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Publicada em 07 de Dezembro de 2023 às 19:05

O olhar afinado de Luiz Carlos Felizardo, um dos nomes fundamentais da fotografia gaúcha

Luiz Carlos Felizardo recebe série de homenagens por sua trajetória na fotografia gaúcha e prepara uma nova exposição

Luiz Carlos Felizardo recebe série de homenagens por sua trajetória na fotografia gaúcha e prepara uma nova exposição

/MARCO ANTONIO FILHO/DIVULGAÇÃO/JC
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João Vicente Ribas, especial para o JC *
João Vicente Ribas, especial para o JC *
 
Luiz Carlos Felizardo afina o olhar com rigor técnico e sensibilidade para os temas do dia a dia. Suas imagens clássicas em preto e branco permeiam acervos no Brasil e no exterior, perpetuando um estilo artístico de abordar paisagens, que é a projeção de sua individualidade.
Aos 74 anos, o artista porto-alegrense já marcou a fotografia no Rio Grande do Sul. Contudo, vem sendo celebrado em 2023 com uma série de homenagens, a exemplo do XVI Prêmio Açorianos de Artes Plásticas.
Os tributos começaram em novembro, na abertura do festival Virada Sustentável. Suas fotografias protagonizaram um espetáculo no Theatro São Pedro, projetadas em sequência, dialogando com a performance da estreante Simjazz Orquestra.
Sentado na plateia, no espaço destinado a cadeirantes, o fotógrafo mostrou o quanto segue ativo na vida pública, apesar da ataxia, doença que vem debilitando suas funções motoras desde 2006.
Junto a ele, sentaram-se naquela noite muitos amigos. Tabajara Ruas, cineasta e escritor, lembrou que conhece Felizardo desde a faculdade de arquitetura e gostou de encontrá-lo indo onde as coisas acontecem. "É uma figura ímpar, ele faz as coisas muito bem feitas e muito bem pensadas", comentou.
Carlos Carvalho, coordenador do FestFoto POA, saiu impactado do espetáculo e declarou que foi uma homenagem à altura da obra. "Mais que um fotógrafo, Felizardo é um artista do meio tom, um artista do cinza", declarou.
O texto inicial da noite, lido no palco, na avaliação de Carvalho, é um resumo, "para qualquer um que deseja iniciar na fotografia já saber qual é o primeiro passo". Tratou-se de um trecho do livro Querência (2009), escrito por Felizardo, sobre a formação de seu olhar observando o Pampa: "Ao longo de quinze anos se instalaram definitivamente em mim as imagens criadas por aquela amplidão silenciosa, e os valores que aprendi a reconhecer nas águas, nas pedras, nas árvores, nos bichos — em sua relação conosco, os humanos — vieram a compor uma estreita ligação com a natureza".
Na semana seguinte à homenagem, Felizardo recebeu o Jornal do Comércio em casa para uma entrevista. Enfrentando dificuldades de articulação na fala, resultado da ataxia, elogiou o maestro Edu Martins e aprovou a projeção das fotografias no concerto. Considerou especial a participação de Vitor Ramil tocando a canção Ramilonga, com suas fotos de Porto Alegre no telão: "se adequou perfeitamente". E justificou que aprecia a música como expressão individual, da mesma forma que a fotografia é criada.
Então perguntamos a ele se já experimentou ferramentas de Inteligência Artificial para gerar imagens. Felizardo disse que não, mas admitiu que a ideia é atraente. "Que informações teria que passar para a máquina para dizer que quer uma imagem assim?", indagou, apontando para uma cópia da obra Baratinha Schuco em avenida de eucaliptos, exposta na sala de seu apartamento. "É um teste interessante. Mas se tiver que descrever cada detalhe, não vale a pena", concluiu.
O quadro mencionado integra a série A Estranha Xícara (2011), que produziu a partir de colagens no Photoshop, como uma alternativa técnica e criativa, diante do avanço da doença de Machado-Joseph. Uma mostra de que mesmo com a redução da mobilidade e da motricidade, Felizardo segue trabalhando bastante.
Em 2020, teve um infarto e no último mês de julho, um AVC, o que deixou sua locomoção ainda mais restrita. Contudo, a agenda cultural segue intensa. Recentemente, esteve no auditório Araújo Vianna assistindo a um de seus cantores preferidos, Paulinho da Viola. Também foi ao cinema para conferir a estreia do documentário Elis & Tom. E marcou presença na abertura da exposição Curso, de Jailton Moreira, no V744Atelier, além de todos os eventos em sua homenagem nestes últimos dias. Entre eles, a inauguração da livraria Clareira, na Capital, com uma mostra da série inédita Portugal da Pedra.
Sobre sair de casa, Felizardo diz que faz questão de ir, mesmo sendo difícil. "Se fosse fácil, não teria graça", diverte-se.
 

Há sempre uma caixa preta

Fotógrafo trabalhou com câmeras de grande formato e aproveitou experimentações analógicas

Fotógrafo trabalhou com câmeras de grande formato e aproveitou experimentações analógicas

/ACERVO FUNARTE/REPRODUÇÃO/JC
É magia o que ocorre dentro da câmera. Mesmo que os fotógrafos operem com algumas variáveis, como a abertura do diafragma e a velocidade de exposição. A filosofia de Vilém Flusser notabiliza que, independentemente da tecnologia, há sempre uma caixa preta em que algum material é sensibilizado à luz para gerar uma imagem.
A contrapelo dessa contingência, Felizardo gosta de fotografar com a câmera conectada a um tripé, num ato preparado. Leva o tempo necessário para consagrar aquele átimo, que ocorre na confluência entre a sua percepção e as coisas que estão no mundo. No analógico, significa expor o negativo à luz durante mais frações de segundo. Também possibilita mais nitidez. Assim todos os meios tons têm chance de ficar gravados em nitrato de prata, substância fotossensível da película. Ou processados em inúmeros pixels, do digital.
Mesmo quando não usa o tripé, costuma dar um passo atrás para ver a cena completa e configurar a câmera para captar os mínimos detalhes. Toda sua trajetória profissional foi assim. Em documentário produzido pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), Felizardo entrega o seu truque para obter um negativo suave, que proporciona uma cópia nítida: "expor para as sombras e revelar para as altas luzes".
Com essa estratégia, orgulha-se de ter produzido mais de 18 mil negativos e de lembrar exatamente do momento em que gravou boa parte deles. Entre seus trabalhos memoráveis estão o ensaio que fez da artista Maria Lídia Magliani, em 1979, e as atividades ao lado do mestre Frederik Sommer, no Arizona (EUA) em 1984, quando recebeu uma bolsa da Comissão Fulbright.
 

Documentários sobre Felizardo

- Um fotógrafo na estrada
(2020)
Direção: Gilberto Perin e Emerson Souza
Realização: Margs
- Um Retrato em Meio Tom (2012)
Direção: Cesar Graeff Santos e Liliana Sulzbach
Realização: Tempo Porto Alegre
- Diagnóstico de conservação fotográfica da coleção (2023)
Direção: Denise Bujes Stumvoll
Realização: Edital Funarte
 

Luz da escrita

Feliz e Bel trabalham juntos na produção de livros e exposições

Feliz e Bel trabalham juntos na produção de livros e exposições

/ZÉ PAIVA/VISTA IMAGENS/REPRODUÇÃO/JC
Luis Fernando Verissimo, em comentário para a exposição Cidade Transfigurada, em 1993, assinalou as diferenças entre fotografar e escrever. "A fotografia mostra uma coisa e evoca duas mil. Uma superfície é um mundo, uma rachadura é um ensaio. Já o texto [...] porque tem muito mais recursos para se explicar do que uma fotografia, não sabe se explicar. Você fica tentando tirar as palavras do caminho para ver o que há por trás, e por trás não há nada". Por isso, conclui no final que tem inveja do amigo Felizardo.
A despeito da redação divertida de Verissimo, a escrita sobre fotografia sempre acompanhou a trajetória de Felizardo. Foi colunista da Folha da Manhã, nos anos 1970, e da revista Aplauso, nos anos 2000. Em seus livros, as imagens dividem lugar com ensaios sobre a técnica e a poética.
Um dos livros que editou é resultado de três viagens à região de Bagé, entre 2008 e 2009, ao lado do colega Fábio Del Re. No texto de apresentação, Felizardo justifica o título Querência: "mesmo tendo virado mote de incontáveis e duvidosos poemas e letras de música, sendo usada como nome de cidades, rádios, hotéis, bares e restaurantes pelo Brasil afora e além-mar, tendo sido, em suma, transformada em coisa trivial, próxima ao mau gosto, considero-a uma das palavras mais ricas e bonitas que a língua portuguesa contém".
Essa querência, para Felizardo, não se resume ao Pampa. Seu olhar frequentou diversos destinos mundo afora. Boa parte ao lado de Bel Locatelli, companheira de vida há 35 anos e produtora de seus projetos. "Independente do afeto, minha admiração pelo seu trabalho como fotógrafo e intelectual sempre permeou nossa relação", revela Bel. Nas inúmeras viagens de lazer, lado a lado, "fui aprendendo e apreendendo, pelo seu olhar, um mundo com outros tons e texturas".
Bel acredita que o rigor estético se reflete também na vida pessoal: "o fazer bem feito, a procura da perfeição, a integridade, são características indissociáveis dele". Já Felizardo, no prefácio do livro Imago (2010), escreveu: "sem a Bel, nada seria possível".
 

Felizardo em livros

Livros de fotografias
Theatro São Pedro (1984)
Coleção Senac (2004)
Querência (2009)
A fotografia de Luiz Carlos Felizardo (2011)
O percurso de um olhar (2019)

Livros de ensaios
O relógio de ver (2000)
Imago (2010)

Retrospectiva revela aspectos à sombra

Exposição Desenho reúne trabalhos nunca antes vistos de Felizardo

Exposição Desenho reúne trabalhos nunca antes vistos de Felizardo

/LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Como resultado do prêmio Açorianos, Felizardo inaugurou uma nova exposição nesta quinta-feira. Flávio Krawczyk, diretor do acervo artístico da Pinacoteca Ruben Berta, lembra que a prefeitura tem a tradição de expor o trabalho dos homenageados no local. Mas é a primeira vez que realizam uma mostra exclusiva de fotografia. Flávio ainda comenta que Felizardo já é reconhecido como um dos fotógrafos mais importantes do Brasil. "Por isso é importante também que a cidade de Porto Alegre reconheça e preste essa homenagem", diz.
A mostra se chama Desenho e surgiu a partir de um profícuo encontro com a nova geração da fotografia, pois o curador, Marco Antonio Filho, é 35 anos mais jovem. O trabalho entre os dois iniciou há um ano, com a finalidade de catalogar todo o acervo de Felizardo.
Em meio à fase de diagnóstico, Marco descobriu produções diferentes do clássico preto e branco. Encontrou experimentos com celofane e nanquim, imagens captadas com infravermelho e slides re-fotografados 3 ou 4 vezes. Assim veio a ideia de uma retrospectiva, "mas por um viés de descoberta do acervo", criando novas relações. "O trabalho do Feliz se presta muito a isso, porque não é fechado conceitualmente", diz.
O curador também destaca o domínio que Felizardo tem da linguagem. E recomenda considerar o contexto de sua produção nos anos 1960 e 1970. "No Brasil naquela época, a fotografia era muito ligada ao fotojornalismo, à denúncia do regime ou das condições da população. Então, era muito ligada à informação. E, apesar de ser um cara super politizado, ele vê na fotografia um campo de expressão pessoal", afirma.
A geração de Marco foi formada pela geração do Felizardo, da Jaqueline Joner, entre outros, exatamente no momento de ruptura, entre o analógico e o digital. Diferenças à parte, curador e artista encontraram muitos pontos de contato. Concordaram em expor pequenas ampliações, incluindo prints de época. "Quando tu trabalhas com um grande formato de impressão, há uma relação mais corporal, uma sensação de que tu podes entrar naquela paisagem; quando tu trabalhas com tamanhos pequenos, tens que chegar perto para ver o detalhe", compara.
A exposição enfatiza sua primeira referência estética, do francês Gustave Doré, que ilustrava os livros que o jovem Felizardo lia. Com isto, o curador buscou selecionar imagens mais descritivas, outras quase abstratas.
Marco observa ainda que o grande assunto de Felizardo é o banal. "É o que ele chama de óbvio, aquilo que está no dia a dia, no comum. Não é factual, e por isso acaba sendo atemporal", diz.
Ao longo da carreira, o fotógrafo se dedicou ainda ao registro das topografias do sul. Como uma coisa só, fotografou o território que parte do Pampa gaúcho e se amplifica no Uruguai, Argentina, Santa Catarina e Paraná. "É um trabalho que olha para a paisagem como uma projeção de uma individualidade", conclui Marco.
 

Nosso Feliz preferido

/LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Nesta seção, a reportagem solicitou a amigos e colegas artistas que comentassem a sua fotografia predileta da obra de Luiz Carlos Felizardo, o Feliz, como é chamado pelos íntimos.
Gnomes, Arizona, EUA, (1984)
"Quando Felizardo me mostrou a foto, fiquei impressionado com a qualidade dos meios tons de cinza e das texturas, que davam à cena uma luz rebaixada. Comentamos que poderia servir de cenário para o surgimento de personagens fantásticos, daí o nome" (Edgar Vasques - cartunista).

LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC

Piazzolla (1971)

"A harmonia, o ritmo, o rigor do tempo e do detalhamento, como na música e na arquitetura, definem sua foto. Das fotos, tenho muitas que gosto. Uma delas é do Piazzolla, em que ele está praticamente escondido atrás do fole!" (Claudio Levitan - compositor).

LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Como cenário de um crime nº 6, Missões (1987)

"Em 1987, participando do projeto A visão do artista, alusivo aos 300 anos das Missões, Felizardo produziu a icônica série Como cenário de um crime. Foi por meio dela que eu entrei em contato com a sua poética, ficando, para sempre e cada vez mais, fascinada. Nessas imagens, bem como no amplo conjunto que dedicou ao Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, enleiam-se ordem e desordem, constância e efemeridade, gritos e silêncios, sonho e ruína" (Paula Ramos - crítica de arte).

LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Pátio - Hotel Fronteira (2007)

"Creio que uma das características do trabalho do Felizardo é a sutileza. Além do rigor da composição e a técnica apurada" (Leopoldo Plentz - fotógrafo).

LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Foguete, o galgo (2009)

"Tenho a sorte de ter viajado com o Felizardo e estado presente em algumas das fotos que ele fez e que eu sei que ele gosta muito. A foto do Foguete, por exemplo, na fazenda da Dona Cecília em Bagé, deitado sobre cimento atrás do galpão. O Feliz com a Leica chegou perto, fez uns cliques, bem de cima, Foguete nem se mexeu. Então, entrei eu, olhei pelo visor e pensei: ih, o Feliz não pegou todo o cusco (eu estava com uma grande angular na câmera!). Mas a foto do Felizardo ficou infinitamente melhor que a minha. Foguete, com seu contorcionismo, apontava para todas as direções, ocupava mais espaço que o negativo permitia. Coisa de fotógrafo que não se limita com o que aparece no visor" (Fábio Del Re - fotógrafo).

LUIZ CARLOS FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JC
Morro Pelado (1997)

"A fotografia da estradinha para o Morro Pelado, nas palavras do autor, 'não é muito importante'. Feita a contraluz em 1997, revela a arte e a técnica apuradas do Felizardo ao escrever e desenhar com a luz (fotografar). Em 2020 percorri essa estradinha em companhia do Felizardo e do Pedro, seu filho. Não só a luz, como nós, éramos outros. Mas isto não foi importante, e sim a companhia" (Cesar Graeff Santos - médico).

* João Vicente Ribas é jornalista. Pesquisa Comunicação, Cultura e Música. Escreve o blog Gaucho, Pero No Mucho.

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