram muito. Porque a qualidade era muito desparelha. Tinha contos maravilhosos e outros ruins. Mas a ideia era essa. Era a pessoa ter o nome na capa", explica.
A escritora Monique Revillion, vencedora do Açorianos de Literatura na categoria Contos, é uma das autoras que participou durante muito tempo das oficinas. "Foram tempos ótimos. O Charles costumava ser rigoroso, mas era um privilégio contar com a franqueza, generosidade, experiência e vasto conhecimento dele. Sempre foi muito enriquecedor sentir 'ao vivo' como o texto era recebido e como impactava cada um, perceber seu ritmo, ver evidenciadas suas qualidades e defeitos."
Para sua escrita, ela acredita que foi uma experiência fundamental. "E nesse processo de também escutar, refletir e formar opiniões sobre os textos alheios crescíamos juntos, era uma intensa troca e aprendizagem. Ali, aprendemos especialmente a humildade, eu creio, que escrever exige trabalho, retrabalho, esforço, renúncias, um caminho de muita leitura, reflexão e estudo", aponta. Monique tem muitas saudades daquela época, principalmente na fase em que a oficina aconteceu na Palavraria, importante espaço literário e cultural de Porto Alegre, que fechou suas portas em 2016.
O escritor e editor Paulo Tedesco conta que Kiefer foi muito importante em sua trajetória, tanto que acabou até se envolvendo nos livros lançados pela oficina. "Acabei indo para a editora Nova Prova e com o tempo assumindo também a gestão das obras 101, 102 que contam etc. Portanto, posso dizer que a oficina também me ajudou muito na formação como editor, à medida que me aproximou da gráfica e também me mostrou o outro lado do autor."
Atualmente, Tedesco toca a Consultora Editorial e é com ela que lançou o livro Geração CK 2000, que traz textos de 17 autores que passaram pelo curso. "Na maioria são contos inéditos, alguma poesia. Foi legal, nos reunimos e levou quase um ano entre esperar a entrega dos textos e todo o resto do trabalho. No fim, consegui dar a volta e foi um sucesso, vendemos bastante, está praticamente esgotado e já encaminhei uma nova tiragem para posicionar o livro", diz.
Charles Kiefer revela que ficou contente com a homenagem. "Eu tenho um carinho muito grande por todo mundo que me acompanhou naquela época. Quando o Paulo me procurou, eu disse que não fazia o menor sentido. Na primeira hora eu recusei. Conversando com a Marta, mudei de ideia. Não pelo livro, não pelos textos, mas pelos alunos. É o jeito deles se reencontrarem. Mas uma coisa eu avisei: eu não ia no lançamento. Eles queriam que eu fosse. Acho que a Marta foi e me representou. É uma época da minha vida que já não faz mais sentido", comenta.

Leituras e influências

charles kiefer durante a feira do livro de porto alegre de 2014

charles kiefer durante a feira do livro de porto alegre de 2014

/CLAITON DORNELLES/ARQUIVO/JC
No final de 2023, o Instituto Estadual do Livro (IEL) lançou novos fascículos da série digital Escritores Gaúchos, e um deles homenageia Charles Kiefer, trazendo fotos, entrevistas e trechos de obras que resgatam a sua trajetória. Entre os relatos estão os de autores como Antônio Hohlfeldt, Paulo Nascimento e Altair Martins. O livreto digital está disponível para download gratuito no site da instituição.
Kiefer diz que não acompanha a literatura contemporânea brasileira. "Eu não leio mais ficção. Mas leio poesia e leio biografias de escritores, de místicos, de santos, de políticos. E muito livro de teoria cabalística. A minha biblioteca tem quase 10 mil exemplares de livros do Kabbalah e eu não li a maior parte deles. É difícil conseguir esses livros, além de caros", revela. No momento dessa entrevista, ele estava lendo O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler.
Mesmo afastado da área, ele não esconde a admiração por escritores e períodos literários. "O Altair Martins para mim é o melhor escritor do Brasil, em matéria de texto, de arte literária. Outro que também é um gigante é o Sérgio Faraco. Daqueles escritores que tem o famoso tour de force. Tudo bem, devem ter escritores por aí que eu não conheço e que devem ser bons, mas eu não acompanho e portanto não posso falar."
Charles Kiefer foi, durante muito tempo, professor do curso de Letras e da pós-graduação da Pucrs, lecionando e orientando pesquisas na área da teoria da literatura e da escrita criativa. E ele sabe como o trabalho da universidade foi e é uma referência na área no Brasil. Kiefer teve também uma passagem pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, na qual estudou Escrita Criativa. "Eu sou fã da literatura americana, especialmente daqueles escritores e contistas. Fiz uma tese de doutorado sobre isso. Aqueles contistas que vão de 1820 até 1870. Que escritores maravilhosos. O Poe. O Hawthorne. A literatura norte-americana do século XVIII, XIX e XX até os anos 1960", enumera.
O escritor e professor do curso de Letras da Pucrs, Arthur Telló, conta que Kiefer participou de sua banca de mestrado, tanto na qualificação como na defesa, também na mesma instituição. "E ele foi muito generoso e ajudou muito na história que eu estava escrevendo. Ele até foi sincero: disse que não estava achando ela muito bem escrita, mas tinha gostado dos protagonistas e da tensão. Então eu consegui terminar aquele livro graças às sugestões dele", conta. Telló considera O Pêndulo do Relógio (que ganhou o Jabuti em 1985) a melhor obra de Kiefer. "É uma novela ligeira, muito bem escrita, forte e tensa, acho que é uma das melhores obras do gênero novela da literatura brasileira."
Reginaldo Pujol, autor de Não, não é bem isso e Só faltou o título e doutor em Escrita Criativa, foi aluno de Kiefer entre 2002 e 2011. "Charles é uma influência decisiva na minha carreira e na vida. Citar todos os marcos aqui seria impossível. Mas os dois primeiros anos de oficina foram uma espécie de alfabetização literária, aprender a ler com profundidade os textos de colegas, os livros que eram indicados, os livros que descobria. Charles viu um escritor em mim antes que eu visse", revela.
Ele conhecia a obra do Kiefer por ler no colégio o Quem faz gemer a terra, que lhe chamou muito a atenção. "Eu tinha sido testemunha (infantil) dos eventos que inspiraram o livro. Eu estudava no Colégio Sevigné, a duas quadras da Praça da Matriz, a duas ou três quadras de onde houve o confronto entre o agricultor e o policial militar. E depois fui ler esse livro que, na época, eu não tinha ferramentas para dimensionar, mas que, mais tarde, fui reler, pensando no gesto radical que foi, na sociedade gaúcha, conservadora e patrimonialista como ela, propor uma novela que assume o ponto de vista do agricultor sem-terra", aponta. Pujol também salienta que o trabalho ensaístico e teórico de Kiefer também devem ser mencionados, principalmente as obras Para ser escritor e A poética do conto.
 

Mudança de vida

Charles Kiefer relembra experiência de quase morte:

Charles Kiefer relembra experiência de quase morte: "Foi chocante. Quando falavam de espíritos, eu tirava sarro"

/THAYNÁ WEISSBACH/JC
Em 2006, Charles Kiefer sofreu uma experiência de quase morte (EQM) que alterou toda a sua percepção e perspectiva sobre a vida. Há um relato estendido e impactante dele em um canal no Youtube chamado Afinal, o que somos nós? e que já tem mais de 220 mil visualizações.
Resumidamente, o escritor teve um problema derivado de uma cirurgia e foi para a UTI no Hospital São Lucas, da Pucrs. No relato, ele conta que reencontrou um amigo, morto há 20 anos na época, e que afirmou que seria seu guia. Esse amigo disse que, quando Kiefer voltasse a vida, deveria fazer três coisas - entre elas, formar um grupo de Kabbalah. "Quando eu tive essa EQM uma enfermeira notou que eu falava uma língua estranha enquanto dormia. Aí eu disse 'faz o seguinte, grava'. E ela gravou. Era aramaico. Eu nunca tinha ouvido falar aramaico. Eu nunca tinha estudado aramaico. Como é que explica isso?", diz. Kiefer ficcionaliza parte desse momento complicado de sua vida no livro Dia de matar porco, de 2014.
Mas ele não saiu de uma hora para outra da vida de escritor. Ao contrário, foi um processo lento em que foi entendendo sua nova missão. "Foi chocante. Eu era ateu. Quando falavam de espíritos, eu tirava sarro. Eu dizia que nem meu avô: Morreu, fedeu. Quando tu morrer, vai desmanchar, vai virar natureza. As almas não existem. E aí eu morro e encontro um amigo morto há muitos anos. E ele me diz, olha, eu estou aqui para te ajudar, para te ensinar. E começamos uma longa conversação", confessa.
Ao mesmo tempo em que entrava cada vez mais na Kabbalah, começou também a não ver mais sentido nas aulas da universidade e das oficinas literárias. "Como eu passei a ter muitos alunos de Kabbalah, fui substituindo as oficinas e as aulas oficiais da Pucrs. Até o momento que eu e a Marta, que também é professora, tivéssemos um número suficiente de alunos. Não tem Fundo de Garantia. Não tem férias. É o preço da liberdade", diz.
Ele comenta que também estava cansado das posturas de alguns alunos na universidade. "Lembro do caso de uma professora de uns 75 anos. Uma gênia. Um dia ela passou chorando por mim. Fui lá e perguntei o que aconteceu. Era o primeiro dia de aula. Um aluno levantou no meio da sala e falou: 'A senhora não se aposentou ainda? Por que não morre de uma vez? Velha caquética'. E ela saiu da sala de aula chorando. Naquele dia virou uma coisa dentro de mim. Eu pensei que não iria permitir que um aluno de 20 ou 21 anos fizesse uma coisa dessas comigo. E aí foi que comecei a me encaminhar."
Kiefer diz que os alunos da oficina literária e da Kabbalah são muito diferentes. "O aluno de literatura está preocupado com o próprio ego. E esses alunos estão preocupados com a alma. Não estão interessados no 'meu, meu, meu, meu'", diz. Ele acentua que a Kabbalah não é uma religião, e sim uma ciência da espiritualidade. "Ela aceita todas as outras. Eu tenho alunos judeus, muçulmanos, cristãos, ateus, budistas, xintoístas. E tenho alunos que não são nada: não estão interessados em formalidades religiosas. Então é um público completamente distinto, muito qualificado. E tem uma relação de muito carinho e respeito pelo mestre. Que é diferente da educação. Então assim, eu sou o maguid deles, eu sou o instrutor espiritual. Eu não sou professor, no sentido de que eu vou ensinar alguma coisa", explica.
Durante essa entrevista, Charles Kiefer parou em alguns momentos para tomar remédio. Ele havia tido alta há poucos dias do hospital, onde ficou mais de 30 dias internado devido a mais um procedimento cirúrgico. Perguntado se foi muito diferente daquela outra vez, ele responde que sim. "Completamente diferente. Sem sofrimento. Porque eu virei cabalista. O problema é que acabou infeccionando. Mas, assim, passei os melhores 35 dias de férias da minha vida conectado ao aparelho. Fiz três grandes amigos. Um até me escreveu. O cara que está com câncer na garganta, um fazendeiro que mora lá em Osório. Tá louco que eu vá lá comer um churrasco com ele. Fiz um outro amigo que tinha sofrido um infarto, um cara bem jovem, que já está estudando a Kabbalah", diz.
 

Relatos

Charles Kiefer foi sucesso de vendas e conquistou três prêmios Jabuti durante a carreira literária

Charles Kiefer foi sucesso de vendas e conquistou três prêmios Jabuti durante a carreira literária

INSTITUTO ESTADUAL DO LIVRO/REPRODUÇÃO/JC
“A alternativa que Charles Kiefer nos traz, neste Quem faz gemer a terra, é o trabalhador rural sem terra que se emprisiona numa cidade de lona, à espera de uma vã promessa de receber um pedaço de terra para voltar à gênese de sua identidade: ser camponês. O texto, ao assumir a proximidade com a oralidade, permite um ritmo mais solto, simples, como o de uma conversa vadia, do narrador para com o ouvinte/ leitor. Charles Kiefer, professor de literatura brasileira, certamente escolheu conscientemente este caminho narrativo: ele o aproxima do Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas. Mas enquanto aquele texto é o grande épico dos sertões, com sua violência e suas razões que escondem as verdadeiras razões de tudo o que ocorre (ainda e sempre, a posse da terra), aqui encontramos um épico miserável que, por isso mesmo, torna-se o anti-épico. O personagem-narrador tem tudo para dar certo. Mas a estrutura social do acaso (não, aprendemos com Marx, o que parece natural é fruto das ações dos homens, de alguns homens, ao menos) leva-o por descaminhos que vão colocá-lo na encruzilhada: soldado e camponês se encontram, cada um em seu papel, ambos marionetes de um sistema maior. Cabe a eles morrer/matar para que o sistema sobreviva”

Depoimento de Antônio Hohlfeldt retirado do livreto digital sobre Charles Kiefer lançado pelo Instituto Estadual do Livro

“Quando li O pêndulo do relógio e sua teia dramática do homem em desespero, vendo seu mundo ser destruído pelo que devia aos bancos, eu fiquei tão impactado que decidi procurar o escritor (até então era assim que o conhecia) Charles Kiefer para propor adaptar a obra para o cinema, algo assim. Não foi algo rápido, mas cheguei até ele. Apresentei minhas ideias quanto a fazer um filme sobre esse livro, tinha uma ideia, tudo pronto na minha cabeça, mas só na minha cabeça e não no meu bolso. Charles foi muito receptivo e empolgado com a possibilidade de essa história tão densa virar um filme. Como sempre, no cinema, do plano à ação existe um universo financeiro que derruba grandes ideias e projetos. Tentei de muitas formas viabilizar a produção, mas não consegui. Eu tinha convicção (tenho mais ainda hoje) de que Charles Kiefer era uma fonte inesgotável de dramas a serem narrados na tela grande com alcance de um público próprio, que não embarca em histórias descartáveis, que ama a densidade de personagens e narrativas. Sendo assim, sem o dinheiro necessário para fazer o longa-metragem
O pêndulo do relógio, partimos (sim, porque a essa altura o Charles já era quase um produtor junto comigo) para fazer um curta baseado em um conto: O chapéu. Assim surgiu a primeira parceria literatura-cinema entre nós”.

Depoimento de Paulo Nascimento retirado do livreto digital sobre Charles Kiefer lançado pelo Instituto Estadual do Livro

Livros de Charles Kiefer

Detalhe da capa de

Detalhe da capa de "Caminhando na Chuva", sucesso de Charles Kiefer originalmente publicado em 1982

/MERCADO ABERTO/DIVULGAÇÃO/JC
Charles Kiefer tem mais de 30 livros lançados em diversos gêneros. Alguns deles:
- Caminhando na chuva - 1982
- A dentadura postiça - 1984
- O pêndulo do relógio - 1984
- Valsa para Bruno Stein - 1986
- A face do abismo - 1988
- Quem faz gemer a terra - 1991
- Um outro olhar - 1992
- Borges que amava Estela & outros duplos - 1995
- Antologia pessoal - 1996
- Nós, os que inventamos a eternidade e outras histórias insólitas - 2001
- O escorpião da sexta-feira - 2002
- A revolta das coisas - 2009
- Para ser escritor - 2010
- A poética do conto: de Poe a Borges, um passeio pelo gênero - 2011
- Dia de matar porco - 2014
 

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.

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