Cenário simbólico da vida noturna no século XX, o piano-bar persiste no imaginário ocidental como lugar de música, boemia, romance e fossa. Não foi por acaso que sua atmosfera intimista tenha inspirado discos e filmes ao longo de várias gerações, sob acordes esfumaçados de cigarro e embebidos em generosas doses de scotch. Porto Alegre não ficou imune, abrigando estabelecimentos que - direta ou indiretamente ligados ao conceito - marcaram época desde a década de 1940. Clube da Chave. Piano Drink. Cotillon. Je Reviens. Brahms. RG-53. Chez Dudu. Ayala's. Le Club. Bogart. Porto Velho. Odeon. Fellini. Bares de clubes, restaurantes e hotéis como Alfred e Plaza.
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O capítulo mais intenso e prolongado dessa narrativa teve como protagonista o Alambique's, nome meio desconexo para o ambiente inaugurado com descontraída elegância em 10 de março de 1979 em um centro comercial na avenida Independência, nº 30. Mantendo o status da região como berço de algumas das melhores boates já surgidas da cidade, o espaço de 725 metros quadrados e três janelões para a Santa Casa de Misericórdia se tornou referência no ramo, sobretudo ao investir em shows de medalhões da música brasileira e latino-americana, em programação intercalada por novatos ou experientes nomes locais e abertura permanente ao tango, jazz e até música erudita.
No comando estava um dos mais populares pianistas gaúchos de sua época: Paulo Pinheiro. Nascido em 19 de janeiro de 1950 na cidade de Santa Maria (Região Central), ele desembarcara ainda adolescente na Capital por volta de 1962, decidido a seguir o rastro profissional dos manos Edy, Hélio e Adão, ases das teclas e cujos serviços começavam a ser requisitados por casas noturnas, clubes e emissoras de rádio e TV. O transcorrer dos anos consolidaria o quarto talento instrumental da família e também o afinado empreendedor, no final da década seguinte, após longa temporada atuando em boates de São Paulo e Rio de Janeiro.
"Eu tocava em eventos do Ivo Rizzo no Litoral Norte quando sua construtora começou a erguer na primeira quadra da Independência aquele prédio de apartamentos com um pequeno shopping center no térreo", relembrou durante entrevista a este repórter em 2018. "Das conversas com o empresário, veio a ideia de montar o meu esquema no segundo andar, porque a planta previa naquela sobreloja um restaurante ou algo parecido, além de galeria de arte. Todo mundo sabe que músico ser dono de bar costuma ser um lance arriscado. Mas decidi tentar, e foi um sucesso desde o início. O prédio ainda estava em fase de conclusão quando abrimos as portas."
De imediato, a loja 17 caiu nas graças da imprensa cultural de Porto Alegre. Jornalistas e colunistas como Tetê Ely (Jornal do Comércio), Danilo Ucha (Zero Hora), Walter Galvani (Folha da Tarde) e Paulo Deniz (Correio do Povo) não poupavam elogios à casa, sublinhada pelo slogan Um toque de classe na noite. Essa mídia espontânea se somava a outra vantagem, conta o músico uruguaio Carlittos Magallanes, 81 anos, radicado em Porto Alegre desde 1975 e que perdeu as contas de quantas vezes tocou seu bandoneon no Alambique's. "Os irmãos Pinheiro conheciam todo mundo no meio artístico de dentro e fora do Estado, ajudando a manter um movimento constante".
Música ao vivo em ambiente intimista
Casa noturna ocupava a sobreloja de centro comercial em frente à Santa Casa
/ACERVO IVO RIZZO EMPREENDIMENTOS/REPRODUÇÃO/JCO investimento do jovem Paulo Pinheiro (29 anos à época) no Alambique's se notabilizou pelo serviço diferenciado, ainda que sem pompas. A fórmula incluía ar-condicionado central, mesas com interfones para comunicação entre os clientes (!), carta abrangente de bebidas e cardápio sob o comando de um ex-cozinheiro da Associação Leopoldina Juvenil. Em sua revista mensal Programa, Ayres Cerutti sugeria, no início da década de 1980, uma boa dose da aguardente Trigo Velho e o imperdível filé de côngrio (peixe da moda nos restaurantes da época) a doré com molho remolado e batata a vapor.
Gastronomia e conforto significavam apenas um plus para boa parte do público, inclusive a mais bem fornida. Afinal, o carro-chefe era o ambiente intimista do piano-bar em combinação a uma bem comportada pista de dança, com trilha sonora na medida para o refúgio saudosista de uma clientela exigente e deslocada de novas tendências. Sozinho ou na companhia de alguns dos melhores cantores e instrumentistas, o dono da casa dedilhava suas melodias de segunda a sábado, das 20h até alta madrugada - a placa de "fechado" raramente era acionada antes das 4h.
Como se tais atrativos já não fossem suficientes, uma aposta corajosa projetaria nacionalmente a fama do estabelecimento: shows e minitemporadas de medalhões da música brasileira e latino-americana, com destaque para artistas veteranos. Samba-canção. Bossa Nova. Samba-jazz. MPB. Boleros. De Elizeth Cardoso a Ivan Lins, "cartazes" de peso foram conferidos bem de perto por fãs que garantiam lotação esgotada com vários dias de antecedência.
"Em um bate-papo com a carioca Leny Andrade (1943-2023) no Alambique's, ela me garantiu que o Blue Note de Nova York e a boate do Paulinho estavam entre seus dois palcos preferidos", conta o DJ Claudinho Pereira, 77 anos. A amizade com ícones da música nacional (reforçada por Pinheiro durante a experiência no centro do País) foi decisiva: às vezes, bastava um telefonema para que a estrela topasse pegar o avião. Detalhe: mediante cachê, passagens, hotel, divulgação e outros gastos bancados por Pinheiro do próprio bolso, com ou sem patrocínio.
A estratégia não se resumia à certeza de retorno pela plateia lotada. Antenado à agenda da cidade, o pianista-empresário recorria ao mesmo expediente na hora de convencer velhos e novos camaradas a esticarem suas estadias, após compromissos em outros palcos locais. Nos 16 andares residenciais acima da boate, Paulo chegou a manter dois dos 180 apartamentos. "Com isso, eu podia dormir mais perto do trabalho e hospedar artistas de fora quando nenhum hotel entrava na jogada", contou em 2018. "E eles ainda podiam usar o espaço como camarim improvisado, bastando depois pegar o elevador."
Espaço para apresentações eruditas
Temporadas de artistas latino-americanos, como o chileno Lucho Gatica, eram sucesso de público
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCAbrindo os trabalhos de seu recém-inaugurado happy hour das 18h às 20h, em março de 1987 o Alambique's deflagrou iniciativa provavelmente inédita no Rio Grande do Sul: performances eruditas na programação regular de uma casa noturna. No foco estava a música de câmara (gênero executado por grupos mais enxutos, de no máximo dez membros), sob direção da violoncelista Marjana Rutkowski, ex-integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) e com repertório misto de peças clássicas e populares, de quarta a sábado, em novo ambiente com poltronas de couro, antigos lampiões e telas de pintores gaúchos. A casa dificilmente lotava, mas quem conferia saía encantado.
"Eu já frequentava a casa com minha mãe e propus a ideia ao Paulo Pinheiro, que se entusiasmou", recorda Marjana, protagonista da primeira atração fixa do projeto em trio com Alexandre Constantino (piano) e Ayres Potthoff (flauta), posteriormente substituídos por Luís Carlos Fredo (clarinete), Ana Lúcia Loro (flauta) e Marcelo Delacroix (violão). "Também estive à frente do espetáculo Beatles In Concert, antes de partir para um mestrado em Nova York". Hoje embaixadora no Brasil da associação internacional American Chamber Music Players (ACMP), ela define o piano-bar da Independência como "lugar de excelência artística e muita afetuosidade".
Sua mãe, a professora e também musicista Marisa Viero, 87 anos, complementa: "Paulo sempre foi um sujeito agregador, que tive a felicidade de conhecer nos ambientes culturais da cidade. Jamais esquecerei da noite em que regi no Alambique's o Coral Ad Libtum, formado por alunos da Escola Estadual Padre Reus. O lugar estava repleto de convidados para homenagear uma personalidade que havia recebido o título de Cidadão de Porto Alegre e fomos ovacionados. Anos mais tarde, reencontrei meu amigo tocando no shopping Praia de Belas e, minutos após me despedir, reconheci à distância os acordes de Garota de Ipanema, uma de minhas canções preferidas".
O hoje consagrado cantor e compositor Marcelo Delacroix, 56 anos, revisita uma experiência que considera inusitada: "Ana Lúcia, Luís Carlos e eu cursávamos Música no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) quando fomos chamados a participar. Tocamos na casa um repertório acadêmico entre o erudito e o popular, com composições de Heitor Villa-Lobos, Pixinguinha e algumas coisas autorais. A casa estava vazia, mas o Paulo Pinheiro ficou no balcão, apreciando tudo à distância".
Fim de romance
Com o fim do Alambique's, Pinheiro voltou a tocar em bares e cafés
/ACERVO PAULO PINHEIRO/REPRODUÇÃO/JCO longo affair de Porto Alegre com seu mais arrojado piano-bar entrou em crise no verão de 1990. Pressionado pelo dono a desocupar o ponto para que outro negócio ali se instalasse, Paulo Pinheiro preparou seu contra-ataque com uma oferta de compra, até ser surpreendido em março pelo plano econômico do recém-empossado presidente Fernando Collor e seu confisco de contas de poupança e outras aplicações financeiras. Quem já dobrou a esquina dos 50 anos deve lembrar que no mesmo local funcionou, por longo período, uma unidade do curso pré-vestibular Energia - hoje o espaço aguarda novo inquilino há mais de meia década.
Paulo Pinheiro retomou então suas origens de músico avulso, a serviço de bares (Porto Velho, Odeon, Luzes da Ribalta), cafés, restaurantes e shoppings (Praia de Belas, Olaria). Também apresentou ao vivo um programa semanal de música popular na Rádio da Ufrgs. Até que a saudade do Alambique's o levasse a remontá-lo duas vezes, em 1993 e 2001, primeiro na rua Mostardeiro nº 462 (bairro Moinhos de Vento) e depois no Salão Nobre do Hotel Umbu, na avenida Farrapos com Barros Cassal (Floresta). Poucos hoje lembram dessas reprises, sob o slogan Uma ideia sempre atual e abreviadas por questões logísticas.
Aposentado, duas filhas, duas netas e único remanescente dos quatro irmãos instrumentistas, ele faria anos depois um balanço afetivo dos tempos de revezamento entre piano e balcão: "Morando a seis quadras do Centro Comercial da Independência, faço minhas caminhadas pelo bairro e, sempre que passo em frente ao edifício, lembro dos momentos felizes vividos ali na sobreloja. Raramente me incomodei com o meu próprio negócio, que enquanto durou foi pura alegria. Mas não voltaria a trabalhar ali nem se me dessem o ponto de graça, porque seria bastante dolorida a saudade de um tempo que não volta mais."
Performance em disco
Noturno, único registro fonográfico do pianista, tem 12 faixas
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JCCinco anos após a gravadora EMI-Odeon abortar o projeto de um disco ao vivo de Paulo Pinheiro na boate Encouraçado Butikin (onde batia ponto como atração do happy hour), ele finalmente entrou em estúdio no primeiro semestre de 1983. Coube ao selo porto-alegrense Isaec o LP Noturno, único registro fonográfico do pianista, com 12 faixas a reproduzirem a atmosfera de suas performances solo em standards americanos, franceses e latinos que se alternam ao samba-canção, folclore húngaro e até o pop romântico oitentista. Tudo mixado a delicados arranjos de cordas, mais a escolta de colegas de batalha como Sadi Silva (contrabaixo) e Plauto Cruz (flauta).
O álbum - definido como "um trabalho de fervor e sobriedade" pelo jornalista Danilo Ucha - tem na capa um detalhe que provavelmente escapa aos apreciadores menos atentos: na foto panorâmica de uma Porto Alegre noturna vista em preto-e-branco a partir do Guaíba, o nome "Alambique's" impresso em vermelho e com letras miudinhas sinaliza a localização do célebre estabelecimento, em seu quinto ano de atividades. Inédito em CD e plataformas digitais, o vinil tem áudio disponível em versão não-oficial no YouTube, graças a um dos tantos colaboradores voluntários que fazem da internet uma preenchedora de lacunas desse tipo.
Performances memoráveis no Alambique's
Logomarca do Alambique's, piano-bar que fez a alegria dos boêmios na Porto Alegre dos anos 1980
/ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC• Sílvio Caldas
• Cauby Peixoto
• Nora Ney
• Jorge Goulart
• Doris Monteiro
• Helena de Lima
• Tito Madi
• Ivon Cury
• Lúcio Alves
• Dick Farney
• Elizeth Cardoso
• Jamelão
• Altamiro Carrilho
• Alaíde Costa
• Luiz Eça
• Carlos Lyra
• Luís Carlos Vinhas
• Leny Andrade
• Roberto Menescal
• Nara Leão
• Pedrinho Mattar
• Tamba Trio
• Zimbo Trio
• Pery Ribeiro
• Eliana Pittmann
• Marisa Gata Mansa
• Rosinha de Valença
• Quarteto em Cy
• Sílvio César
• Nana Caymmi
• Dori Caymmi
• Sivuca
• Miúcha
• MPB-4
• Maria Creuza
• Ivan Lins
• Francis Hime
• Cláudia Telles
• Traditional Jazz Band
• Lucho Gatica
• Armando Manzanero
• Roberto Yanés
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected].