A regra é clara: vida noturna, assunto de gente grande. Mas no caso do Azteca (1996-2000), empreendimento porto-alegrense de inspiração mexicana e que deflagrou o movimento boêmio em uma até então pacata rua do bairro Moinhos de Vento, há que se creditar sua origem à opinião de um guri de 12 anos. Aluno do Colégio Anchieta, em certa tarde de 1975 Ricardo Koeche caminhava em direção ao apartamento da família na 24 de Outubro quando vislumbrou em um antigo sobrado à venda no número 44 da Padre Chagas uma adolescência mais feliz com o pai médico, a mãe professora, os três irmãos e, se possível, alguns cães.
Leia as demais matérias da série Porto Noite Alegre:
• Clube da Chave: a casa noturna mais intelectual de Porto Alegre
• Boate Barbazul: um coquetel de profissionalismo na noite porto-alegrense
• La Camorra: uma boate especialmente construída na avenida Goethe
• Looking Glass, a primeira 'discoteque' de Porto Alegre
• Boate Anos Dourados: diversão garantida para jovens-adultos na Cidade Baixa
• Boate Lei Seca foi fenômeno de popularidade na década de 1990
Leia as matérias da primeira temporada da série Porto Noite Alegre aqui
“Convenci meu velho a comprar e reformar o imóvel, construído na década de 1940”, relembra aos 59 anos o empresário de eventos e construção civil. A casa na primeira das três quadras da rua, a poucos metros da Fernando Gomes, logo virou ponto de encontro de amigos e permitiu ao adolescente explorar seu talento para a organização de festas, com cavaletes de isolamento que literalmente paravam o trânsito naquele trecho. Esse mesmo espírito de diversão o levaria a participar da ala jovem da Associação Leopoldina Juvenil, sendo inclusive um dos fundadores da Villa Rica, boate interna do clube. Isso sem contar os agitos na praia de Torres e Garopaba.
A chegada da maioridade trifurcou o personagem. Envolvido com o serviço militar e a faculdade de Educação Física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), futuramente abandonado no último semestre, ele arranjou tempo para trabalhar como representante comercial de grifes de surfe – experiência que o levou a fundar a marca Chapéu de Cobra, especializada na confecção de camisas de lycra contra assaduras causadas por roupas de neoprene na rapaziada que pegava onda. “Mas o Plano Cruzado (1986) criou dificuldades para os clientes pagarem as compras, então pensei que era muito jovem para viver estressado”, explica. “Decidi morar nos Estados Unidos”.
Miami. Nova York. Em Los Angeles, sete anos como entregador de pizzas, garçom, cozinheiro e funcionário de um estúdio de sonorização em Hollywood. Morou na casa da atriz Joanna Cassidy, uma das androides do filme Blade Runner (1982) e que, durante os meses de gravação de uma minissérie na Pensilvânia, o encarregou de zelar pelo imóvel, com direito a carro, cartão de crédito e tempo vago para cruzar a fronteira mexicana. Em ambos os lados, algo que não conhecia: restaurantes de tex-mex, adaptação da culinária típica do país vizinho ao paladar norte-americano. Burritos, tacos, tortillas e outros pratos típicos seriam decisivos nos planos de Ricardo.
Encerrada a aventura norte-americana após um capítulo final como assistente de cozinha em um estabelecimento do gênero, em 1993 o rapaz voltou cheio de ideias. Montou em Torres o até hoje lembrado bar Remador e, depois, aplicou sua experiência californiana para criar na capital gaúcha o El Burrito. Instalado na avenida Cristóvão Colombo próximo ao Colégio São João, ali estava o segundo (e na época o único) restaurante mexicano da cidade – no bairro Auxiliadora, o pioneiro Jalisco (1988-1992) já havia pendurado o sombrero. Tudo ia bem, até a dona pedir a desocupação do ponto, contratempo que seria contornado com uma solução caseira.
• Clube da Chave: a casa noturna mais intelectual de Porto Alegre
• Boate Barbazul: um coquetel de profissionalismo na noite porto-alegrense
• La Camorra: uma boate especialmente construída na avenida Goethe
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• Boate Anos Dourados: diversão garantida para jovens-adultos na Cidade Baixa
• Boate Lei Seca foi fenômeno de popularidade na década de 1990
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“Convenci meu velho a comprar e reformar o imóvel, construído na década de 1940”, relembra aos 59 anos o empresário de eventos e construção civil. A casa na primeira das três quadras da rua, a poucos metros da Fernando Gomes, logo virou ponto de encontro de amigos e permitiu ao adolescente explorar seu talento para a organização de festas, com cavaletes de isolamento que literalmente paravam o trânsito naquele trecho. Esse mesmo espírito de diversão o levaria a participar da ala jovem da Associação Leopoldina Juvenil, sendo inclusive um dos fundadores da Villa Rica, boate interna do clube. Isso sem contar os agitos na praia de Torres e Garopaba.
A chegada da maioridade trifurcou o personagem. Envolvido com o serviço militar e a faculdade de Educação Física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), futuramente abandonado no último semestre, ele arranjou tempo para trabalhar como representante comercial de grifes de surfe – experiência que o levou a fundar a marca Chapéu de Cobra, especializada na confecção de camisas de lycra contra assaduras causadas por roupas de neoprene na rapaziada que pegava onda. “Mas o Plano Cruzado (1986) criou dificuldades para os clientes pagarem as compras, então pensei que era muito jovem para viver estressado”, explica. “Decidi morar nos Estados Unidos”.
Miami. Nova York. Em Los Angeles, sete anos como entregador de pizzas, garçom, cozinheiro e funcionário de um estúdio de sonorização em Hollywood. Morou na casa da atriz Joanna Cassidy, uma das androides do filme Blade Runner (1982) e que, durante os meses de gravação de uma minissérie na Pensilvânia, o encarregou de zelar pelo imóvel, com direito a carro, cartão de crédito e tempo vago para cruzar a fronteira mexicana. Em ambos os lados, algo que não conhecia: restaurantes de tex-mex, adaptação da culinária típica do país vizinho ao paladar norte-americano. Burritos, tacos, tortillas e outros pratos típicos seriam decisivos nos planos de Ricardo.
Encerrada a aventura norte-americana após um capítulo final como assistente de cozinha em um estabelecimento do gênero, em 1993 o rapaz voltou cheio de ideias. Montou em Torres o até hoje lembrado bar Remador e, depois, aplicou sua experiência californiana para criar na capital gaúcha o El Burrito. Instalado na avenida Cristóvão Colombo próximo ao Colégio São João, ali estava o segundo (e na época o único) restaurante mexicano da cidade – no bairro Auxiliadora, o pioneiro Jalisco (1988-1992) já havia pendurado o sombrero. Tudo ia bem, até a dona pedir a desocupação do ponto, contratempo que seria contornado com uma solução caseira.
Inspiração mexicana no Moinhos de Vento
Azteca (na foto, com a fachada de 1996) conquistou o público jovem-adulto
ACERVO GAD DESIGN/REPRODUÇÃO/JC
Em meio à urgência na busca por um novo espaço comercial, na metade da década de 1990 Ricardo Koeche teve a atenção desviada para o sobrado da Padre Chagas. O pai sofrera uma tentativa de roubo no pátio frontal e, ao voltar correndo em direção à porta, só não foi baleado porque a pistola de um dos dois assaltantes fez o 'clic' típico das falhas de disparo. A dupla desistiu do ataque, deixando para trás uma família tão assustada que aceitou os conselhos para mudar de endereço. Com a casa disponível para aluguel, o filho empresário decidiu ali investir na montagem de um negócio maior e mais complexo que o anterior.
Eis a ideia: um bar-restaurante de inspiração mexicana, voltado ao público jovem-adulto. Doses generosas de inovação e coragem se faziam necessárias para subir a aposta em uma culinária ainda desconhecida por boa parte de Porto Alegre e com uma logística operacional recheada de desafios (matéria-prima, treinamento de equipe etc.), em uma rua de movimento noturno praticamente nulo. “Foi quando entrou em cena o meu amigo Cesar Bertoglio, herdeiro da empresa ABC Transportes e disposto a diversificar investimentos”, conta Ricardo. “Ganhei não apenas um sócio mas também o parceiro ideal, disposto a colocar a mão na massa.”
A estratégia incluiu desde o início a busca por parcerias com marcas ligadas ao segmento. Na lista estava a cervejaria Corona, em fase de popularização no Brasil e que 'pegou junto'. Resultado: 15 dias de imersão cultural-etílica-gastronômica patrocinada à dupla em Acapulco, Cancún, Cuernavaca, Taxco e Cidade do México. Na bagagem de volta, um baita aprendizado sobre comes & bebes, além de quilos de itens para decoração do estabelecimento, já sob preparativos finais que incluíam os serviços da renomada agência GAD Design para a criação de identidade visual e layout interno/externo repletos de referências estéticas pré-colombianas.
“O México aterrissa em Porto Alegre e você no Azteca”, avisava por mala-direta o convite colorido para o coquetel de inauguração, em 8 de outubro de 1996, uma terça-feira. A enorme rede de contatos de Koeche e Bertoglio garantiu casa cheia e muitas risadas já no saguão: vestida de bandoleira, a recepcionista e garçonete Danusa Gross sacava do cinturão de couro uma garrafa de tequila e, tão logo o cliente sorvesse a dose de um só gole, tinha a cabeça agitada em movimentos circulares, como se o cérebro fosse uma coqueteleira. “Deixei muita gente bêbada”, diverte-se a hoje cabeleireira de 46 anos, radicada no litoral catarinense.
Muita gente fez do lugar a sua opção preferencial de entretenimento, contribuindo para que a Padre Chagas jamais fosse a mesma. Irmã de Danusa e também integrante da equipe antes de partir para uma carreira como chef de cozinha e dona de restaurante na Praia do Rosa (SC), Débora Gross Kreisler respondia pela organização e atendimento das mesas, dentre outras funções. Dessa experiência ela corrobora, aos 52 anos, os relatos sobre o impacto do Azteca na vida noturna da região, em uma casa sempre lotada, ótima comida, drinques caprichados, alto astral e lances hilários em um dos lugares mais bonitos da noite na época:
“Era comum o pessoal beber sentado e, na hora de ficar de pé, já estar muito doido de tequila e outros drinques. Das tantas coisas que testemunhei, lembro até hoje da situação de uma menina que se desequilibrou e saiu rolando escada abaixo ao descer do segundo andar para o térreo, indo parar bem no meu pé. Eu a ajudei a se reerguer e ela então pediu ajuda para encontrar um dente que havia perdido durante a queda. A casa estava bombando e, mesmo assim, conseguimos encontrá-lo em meio a um monte de clientes. A guria agradeceu, guardou o dente na bolsa e continuou banguela, curtindo a festa até o final, como se nada tivesse acontecido!”
Eis a ideia: um bar-restaurante de inspiração mexicana, voltado ao público jovem-adulto. Doses generosas de inovação e coragem se faziam necessárias para subir a aposta em uma culinária ainda desconhecida por boa parte de Porto Alegre e com uma logística operacional recheada de desafios (matéria-prima, treinamento de equipe etc.), em uma rua de movimento noturno praticamente nulo. “Foi quando entrou em cena o meu amigo Cesar Bertoglio, herdeiro da empresa ABC Transportes e disposto a diversificar investimentos”, conta Ricardo. “Ganhei não apenas um sócio mas também o parceiro ideal, disposto a colocar a mão na massa.”
A estratégia incluiu desde o início a busca por parcerias com marcas ligadas ao segmento. Na lista estava a cervejaria Corona, em fase de popularização no Brasil e que 'pegou junto'. Resultado: 15 dias de imersão cultural-etílica-gastronômica patrocinada à dupla em Acapulco, Cancún, Cuernavaca, Taxco e Cidade do México. Na bagagem de volta, um baita aprendizado sobre comes & bebes, além de quilos de itens para decoração do estabelecimento, já sob preparativos finais que incluíam os serviços da renomada agência GAD Design para a criação de identidade visual e layout interno/externo repletos de referências estéticas pré-colombianas.
“O México aterrissa em Porto Alegre e você no Azteca”, avisava por mala-direta o convite colorido para o coquetel de inauguração, em 8 de outubro de 1996, uma terça-feira. A enorme rede de contatos de Koeche e Bertoglio garantiu casa cheia e muitas risadas já no saguão: vestida de bandoleira, a recepcionista e garçonete Danusa Gross sacava do cinturão de couro uma garrafa de tequila e, tão logo o cliente sorvesse a dose de um só gole, tinha a cabeça agitada em movimentos circulares, como se o cérebro fosse uma coqueteleira. “Deixei muita gente bêbada”, diverte-se a hoje cabeleireira de 46 anos, radicada no litoral catarinense.
Muita gente fez do lugar a sua opção preferencial de entretenimento, contribuindo para que a Padre Chagas jamais fosse a mesma. Irmã de Danusa e também integrante da equipe antes de partir para uma carreira como chef de cozinha e dona de restaurante na Praia do Rosa (SC), Débora Gross Kreisler respondia pela organização e atendimento das mesas, dentre outras funções. Dessa experiência ela corrobora, aos 52 anos, os relatos sobre o impacto do Azteca na vida noturna da região, em uma casa sempre lotada, ótima comida, drinques caprichados, alto astral e lances hilários em um dos lugares mais bonitos da noite na época:
“Era comum o pessoal beber sentado e, na hora de ficar de pé, já estar muito doido de tequila e outros drinques. Das tantas coisas que testemunhei, lembro até hoje da situação de uma menina que se desequilibrou e saiu rolando escada abaixo ao descer do segundo andar para o térreo, indo parar bem no meu pé. Eu a ajudei a se reerguer e ela então pediu ajuda para encontrar um dente que havia perdido durante a queda. A casa estava bombando e, mesmo assim, conseguimos encontrá-lo em meio a um monte de clientes. A guria agradeceu, guardou o dente na bolsa e continuou banguela, curtindo a festa até o final, como se nada tivesse acontecido!”
Baila!
Logomarca do Azteca, sucesso na Padre Chagas na segunda metade dos anos 1990
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
Após duas temporadas suficientes para inscrever o nome do Azteca no álbum de figurinhas da vida social porto-alegrense, o negócio começava a dar sinais de estagnação. O diagnóstico indicou uma obviedade que ainda não recebera a devida atenção dos proprietários: parte considerável da clientela fazia do lugar apenas uma escala de abastecimento para aventuras nas pistas das dezenas de casas noturnas que agitavam a cidade. Em um exemplo clássico de reposicionamento de marketing, Cesar e Ricardo deram novo fôlego ao serviço de bar (incluindo a instalação de mesas na área externa) e redesenharam o ambiente interno para que abrigasse uma pista de dança.
A iniciativa foi certeira. Enquanto o restaurante mantinha uma freguesia mais elitizada, o bar atraía um público menos privilegiado economicamente e o mesmo acontecia com a boate, no embalo de uma receita sonora temperada por discotecagens e música ao vivo. “Lá pelas dez da noite, uma sineta avisava que era hora do pessoal esvaziar as mesas do salão no miolo da casa, retiradas para que aquela parte do restaurante fosse rapidamente convertida em boate”, conta Ricardo. O cardápio tinha pop-rock, reggae – música mexicana, só no restaurante – e uma jogada que muitos consideraram de alto risco para um bairro como o Moinhos de Vento: o pagode.
“O pessoal do Azteca descobriu a gente tocando composições próprias e covers do gênero no bar Virtual (na 24 de Outubro, perto da antiga lancheria Rib’s) e nos contratou para shows aos domingos”, relembra o cantor e locutor publicitário Eduardo Pitta, 43 anos, na época vocalista da banda Se Ativa (1998-2011). “Estávamos em início de carreira e, para surpresa geral, a casa passou a ter filas do lado de fora, logo motivando apresentações também às quintas-feiras. Nosso estouro como pioneiros em Porto Alegre do que depois seria conhecido como ‘pagode universitário’ está diretamente ligado a essa experiência.”
Pitta desencava um incidente que já rendeu muitas risadas em suas rodas de samba: “Certa noite, um jovenzinho com pinta de surfista, cara amarrada e metido a brigão não conseguia esconder o ciúme por causa da atenção que recebíamos das meninas da plateia. Aí ele sumiu de vista, a festa prosseguiu e, lá pelas tantas, um funcionário da casa veio devolver o meu cavaco, sem que eu entendesse a situação. Foi quando soubemos que o carinha, só por birra, tinha surrupiado o instrumento no canto do palco e saído correndo sem pagar, até ser alcançado já na rua pela rasteira de um dos seguranças, enquanto um colega pegava o instrumento no ar”.
O caça-fujões em questão era Milton Vieira da Silva, 69 anos, atualmente a serviço de uma imobiliária. Membro da equipe durante toda a trajetória do Azteca, “Miltão” se destacava por unir força e diplomacia desde os tempos em que garantia a ordem no bar 433 ou na boate Crocodillo’s, ambos no bairro Auxiliadora. Ele reivindica a paternidade do apelido 'Calçada da Fama', que definiu o espírito da Padre Chagas como passarela de gente bem nascida. Mais do que isso: “Eu também trabalhava com uma vereadora e consegui que ela intercedesse junto à prefeitura para que a rua Fernando Gomes tivesse mão-dupla, permitindo o acesso de carro pela 24 de Outubro”.
A iniciativa foi certeira. Enquanto o restaurante mantinha uma freguesia mais elitizada, o bar atraía um público menos privilegiado economicamente e o mesmo acontecia com a boate, no embalo de uma receita sonora temperada por discotecagens e música ao vivo. “Lá pelas dez da noite, uma sineta avisava que era hora do pessoal esvaziar as mesas do salão no miolo da casa, retiradas para que aquela parte do restaurante fosse rapidamente convertida em boate”, conta Ricardo. O cardápio tinha pop-rock, reggae – música mexicana, só no restaurante – e uma jogada que muitos consideraram de alto risco para um bairro como o Moinhos de Vento: o pagode.
“O pessoal do Azteca descobriu a gente tocando composições próprias e covers do gênero no bar Virtual (na 24 de Outubro, perto da antiga lancheria Rib’s) e nos contratou para shows aos domingos”, relembra o cantor e locutor publicitário Eduardo Pitta, 43 anos, na época vocalista da banda Se Ativa (1998-2011). “Estávamos em início de carreira e, para surpresa geral, a casa passou a ter filas do lado de fora, logo motivando apresentações também às quintas-feiras. Nosso estouro como pioneiros em Porto Alegre do que depois seria conhecido como ‘pagode universitário’ está diretamente ligado a essa experiência.”
Pitta desencava um incidente que já rendeu muitas risadas em suas rodas de samba: “Certa noite, um jovenzinho com pinta de surfista, cara amarrada e metido a brigão não conseguia esconder o ciúme por causa da atenção que recebíamos das meninas da plateia. Aí ele sumiu de vista, a festa prosseguiu e, lá pelas tantas, um funcionário da casa veio devolver o meu cavaco, sem que eu entendesse a situação. Foi quando soubemos que o carinha, só por birra, tinha surrupiado o instrumento no canto do palco e saído correndo sem pagar, até ser alcançado já na rua pela rasteira de um dos seguranças, enquanto um colega pegava o instrumento no ar”.
O caça-fujões em questão era Milton Vieira da Silva, 69 anos, atualmente a serviço de uma imobiliária. Membro da equipe durante toda a trajetória do Azteca, “Miltão” se destacava por unir força e diplomacia desde os tempos em que garantia a ordem no bar 433 ou na boate Crocodillo’s, ambos no bairro Auxiliadora. Ele reivindica a paternidade do apelido 'Calçada da Fama', que definiu o espírito da Padre Chagas como passarela de gente bem nascida. Mais do que isso: “Eu também trabalhava com uma vereadora e consegui que ela intercedesse junto à prefeitura para que a rua Fernando Gomes tivesse mão-dupla, permitindo o acesso de carro pela 24 de Outubro”.
Arriba!
Caracterização de garçons e do ambiente aumentava o clima de descontração
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
Outra protagonista é Joanna Dal Santo, a Jô, 50 anos. Do estágio do curso de Administração na Universidade do Vale do Sinos (Unisinos) ao longo período como funcionária até o último dia, ela desempenhou funções de estoquista, auxiliar de planejamento e secretária-executiva responsável pelo contato com fornecedores, bandas e imprensa. “Cada um do seu jeito, Ricardo e Cesar são caras sensacionais, pessoal e profissionalmente”, elogia. No balanço dos tantos momentos vividos nos bastidores, uma passagem constrangedora continua a merecer espaço nas lembranças da hoje analista sênior de crédito em uma empresa financeira:
“Uma moça tinha reservado o salão da frente para comemorar o aniversário com os amigos e chegou cedo, mas as horas se passavam sem que alguém aparecesse. E a coitada esperando ali sozinha, enquanto os garçons eram pressionados por outros clientes a liberar o espaço, um dos mais concorridos da casa. Quando o relógio bateu 21h, horário-limite para reter as mesas, a confraternização foi cancelada por absoluta falta de quórum, restando à moça aquele momento de solidão em meio a um monte de gente feliz. Fiquei tão chateada com a situação que sequer tive coragem de me aproximar da coitadinha, simplesmente por não saber o que diria”.
Contratempos à parte, a maioria dos relatos aponta para um point pra lá de de divertido. A atmosfera descontraída conquistou habituês como Fernanda Catine, já na época co-protagonista da transformação social e econômica da região. Moradora da Félix da Cunha e então sócia com a irmã Karina em uma loja de roupas femininas na outra ponta da Padre Chagas, a microempresária encontrou no Azteca o lugar ideal para curtir a solteirice. “Eu era tri festeira e ia muito lá, com amigas ou sozinha, para dançar e conhecer pessoas”, rememora aos 47 anos. “O vínculo afetivo com os donos, funcionários e frequentadores reforçava a sensação de pertencimento.”
O empresário hoteleiro e gerente industrial Luiz Fernando 'Bunny' Monteiro, 59 anos, compartilha de modo ainda mais íntimo esse sentimento em relação ao sobrado de número 44, um dos cenários de sua juventude desde os tempos em que o imóvel servia de residência à família Koeche. Amigo de Ricardo (com quem chegou a dividir alojamento nos Estados Unidos), ele atribui a uma soma de fatores o fato de o mix de restaurante, bar e boate de inspiração mexicana ter dado tão certo, a começar pelo gigantesco network e apurada visão mercadológica: “Ser um aglutinador sempre em movimento e um passo à frente tornou o Ricardo um cara icônico em Porto Alegre”.
Bunny coleciona em suas resenhas a noite em que a atitude espontânea de uma criança serviu de cupido para um romance: “Com 4 anos, a filha mais velha do Ricardo estava com ele em uma festa no Azteca e deixei que brincasse com uma câmera que eu trouxera da Califórnia. Assim que me viu conversando com a Lore, amiga de infância que reencontrei após décadas sem contato, a menina tirou uma foto. A imagem revelada dias depois era linda, com um ângulo diferente e que fazia a gente parecer um casal. O pessoal pegou no nosso pé, dizendo que era namoro. A brincadeira virou coisa séria e estamos juntos há quase 25 anos”.
“Uma moça tinha reservado o salão da frente para comemorar o aniversário com os amigos e chegou cedo, mas as horas se passavam sem que alguém aparecesse. E a coitada esperando ali sozinha, enquanto os garçons eram pressionados por outros clientes a liberar o espaço, um dos mais concorridos da casa. Quando o relógio bateu 21h, horário-limite para reter as mesas, a confraternização foi cancelada por absoluta falta de quórum, restando à moça aquele momento de solidão em meio a um monte de gente feliz. Fiquei tão chateada com a situação que sequer tive coragem de me aproximar da coitadinha, simplesmente por não saber o que diria”.
Contratempos à parte, a maioria dos relatos aponta para um point pra lá de de divertido. A atmosfera descontraída conquistou habituês como Fernanda Catine, já na época co-protagonista da transformação social e econômica da região. Moradora da Félix da Cunha e então sócia com a irmã Karina em uma loja de roupas femininas na outra ponta da Padre Chagas, a microempresária encontrou no Azteca o lugar ideal para curtir a solteirice. “Eu era tri festeira e ia muito lá, com amigas ou sozinha, para dançar e conhecer pessoas”, rememora aos 47 anos. “O vínculo afetivo com os donos, funcionários e frequentadores reforçava a sensação de pertencimento.”
O empresário hoteleiro e gerente industrial Luiz Fernando 'Bunny' Monteiro, 59 anos, compartilha de modo ainda mais íntimo esse sentimento em relação ao sobrado de número 44, um dos cenários de sua juventude desde os tempos em que o imóvel servia de residência à família Koeche. Amigo de Ricardo (com quem chegou a dividir alojamento nos Estados Unidos), ele atribui a uma soma de fatores o fato de o mix de restaurante, bar e boate de inspiração mexicana ter dado tão certo, a começar pelo gigantesco network e apurada visão mercadológica: “Ser um aglutinador sempre em movimento e um passo à frente tornou o Ricardo um cara icônico em Porto Alegre”.
Bunny coleciona em suas resenhas a noite em que a atitude espontânea de uma criança serviu de cupido para um romance: “Com 4 anos, a filha mais velha do Ricardo estava com ele em uma festa no Azteca e deixei que brincasse com uma câmera que eu trouxera da Califórnia. Assim que me viu conversando com a Lore, amiga de infância que reencontrei após décadas sem contato, a menina tirou uma foto. A imagem revelada dias depois era linda, com um ângulo diferente e que fazia a gente parecer um casal. O pessoal pegou no nosso pé, dizendo que era namoro. A brincadeira virou coisa séria e estamos juntos há quase 25 anos”.
Gracias
Depois das 22h, salão do Azteca tinha as mesas recolhidas e se transformava em uma concorrida pista de dança
ACERVO BUNNY MONTEIRO/REPRODUÇÃO/JC
Enquanto supostas previsões astrológicas de civilizações pré-colombianas sobre o fim do mundo na virada do século rendiam assunto nos mais variados círculos, para Cesar Bertoglio e Ricardo Koeche havia uma preocupação bem mais concreta: a perda progressiva de clientela. O roteiro da gandaia em constante transformação na cidade deslocava o eixo de atenção do público para novas alternativas, levando a dupla a um último sacrifício diante do eclipse financeiro. “Na tentativa de salvar o negócio, resumimos as operações a um esquema mais simples, como o do Bar do Beto, mas não teve jeito e a solução foi encerrar as atividades”, contextualiza Ricardo.
O pioneiro das noites na Padre Chagas teve enfim o seu apocalipse às vésperas do Natal de 2000. Parte da mística do endereço se manteria ao longo de duas décadas com uma sequência de inquilinos (pizzaria Graphite, Thai Bar, Shikki Café, temakeria Japesca, Banca 40), em meio ao ciclo de altos e baixos de uma das vias mais tradicionais do bairro como centro de diversão pós-happy hour. Sem interessados em ocupá-lo após a chegada da pandemia de coronavírus, o sobrado acabou vendido pela família a uma construtora e derrubado em julho de 2023 para dar lugar a dois prédios – a obra já avança atrás de um tapume escuro.
Especulação imobiliária. Moradores inquietos com o ruído das festas de calçada. Regras municipais mais rígidas. Novos atrativos etílico-gastronômicos. Mudanças no perfil de público. A própria dinâmica do cenário de baladas, que muitas vezes faz do próprio êxito um motivo de declínio. Café do Porto. Taperia. K-Zuka. 300. Dublin. Mulligan. Faro. Shisha. Nas três quadras urbanizadas há mais de 100 anos, apenas o Thomas Pub resiste (desde 2011) à debandada. Resta a mitologia de um templo que, sob as bênçãos do padre Chagas e do imperador Montezuma, apimentou a vida boêmia em um dos redutos da elegância na capital gaúcha.
O pioneiro das noites na Padre Chagas teve enfim o seu apocalipse às vésperas do Natal de 2000. Parte da mística do endereço se manteria ao longo de duas décadas com uma sequência de inquilinos (pizzaria Graphite, Thai Bar, Shikki Café, temakeria Japesca, Banca 40), em meio ao ciclo de altos e baixos de uma das vias mais tradicionais do bairro como centro de diversão pós-happy hour. Sem interessados em ocupá-lo após a chegada da pandemia de coronavírus, o sobrado acabou vendido pela família a uma construtora e derrubado em julho de 2023 para dar lugar a dois prédios – a obra já avança atrás de um tapume escuro.
Especulação imobiliária. Moradores inquietos com o ruído das festas de calçada. Regras municipais mais rígidas. Novos atrativos etílico-gastronômicos. Mudanças no perfil de público. A própria dinâmica do cenário de baladas, que muitas vezes faz do próprio êxito um motivo de declínio. Café do Porto. Taperia. K-Zuka. 300. Dublin. Mulligan. Faro. Shisha. Nas três quadras urbanizadas há mais de 100 anos, apenas o Thomas Pub resiste (desde 2011) à debandada. Resta a mitologia de um templo que, sob as bênçãos do padre Chagas e do imperador Montezuma, apimentou a vida boêmia em um dos redutos da elegância na capital gaúcha.
Um tal de Padre Chagas
Carioca radicado no Rio Grande do Sul, o padre Francisco das Chagas Martins Ávila e Sousa (1788-1865) se destacou como sacerdote e deputado. Foi o parlamentar mais votado na primeira legislatura do Parlamento farroupilha, durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), além de exercer mandato também na terceira assembleia.
A atuação combativa como vigário apostólico (uma espécie de bispo da província) do movimento rebelde teve entre suas marcas a desobediência à matriz eclesiástica no Rio de Janeiro, sede do governo imperial. Essa ruptura fez com que os atos clericais da Igreja Católica gaúcha fossem revogados após a derrota gaúcha na revolução.
A atuação combativa como vigário apostólico (uma espécie de bispo da província) do movimento rebelde teve entre suas marcas a desobediência à matriz eclesiástica no Rio de Janeiro, sede do governo imperial. Essa ruptura fez com que os atos clericais da Igreja Católica gaúcha fossem revogados após a derrota gaúcha na revolução.
México em Porto Alegre
Logomarca do Jalisco, pioneiro no segmento de comida mexicana em Porto Alegre
ACERVO MARCELLO CAMPOS/REPRODUÇÃO/JC
Porto Alegre sequer contava com um consulado do México em 1988 (a representação diplomática só chegaria 21 anos depois), quando os irmãos Cristine e Alexandre Boelter se associaram a Adriana Kliemann para que a Capital saboreasse o seu primeiro restaurante especializado em comidas típicas do país latino-americano: o Jalisco. Instalado na esquina da rua 24 de Outubro com a Mariland – atual loja Tok&Stok – e depois na Mata Bacelar próximo à Nova York, ambas no bairro Auxiliador, o estabelecimento funcionou até 1992 como único do gênero no Estado, antes da abertura do El Burrito e do Azteca por Ricardo Koeche.
“Tudo começou com o mano voltando de passeio ao México com uma tortilla na bagagem para nos mostrar aquela culinária diferente e saborosa, que ele pretendia transformar em negócio”, conta a nutricionista Cristine. “Fizemos contatos com fornecedores, pesquisas gastronômicas e experiências com receitas ligeiramente adaptadas ao paladar brasileiro, com menos pimenta, mas respeitando ao máximo as versões originais. A inauguração do Jalisco deixou o pessoal maravilhado! Para garantir a qualidade e autenticidade dos pratos, a gente importava ingredientes e até plantava alguns temperos, além de pedir a opinião de amigos que viajavam ao Exterior.”
Ainda segundo Cristine, a experiência teve o seu fim abreviado pelo Plano Collor (pacote de medidas econômicas decretado pelo governo federal em 1990 e que incluía o bloqueio de aplicações financeiras), além de alguns erros estratégicos. “A decisão de trocar uma loja pequena por outra maior encareceu as despesas com aluguel, equipe, esse tipo de coisa. Fechamos antes de completar quatro anos de uma história da qual temos muito orgulho”. O legado permanece: desde então, Porto Alegre acumula uma lista de ótimas casas dedicadas ao segmento – Taco Loco, Pueblo, Guacamole, Calimex, El Mexicano, Tangamandápio, Mexbox, Chica Maria.
“Tudo começou com o mano voltando de passeio ao México com uma tortilla na bagagem para nos mostrar aquela culinária diferente e saborosa, que ele pretendia transformar em negócio”, conta a nutricionista Cristine. “Fizemos contatos com fornecedores, pesquisas gastronômicas e experiências com receitas ligeiramente adaptadas ao paladar brasileiro, com menos pimenta, mas respeitando ao máximo as versões originais. A inauguração do Jalisco deixou o pessoal maravilhado! Para garantir a qualidade e autenticidade dos pratos, a gente importava ingredientes e até plantava alguns temperos, além de pedir a opinião de amigos que viajavam ao Exterior.”
Ainda segundo Cristine, a experiência teve o seu fim abreviado pelo Plano Collor (pacote de medidas econômicas decretado pelo governo federal em 1990 e que incluía o bloqueio de aplicações financeiras), além de alguns erros estratégicos. “A decisão de trocar uma loja pequena por outra maior encareceu as despesas com aluguel, equipe, esse tipo de coisa. Fechamos antes de completar quatro anos de uma história da qual temos muito orgulho”. O legado permanece: desde então, Porto Alegre acumula uma lista de ótimas casas dedicadas ao segmento – Taco Loco, Pueblo, Guacamole, Calimex, El Mexicano, Tangamandápio, Mexbox, Chica Maria.
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected]