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Roncos e histórias do bugio, o único ritmo reconhecidamente gaúcho
Apesar das disputas narrativas quanto à sua origem, o bugio pode ser oficializado enquanto patrimônio imaterial do Rio Grande do Sul
João Vicente Ribas, especial para o JC
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O primeiro bugio
O bugio ganharia notoriedade a partir de 1956, quando os Irmãos Bertussi gravaram o primeiro em disco: O Casamento da Doralícia. Foi um impulso para a popularização e para a consolidação como gênero musical. Na contracapa do LP Coração Gaúcho 2, que contém a canção, há um texto explicativo: "O Casamento da Doralícia - Bugio - conto gauchesco de Honeyde Bertussi e música também colhida do folclore. Bugio é um samba ritmado caracterizado pelo jogo de fole do gaiteiro. O passo da dança é de acordo com o movimento do fole".
Adelar Bertussi orgulhava-se em dizer que após essa gravação, o bugio virou moda em todo o Rio Grande do Sul. Em registro audiovisual (Gema, 2016), realizado pouco antes de falecer, assegurou que ele e seu irmão Honeyde conservavam os ritmos folclóricos e apenas criavam uma roupagem moderna no arranjo das gaitas.
Sobre o bugio, Adelar afirmou que é nativo indígena: "a tribo dos kaingang aqui dançavam bugio a madrugada inteira". No entanto, parte da sociedade serrana desaprovava-o por causa da sensualidade atribuída aos movimentos. "Era proibido nos bailes aqui em cima dançar a dança do bugio", recordou.
Outras canções célebres vieram a seguir e ajudaram a consagrar o gênero. Na Califórnia da Canção, em 1973, dois bugios de São Borja foram classificados para a final e entraram para a história (veja cronologia abaixo). No entanto, nos festivais nativistas em geral é raro apresentarem o ritmo. E dificilmente sai vencedor. Já nos eventos exclusivos para o bugio, grandes gaiteiros do gênero, como Edson Dutra, dos Serranos, e Albino Manique, dos Mirins, participam e concorrem aos primeiros prêmios.
Uma das composições mais populares, até hoje entoada Estado afora, é Levanta Bugio, de Leonardo. Defendida pelo cantor junto ao grupo Os Monarcas, venceu em 1986 a primeira edição do festival Ronco do Bugio.
Ronco que ressoa na cordeona
Yamandu Costa, hoje violonista famoso internacionalmente, venceu em 1995 a categoria infanto-juvenil do Ronco do Bugio, em São Francisco de Paula. E cantando! O jovem Diamandú, conforme assinava, interpretou Gaita Mulata, de autoria de Léo Ribeiro.
Essa é uma das memórias que o autor serrano guarda de tantos anos de festival. Léo participou de todas as edições, de diversas maneiras. Além de compositor, foi organizador, jurado, apresentador e, inclusive, criou capas de discos. A imagem que divulga a próxima edição tem a sua assinatura. Seu exemplo ilustra o envolvimento apaixonado dos moradores da cidade em torno do gênero.
Léo Ribeiro reforça o coro de que o bugio foi criado no Estado, diferente de outros ritmos presentes nos bailes, como a vanera, o xote, a valsa, a milonga, que teriam vindo de outros lugares. "O único ritmo que realmente foi parido no Rio Grande do Sul foi o bugio", sustenta.
A narrativa da origem indígena, com a participação dos tropeiros, faz sentido para Léo. "Nas rondas fechadas, quando chegavam naquelas propriedades que tinham mangueira, largavam o gado dentro, iam relaxar, tocar, dançar, e dizem que daí surgiu o bugio", afirma.
Para reforçar o argumento, cita o folclorista Paixão Côrtes e suas pesquisas sobre as danças masculinas: "dizia que os tropeiros dançavam inclusive entre eles, entre os homens". Daí teria saído a chula, a dança do bugio, que também era dançada com as indígenas. Inspiravam-se no jeito desengonçado do animal: "assim como a música é uma imitação do ronco, a dança é uma imitação do caminhar do primata".
Mas Ribeiro reconhece que existem muitas dúvidas e coloca mais lenha na discussão: "agora já surgiu uma nova versão, que o bugio teria origem paulista". E explica que um ritmo muito próximo teria sido trazido pelos tropeiros que vinham de São Paulo e passavam por aqui, a batida da moda de viola, o cururu. "Então os gaúchos botaram o som da gaita e virou o bugio", supõe.
Livro resgata histórias do bugio com 'u'
Boa parte dessas controvérsias foram registradas em um livro lançado no ano passado: O Ritmo Musical do Bugiu Nos Campos de Cima da Serra e no Rio Grande do Sul. Nele, o autor Israel da Sois Sgarbi comenta e compara versões da origem, grafando sempre o nome do ritmo com a letra "u" no final, para diferenciar do macaco.
Sgarbi também abre mão de chegar a uma explicação única, devido à sua complexidade histórica. "Não acontece num só momento, não pode ter sido criado por uma única pessoa, isoladamente". Por isso, considera elementos como a natureza, o cotidiano das pessoas, a época e os instrumentos disponíveis. Aos indígenas, atribui a batida, a cadência, "essa parte ritualística ao redor de uma fogueira".
Enfrentando polêmicas, Sgarbi aprofunda as diferenças entre os tipos de gaitas, usadas pelos pioneiros do ritmo. E explica que a gaita de botão de voz trocada, que era comum na época em todo o Estado, não permitia fazer o jogo de fole característico. Já gaiteiros como Virgílio Leitão, negro serrano que tocava um acordeon semicromático, tinham a condição técnica para imitar o ronco no instrumento. Assim, conclui que "o bugiu ficou pronto pra enfrentar o mundo na gaita piano".
Contudo, Sgarbi contemporiza os inúmeros relatos que enriquecem o gênero. "Todas as pessoas que entrevistei ao longo de dez anos até chegar neste livro diziam conhecer um gaiteiro véio antigo, que tocava bugiu no galpão do fulano no fundão de tal lugar", escreve.
Mistura de influências ancestrais e atuais
Superando seu próprio preconceito, Valdir Verona hoje toca bugio ao violão e até na viola de 10 cordas. "Parecia pra mim que era só para gaita", recorda. Foi quando estava compondo estudos para um método de ritmos gaúchos que acabou se convencendo em incluir o bugio. "O Adelar Bertussi comentou que poderia ter sido tocado com viola também, ou com tambores, ou com qualquer coisa, porque antigamente o pessoal dançava até sem música, pessoal era empolgado", conta.
O músico e pesquisador de Caxias do Sul é cauteloso. No entanto, fica instigado com a possível influência sertaneja no surgimento do gênero, a partir das tropeadas paulistas no período colonial. "Como ritmo, o bugio se assemelha mais a uma célula que tem no cururu, que é um ritmo muito tocado na música caipira", avalia. Um exemplo está no sucesso O Menino da Porteira (Teddy Vieira/ Luís Raimundo, 1955). "Não estou dizendo que vem dali, mas existe a ligação", observa.
Verona compara também a célula do bugio com as do maxixe, do lundu e da habanera. "A partir do momento que tem essa colcheia pontuada, isso é afro", conclui. Por isso, acredita que é insuficiente a análise apenas sobre o ritmo. Existe toda uma linguagem que compõe o gênero musical. Com isso, assegura que o jeito de tocá-lo no acordeon é único dos gaúchos.
'Sempre foi um ritmo muito festivo'
Elton Saldanha venceu duas vezes o Ronco do Bugio. A primeira, em 1987, com a parceria de Aparício Silva Rillo, Bugio do Adeus. Depois, em 1993, com a canção Briga de Bugia, que levou como brincadeira e conquistou o voto popular. "Nem imaginava que fosse ganhar algum prêmio e ganhei o festival, porque o povo se identificou", relembra.
Desta forma, o cantor e compositor contribuiu para uma mudança temática: antes, as letras tratavam o bicho como um perigo. "A gente começou a cantar o bugio de forma romântica, o que não se fazia, e a falar do animal como guardião daquela cultura."
Também inseriu o humor, a exemplo de Bugio na Estância da Harmonia, canção feita para divertir a gauchada da Capital na Semana Farroupilha. Já no festival da Barranca, em São Borja em 1988, compôs com Tadeu Martins o bugio Viroca, uma sátira social que acabou levando à criação do troféu Quá-Quá, para músicas jocosas.
Sua inspiração vem de contatos com o animal: "na minha cidade, Itaqui, tinham uns bugios tão mansos que eles desciam das árvores para a calçada, pegavam da tua mão e iam até a esquina, caminhando, para ver se tu dava alguma coisa para ele". Já no festival da Barranca, Elton relata que os bugios se agitam muito com a música do acampamento. "Às vezes, eles brigam com a gente, arremessam coisas", conta.
A partir de sua experiência em bailes e shows, Elton observa que as pessoas gostam de dançar, por reconhecerem ali um ritmo muito intenso gaúcho. "O bugio sempre foi um ritmo muito festivo", salienta.
Precursores e mantenedores da querência
Na década de 1980, um grupo de amigos se uniu para criar um festival dedicado ao bugio em São Francisco de Assis. De acordo com um dos organizadores, o historiador Valdevi Maciel, uma das motivações foi o livro ABC do Tradicionalismo Gaúcho, de Salvador Lamberty. Nele, consta que o nascimento do bugio teria ocorrido a partir do gaiteiro Neneca Gomes.
Valdevi reconta a história do precursor, que teria vindo no século XIX para plantar e cultivar erva-mate nas fazendas do Mato Grande, no quinto distrito do município. Como participava de bailes e cantava de improviso, começou a fazer sucesso na região. Ali foi observando os bugios e incorporando seu ronco no toque da gaita. "É claro que esse ritmo não surgiu de uma vez só, ele foi tocando aquelas partes devagarinho, depois juntaram tudo e se formou o ritmo bugio", pondera.
Na terra de Neneca Gomes, há diversos músicos que mantêm a tradição. Eri Côrtes é um dos mais atuantes, ao lado de grupos como Ases do Fandango e Vistaço. "Nós temos vários conjuntos musicais da terra que viajam no interior do Rio Grande do Sul e até fora, sempre levando o nome da cidade", diz.
O animal bugio também mantém um vínculo bem próximo com a comunidade de São Francisco de Assis, habitando as duas praças principais da cidade. "Ele é um patrimônio para nós, nós preservamos, nós cultuamos. Onde a gente sai, a gente fala que somos da Querência do Bugio", afirma Côrtes.
O bugio é de São Francisco
Nisto a maioria concorda: o bugio originou-se em São Francisco. Agora, se foi em São Francisco de Assis, nas Missões, ou em São Francisco de Paula, na Serra, já não há consenso. Mas neste ano houve um "acordo de paz" entre as duas cidades, para reconhecer o ritmo como patrimônio do Rio Grande do Sul.
Os dois municípios já haviam aprovado leis de âmbito local, declarando o bugio como patrimônio. Também costumam promover há décadas festivais dedicados ao gênero (esses eventos estão sendo reativados em 2023, após os anos de pandemia).
Cada uma possui uma narrativa própria para o nascimento do ritmo. Prescilla Saquett, Diretora de Cultura de São Francisco de Assis, afirma: "Nós aceitamos esta união, nós vamos falar das nossas origens e eles falarão das origens de lá."
Com o trabalho conjunto, os gestores públicos esperam que o bugio não fique restrito aos bailes e concursos das entidades tradicionalistas. Também esperam obter mais recursos para promoção de outras atividades relacionadas a este patrimônio.
Em busca do reconhecimento como patrimônio imaterial
A erva-mate foi reconhecida neste ano pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), ligado à Secretaria de Estado da Cultura (Sedac). Tratou-se do primeiro processo concluído de patrimônio imaterial gaúcho. Agora, o ritmo musical bugio também pode obter esse reconhecimento. Está em fase de mapeamento e até 2025 deverá ser emitido um parecer, para apreciação por uma câmara temática, e depois publicada uma portaria.
Rafael Filter, historiador do IPHAE, relata que a demanda do bugio veio da reunião dos municípios de São Francisco de Paula e de São Francisco de Assis, que encerraram uma rusga em relação à origem. "Para além de uma disputa histórica por fatos, o trabalho do registro é compreender a relevância desse bem cultural para as memórias, para as identidades dos diferentes grupos sociais, independente da extensão territorial", afirma.
Para começar o registro, foi realizado um seminário conjunto no ano passado, com representantes das duas regiões. Durante o encontro, o historiador relata que participaram pessoas que vivem o ritmo. "Tocavam e choravam, ou seja, elas estavam sendo afetadas por aquilo, porque tem para elas uma relevância de memória, de identidade".
Assim, Filter conclui que o patrimônio cultural não é algo do passado, mas, aquilo que se considera relevante no presente. Por isso, explica que procurar um aspecto genuíno, do ponto de vista da História, é praticamente impossível. "Nunca se tem uma evidência, uma fonte que comprove que algo é único ou que é o primeiro de todos. É sempre uma construção narrativa", afirma.
Renato Savoldi, diretor do IPHAE, destaca que o patrimônio imaterial também exige manutenção: "são as medidas que vão ser tomadas para salvaguardar esse bem". No caso do bugio, as propostas ainda não estão definidas, mas podem envolver ações de educação para o patrimônio. "Criar oficinas, saber quem são esses músicos, torná-los mestres. Além disso, divulgar, tanto a nível estadual como nacional e internacional", projeta.
Cronologia do bugio na música gaúcha
1956 - Irmãos Bertussi gravam no Rio de Janeiro a canção O Casamento da Doralícia, o primeiro registro fonográfico de um bugio.
1973 - Na 3ª Califórnia da Canção Nativa, duas composições de São Borja se classificam para a final, baseadas no ritmo do bugio. Os Angüeras tocam Vida é Jogo, Jogo é Sorte, e Telmo de Lima Freitas canta Resto de Baile.
1986 - É realizada a primeira edição do festival Ronco do Bugio, em São Francisco de Paula.
1993 - São Francisco de Assis promove a primeira edição do festival Querência do Bugio.
2023 - Inicia oficialmente o processo de reconhecimento do bugio como patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul.
1973 - Na 3ª Califórnia da Canção Nativa, duas composições de São Borja se classificam para a final, baseadas no ritmo do bugio. Os Angüeras tocam Vida é Jogo, Jogo é Sorte, e Telmo de Lima Freitas canta Resto de Baile.
1986 - É realizada a primeira edição do festival Ronco do Bugio, em São Francisco de Paula.
1993 - São Francisco de Assis promove a primeira edição do festival Querência do Bugio.
2023 - Inicia oficialmente o processo de reconhecimento do bugio como patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul.
Festivais em 2023
30º Ronco do Bugio
São Francisco de Paula
22 e 23 de setembro
16º Querência do Bugio
São Francisco de Assis
12, 13 e 14 de outubro
São Francisco de Paula
22 e 23 de setembro
16º Querência do Bugio
São Francisco de Assis
12, 13 e 14 de outubro
* João Vicente Ribas é jornalista especializado em música. Doutor em Comunicação pela PUCRS. Foi repórter da TVE-RS e professor da UPF.