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Publicada em 02 de Novembro de 2023 às 00:40

Múltiplas facetas de Sady Homrich, baterista, gourmet e cervejeiro

Em meio à diversidade, o músico tornou-se figura marcante na cultura gaúcha

Em meio à diversidade, o músico tornou-se figura marcante na cultura gaúcha

/TÂNIA MEINERZ/JC
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Márcio Pinheiro
Millôr Fernandes disse, se referindo a Jô Soares, que ele era todo cordura - e quem, influenciado pela ressonância da palavra, visse na expressão outro significado não passava de um grosso materialista. A mesma expressão e a mesma advertência - cordura é o sinônimo de cordato, de pessoa de bom senso e afetuosa - servem para quem se aproxima de Sady Homrich, baterista, cavaquinhista, cervejeiro, gourmet, glutão, colorado e tantas outras definições que podem ser usadas para classificar esta interessante figura da cena musical e gastronômica de Porto Alegre.
Millôr Fernandes disse, se referindo a Jô Soares, que ele era todo cordura - e quem, influenciado pela ressonância da palavra, visse na expressão outro significado não passava de um grosso materialista. A mesma expressão e a mesma advertência - cordura é o sinônimo de cordato, de pessoa de bom senso e afetuosa - servem para quem se aproxima de Sady Homrich, baterista, cavaquinhista, cervejeiro, gourmet, glutão, colorado e tantas outras definições que podem ser usadas para classificar esta interessante figura da cena musical e gastronômica de Porto Alegre.
Baterista tardio - ele foi se encontrar com o instrumento apenas aos 20 anos -, Sady já era íntimo do arsenal percussivo desde a adolescência, quando aos 14 anos tocava em rodas de samba de parentes e amigos. Do ganzá ao pandeiro, passando pela cuíca, tamborim e pelos tambores mais graves, nada era estranho ao jovem aluno do Colégio Nossa Senhora das Dores, morador do Centro de Porto Alegre e veranista do Laranjal. Essas três bases, inclusive, foram fundamentais na sua formação.
Das Dores, Sady trouxe a alma nerd e o interesse pela química, decisiva na sua opção pela faculdade (Engenharia Química) e para o seu conhecimento cervejeiro. Sady garante que os ensinamentos escolares o ajudaram a desenvolver o paladar e aprimorar o gosto pelo hobby que se tornou atividade profissional. Foi também do colégio e da circulação pelas ruas do Centro que Sady se aproximou de Thedy Corrêa e Carlos Stein, o Carlão, amigos de infância e há quase quatro décadas parceiros de Nenhum de Nós, ao lado de João Vicenti, Veco Marques e do onipresente Dante Longo, tour-manager/produtor da banda e também outro ex-dorense. "Sady é o parceiro completo. Um sujeito sem rancores, que nunca fica emburrado e capaz de agregar a todos", diz Dante.
Juntos, eles estão desde a segunda metade dos anos 1980, já gravaram mais de uma dezena de álbuns, outros tantos DVDs, além de mais de 2 mil shows espalhados por todo o País e até pelo exterior. "Quando nos reunimos, o rock brasileiro dava os primeiros sinais. Era preciso furar a barreira imposta pelas gravadoras e fazer com que as bandas novas conseguissem lançar compactos (aqueles pequenos discos com uma ou duas músicas de cada lado), formando a primeira leva do movimento", lembra Sady.
Quase quatro décadas depois, Sady confessa nunca ter feito o exercício de pensar até quando a banda adolescente pode durar. "A amizade foi a mola propulsora, dando força a nossa ótica de nerds sulistas que queriam tocar", explica, para logo a seguir reconhecer: "Não éramos da turma do rock dos anos 1980, aquele pessoal próximo do IAPI. Falávamos outra língua e isso potencializou a amizade, a confiança criativa e a convivência".
"Thedy, Carlão e eu tínhamos uma amizade musical na escola e éramos ativistas do Grêmio Estudantil, restauramos a Rádio Dorense (duas caixas de som no pátio, uma pick-up e um amplificador) para tocar as novidades, que no final dos anos 70 não eram poucas". "Eu lembro exatamente o dia em que eu e o Sady viramos amigos", conta Thedy. "Estávamos na quinta série e eu fiquei doente, com febre. No final do dia, minha mãe me avisou: 'tens visita'. Era o Sady, que explicou: 'sou o líder social e um dos papéis que tenho que cumprir é visitar os enfermos'. A partir daquele dia nunca mais nos separamos."
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O melhor baterista do Nenhum de Nós

Sucesso de Camila fez Sady Homrich deixar de lado a engenharia

Sucesso de Camila fez Sady Homrich deixar de lado a engenharia

/TÂNIA MEINERZ/JC
O sucesso foi quase instantâneo. Se até 1986, Sady, Thedy e Carlão eram apenas colegas de aula, já em 1988 tudo havia mudado. A música de trabalho do primeiro disco, Camila, Camila, teve alcance nacional, abrindo não apenas espaço para shows nacionais (no Rio de Janeiro, por exemplo) como facilitando a gravação do segundo disco, Cardume, que teve um sucesso ainda maior: 250 mil cópias vendidas.
Na adolescência, Sady ouvia muito rádio, aí incluído Beatles com Yellow Submarine, Jamelão e José Mendes com Pára Pedro. "Daí o namorado da minha irmã me apresentou Supertramp e Genesis e eu entrei mais a fundo no rock progressivo". Assim, de maneira descomprometida, Sady foi tocando e estudando até montar a banda e gravar o primeiro disco. "Com Camila, Camila acabou qualquer dúvida: decidi que seria músico, ainda que formado em engenharia."
O Nenhum de Nós ganharia nova dimensão a partir de 1990, com a entrada do guitarrista Veco Marques, quando a banda passou a incorporar influências da música gaúcha, com a participação de Luiz Carlos Borges. Um ano depois, eles se apresentam no Rock in Rio II e ganham um novo integrante, João Vicenti, primeiro como músico convidado e logo a seguir como titular. "Eu e o Sady nos conhecemos no primeiro ano do primário do Colégio Nossa Senhora das Dores. Já faz mais de 50 anos. Eu e o Thedy temos uma teoria: o Sady sempre foi exatamente igual, nós é que nos aproximamos mais dele, daí ele foi ficando maior", ressalta Carlão.
Para Sady, a trajetória do Nenhum de Nós carrega dedicação, esforço, dignidade, sinceridade e um tanto de sorte. "Sempre digo, quando pedem para comparar as bandas dos 1980 com as de outras décadas que a grande diferença, para mim, é que as oitentistas eram bandas formadas por amigos. As outras são formadas por músicos. Isso faz toda a diferença. Eu, o Sady e o Thedy fomos aprendendo a ser músicos em cima do palco", completa Carlão. "Eu diria que o Sady é a cola do Nenhum de Nós. Com seu jeito de ser, ele nos mantém grudados em vários aspectos", confirma Thedy.
Hoje Sady ouve Depeche Mode, Gorilazz e Mastodon. Entre os bateristas, ele admira muitos, das mais diferentes vertentes. "Senti a perda recente do Mamão, referência do Azymuth e de centenas de gravações de rock e MPB", lamenta. "Curto também o trabalho do Barone e do Bisogno, no rock; Kiko Freitas é um gigante. Da gringa me inspiro em Chad Smith e Zak Starkey, além de sonhar com o Neil Peart. E o maior de todos: Ringo Starr"
Carlão segue definindo o amigo: "Sady carrega algo muito forte no seu lado intuitivo e é um cara que sempre soube preservar esse espírito dentro da banda. Uma das grandes referências dele é o Ringo e sobre ele vem a frase que define tudo: o Sady não é o melhor baterista, mas é o melhor baterista que o Nenhum de Nós poderia ter".
 

Dá para dizer que o Brasil perdeu um engenheiro para o rock?

Sady: Fiz um baita estágio na, então, Riocell, mas logo depois o engenheiro que tinha alma de músico virou um baterista. O diploma está bem enrolado no fundo de uma gaveta e a engenharia se transformou em um ótimo hobby.

O Laranjal e suas paixões

Nenhum de Nós e o espumante Mari, que homenageia o grande amor de Sady

Nenhum de Nós e o espumante Mari, que homenageia o grande amor de Sady

/Tânia Meinerz/jc
Sady costuma dizer que não sabe se ele escolheu o Laranjal ou se foi o Laranjal que o escolheu. Porto-alegrense, filho de pelotenses, Sady passava todas as férias de inverno e de verão lá, quase sempre com toda a família (avós, tios, primos), além de uma rede de amigos. "Meus pais, Gilda e Sady, se casaram e foram morar na Capital, mas nossas viagens a Pelotas eram muito frequentes e, durante todas as férias ficávamos no balneário Santo Antônio. Lá, para mim, era sinônimo de liberdade."
Para Sady, o Laranjal sempre teve um clima entre o bucólico (nos primeiros dias da semana) e o festivo (de quinta a domingo). É no Laranjal que ele se reenergiza, além de buscar no passado gostos e sabores que se perderam. "Além dos quitutes da vó, eu esperava o período de férias para reencontrar o pastel de camarão do Estrela do Mar, o milho verde do Matinho, o bolo-da-saúde do Bar do Adão (que possuía o único telefone público da praia), o cachorrão do Bikão Jr. e o sorvete de doce de leite da Zum-Zum, exceção que se mantinha fiel, pelo menos até a tarde de ontem", recorda, depois de mais uma curta temporada em seu lugar preferido.
Foi no Laranjal também que Sady conheceu Mari, seu grande amor. "Lá pelo início dos anos 1980 vínhamos eu e o Sady caminhando por uma daquelas ruas de chão batido no Laranjal. Senti um certo nervosismo nele, uma mudança de atitude. Vi entrando na outra ponta da rua duas meninas. 'Aquela é a Mari'", registrou Thedy em texto de fevereiro de 2021, lembrando a amiga que morrera um dia antes. "Eu já tinha ouvido falar muito da Mari. O Sady tinha um crush de longa data por ela, mas ele jurava que era apenas amizade".
Não era. Sady e Mari, que ainda era noiva, engataram namoro logo depois e nunca mais se separaram. Os dois decidiram não ter filhos, o que facilitava os deslocamentos, as viagens, as festas e as cervejas e espumantes divididas.
Além de seguir viva na memória de Sady e dos amigos, Mari dá nome à edição especial de um espumante que marca os 35 anos de carreira do Nenhum de Nós. Ou, como define o texto de divulgação, "uma mulher alegre, querida, borbulhante e cheia de vida, que acompanha a trajetória do grupo agora de outro plano e que merece muito esta reverência especial".

Você trocaria a sua casa no Laranjal por uma ilha em Angra dos Reis?

Sady: Tá louco? Imagina o IPTU!

Sem polêmica, mas cerveja é melhor do que vinho

Sady Homrich conta que começou a fazer cerveja artesanal em casa, em 1984

Sady Homrich conta que começou a fazer cerveja artesanal em casa, em 1984

/TÂNIA MEINERZ/JC
Entre químicas e alquimias, Sady Homrich honrou suas origens germânicas, deu mais valor ao diploma universitário recebido e descobriu como fazer do hobby uma alternativa profissional. A descoberta se deu há quase quatro décadas, quando o universitário foi visitar a Cia. Cervejaria Brahma (onde hoje funciona o Shopping Total) e se deu conta de qual rumo o engenheiro deveria tomar. "Em 1984 comecei a fazer cerveja em casa, de forma rudimentar. Aí já era..."
Com as viagens da banda a partir de 1987, Sady passou a conhecer melhor uma realidade cervejeira pelo interior do Brasil que ficou no passado. Assim, ele viveu de perto toda a história da cerveja artesanal desde então e também se reconectou com suas raízes. "Minha família sempre brindou com cerveja. Meu tio-avô me contava histórias cervejeiras que escutaram com seu avô alemão, cujo primo, tinha uma cervejaria em, Cachoeira do Sul, a Rodolpho Homrich & irmão."
Conhecedor que evita enveredar pelas chatices que muitas vezes algum exibicionismo cervejeiro ajuda a despertar, Sady bebe por diversão. É também autor de uma coluna de perguntas e respostas na Revista da Cerveja e cria conteúdo para plataformas gastronômicas. Ele acredita que quase tudo que é comestível pode ser harmonizado com cervejas - talvez só verduras mais fortes, como agrião, rúcula e espinafre, fiquem de fora. E o melhor? "Ah, os queijos especiais. Nasceram um para o outro. Sem querer polemizar, essa experiência com cervejas fica muito mais completa do que com vinhos".

Qual a melhor cerveja?

Sady: Posso dizer que a melhor cerveja que tomei foi nos porões da Pilsner Urquell, na República Tcheca. Estive lá duas vezes. Mas jamais esqueço a Faixa Azul, que meu tio de 85 anos trouxe enquanto eu assava um galeto sob 35°C dizendo que guardou para tomar comigo.

O samba como estado de espírito

Sady na bateria, durante degustação acústica no Food Hall Dado Bier

Sady na bateria, durante degustação acústica no Food Hall Dado Bier

/EVANDRO OLIVEIRA/JC
Antes do rock, veio o samba. Sady, aos 19 anos, tocava na noite, como hobby e também para levantar alguma grana. "Meu objetivo, e da minha família, era concluir o curso de Engenharia Química", lembra.
Mais tarde, em paralelo com o Nenhum de Nós, Sady fundou o Regional Laranjal, onde dá vazão ao interesse pelas composições e interpretação de nomes como Roberto Ribeiro, João Nogueira, Paulinho da Viola, Beth Carvalho. "É samba da antiga e muito chorinho onde toco cavaquinho e cuíca, além de cantar. Não é um conjunto, considero um estado de espírito!"

Sambista ou roqueiro?

Sady: Fácil! A bateria tem hierarquia profissional e o cavaco é pura diversão. Comecei a tocar percussão em roda de samba e cavaquinho antes de bateria. E no Regional alterno o cavaquinho com agê, agogô, cuíca.

Discografia do Nenhum de Nós

/PLUG/DIVULGAÇÃO/JC
Álbuns de estúdio
 Nenhum de Nós (1987)
 Cardume (1989)
 Extraño (1990)
 Nenhum de Nós (1992)
 Mundo Diablo (1996)
 Paz e Amor (1998)
 Onde Você Estava Em 93? (2000)
 Histórias Reais, Seres Imaginários (2001)
 Pequeno Universo (2005)
 Contos de Água e Fogo (2011)
 Outros (2012)
 Contos Acústicos de Água e Fogo (2013)
 Sempre É Hoje (2015)
Álbuns ao vivo
 Acústico ao Vivo no Theatro São Pedro (1994)
 Acústico Ao Vivo 2 (2003)
 A Céu Aberto (2007)
 Paz & Amor - Acústico (2009)
 As Pedidas - Ao Vivo (2017)

Assinatura

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

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