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Boate Lei Seca foi fenômeno de popularidade na década de 1990
Boate preferida de boa parte da jovem classe média de Porto Alegre, Lei Seca marcou o mapa noturno da Capital entre 1993 e 1997
O relógio do Estádio Olímpico marcava quase meia-noite em 23 de agosto de 1995 quando o atacante gremista Nildo "Bigode" fazia da cerveja um estímulo à urina para o exame antidoping. Sem marcar gol, mas embalado pelos 3 a 1 sobre o Atlético Nacional da Colômbia, no primeiro duelo das finais que dariam ao clube gaúcho sua segunda Copa Libertadores da América (empate de 1 a 1 fora de casa, na semana seguinte), ele estendeu a bebida e um convite ao goleiro adversário René Higuita, também sorteado para o teste: "Vamos para uma boate? O pessoal tá todo lá!"
Leia as demais matérias da série Porto Noite Alegre:
• Clube da Chave: a casa noturna mais intelectual de Porto Alegre
• Boate Barbazul: um coquetel de profissionalismo na noite porto-alegrense
• La Camorra: uma boate especialmente construída na avenida Goethe
• Looking Glass, a primeira 'discoteque' de Porto Alegre
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• Boate Barbazul: um coquetel de profissionalismo na noite porto-alegrense
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Aposta na simplicidade
As viagens frequentes de Marcus 'Peninha' Consiglio como funcionário da estatal Aços Finos Piratini não resultavam apenas em relatórios de trabalho. Também aumentavam a convicção de que a noite porto-alegrense poderia ser melhor. Consequência: a inauguração do Kilt Pub, em 15 de dezembro de 1982, tendo no andar de cima o restaurante Porto's (de Gilberto Dietrich e Schullas Nonnenmacher). Primeiro bar em estilo escocês da Capital, o estabelecimento na Plínio Brasil Milano tinha funcionários em trajes típicos, jogos de dardos, muito rock e blues ao vivo, atraindo um público de classe-média alta a partir dos 30 anos, incluindo gente da aviação civil e de consulados.
Em 1989, o convite de um amigo diplomata o levou a comandar negócio similar na cidade espanhola de Zaragoza. O Kilt foi então adquirido, a partir de anúncio em jornal, pelo agroempresário Francisco Provenze, em sociedade com dois jovens parceiros no comércio de computadores montados com peças adquiridas no Paraguai: o estudante de contabilidade Luís Felipe Guedes e o ex-acadêmico Roni Feres, que deixara o curso de Estatística e o emprego de programador na siderúrgica Gerdau em busca de novos desafios. A inexperiência do trio no ramo noturno e os altos custos levaram a casa a um período de estagnação - o retorno à Capital, mais de um ano depois, teria para Peninha um gosto de cerveja quente ao deparar com a situação.
O bar ainda sopraria os foles até 1992, mesmo em baixa. "Circulando apenas como cliente no meu antigo estabelecimento, sugeri uma guinada de forma e conteúdo, com mudança de nome, conceito de danceteria e foco na clientela jovem", contextualiza Consiglio, 68 anos, hoje empresário no ramo de planos de saúde. “Propus, ainda, a substituição da música ao vivo por som mecânico e mais eclético, troca da cobrança de ingresso pelo sistema de consumação mínima (abolido pela legislação em 2006), venda de bebidas a um preço mais acessível e uma aposta forte em ações promocionais.” Com a ida de Guedes para a Inglaterra, Peninha reassumiu participação no negócio (sem constar no contrato social), por ele rebatizado de Lei Seca Pub Bar.
Uma campanha massiva de divulgação corpo-a-corpo foi deflagrada, com dezenas de promoters freelancer em locais como universidades e shoppings, anunciando a inauguração para 18 de março de 1993. Sem alterações significativas no layout interno ou externo e se beneficiando do avanço da movimentação noturna nas imediações (Fim de Século, Torre Eiffel, Publicitá Café, Paisley Park, Santa Mônica), o castelinho rapidamente virou opção preferencial para um público oriundo das mais diversas partes da cidade. Menos de três meses bastaram para que o expediente restrito a quintas, sextas e sábados se estendesse às terças, quartas e domingos, recebendo cerca de 300 pessoas por jornada. Havia só duas mesas, geralmente ocupadas pelos donos.
"Principalmente na época em que eu estava solteira e saía para baladas, o lugar era um dos primeiros na lista da minha turma para dançar, falar bobagem, dar risadas, encontrar amigos e conhecer pessoas", conta com saudade a bibliotecária Magda Guimarães, 50 anos e radicada em São Paulo desde 2007. "Além da entrada 'free' ou com desconto, rolavam muitas festas universitárias com acesso liberado, esse tipo de facilidade que atrai o estudante sem dinheiro para curtir mais de uma circulada por semana. Muitas vezes entrei pensando em sair à meia-noite, mas só fui embora lá pelas quatro da manhã. A pista podia estar tão cheia que a gente chegava a ficar de costas coladas nas de alguém."
"Principalmente na época em que eu estava solteira e saía para baladas, o lugar era um dos primeiros na lista da minha turma para dançar, falar bobagem, dar risadas, encontrar amigos e conhecer pessoas", conta com saudade a bibliotecária Magda Guimarães, 50 anos e radicada em São Paulo desde 2007. "Além da entrada 'free' ou com desconto, rolavam muitas festas universitárias com acesso liberado, esse tipo de facilidade que atrai o estudante sem dinheiro para curtir mais de uma circulada por semana. Muitas vezes entrei pensando em sair à meia-noite, mas só fui embora lá pelas quatro da manhã. A pista podia estar tão cheia que a gente chegava a ficar de costas coladas nas de alguém."
Descida triunfal
As tradicionais filas em frente às mais concorridas boates da capital gaúcha não demoraram a se formar também na calçada diante do número 525, indicando a urgência de um espaço capaz de atender ao fluxo que já havia superado o mero apelo da novidade. Também é verdade que o barulho vinha causando broncas com vizinhos e prefeitura, sem que os ajustes providenciados resolvessem 100% do problema. Dois quilômetros adiante, a solução: um dos reis da noite porto-alegrense, Pedro Mello (1954-2016) estava desistindo de explorar o sobrado onde capitaneara o restaurante Trabuco (1990-1991), a danceteria Bunker (1992-1993) e o bar Tucano Café (1994), na fronteira do bairro Auxiliadora com Moinhos de Vento. Ponto ainda montado e já disponível.
Completando o seu segundo aniversário, em março de 1995 o Lei Seca descia dez quadras da Plínio Brasil Milano e dobrava à direita para se instalar em definitivo no número 455 da rua Coronel Bordini. O hoje corretor imobiliário Hugo Ramirez, 47 anos, testemunhou como DJ as duas fases do empreendimento, no qual ingressara ainda adolescente como integrante da equipe de luz e som terceirizada pelo Kilt: "Com a transferência do porão em Higienópolis para o ambiente de dois andares, o público saltou de 300 para 700 cabeças por noite. Mas a pegada permaneceu a mesma, com uma seleção musical bem sortida e uma sirene anunciando a abertura dos trabalhos na pista".
Ele corrobora os relatos da onipresença de boleiros do Grêmio treinado por Luiz Felipe Scolari em meados da década de 1990: "Eles estavam sempre por lá, para alegria do Roni Feres, torcedor fanático do clube, embora também pintassem alguns jogadores do Inter. O goleiro Danrlei atacou algumas vezes de DJ (brincadeira levada a sério com uma participação, em 1997, no CD Ferveção Máxima, com 14 faixas de dancemusic pela gravadora paulista Paradoxx). Isso sem contar outros famosos que apareciam para conferir o movimento. Uma noite, por exemplo, dei de cara com o cantor James Reyne (fundador da então extinta banda de rock Australian Crawl, bastante popular no Brasil), que recém tinha saído de uma apresentação no Gigantinho".
Habituês menos célebres também colecionam lances dantescos ao folclore da boate. É o caso do publicitário Paulo Roberto Álvares, 53 anos, coadjuvante de um episódio ocorrido em maio de 1995: "Eu tinha uma 'ex' que não se conformava com o fim da relação e inventou de me seguir de táxi até a boate, sem eu perceber. Quando me viu aos beijos com uma nova namorada, foi tirar satisfação da guria e rolou um tremendo bate-boca na área do corredor, junto ao balcão dos barmen. Tentei acalmar os ânimos e acabei levando uns safanões das duas, sem que ninguém entendesse direito toda aquela confusão. O pessoal achou graça quando um dos meus amigos também apanhou, sem motivo algum, só porque estava por perto".
Nos bastidores, prosseguia o engarrafamento e distribuição de um marketing direcionado ao público jovem-adulto de classe média. Principal chamariz: festas de aniversariantes, formandos, grupos de amigos etc., nas quais o anfitrião tinha seu nome impresso no convite e regalias como entrada isenta de consumação mínima, de forma que esses colaboradores atuavam como promoters informais da casa. Também se investia pesado em cartazes e folders, além de campanhas de rádio e aparições frequentes em programas da mídia local como o Tele Ritmo, apresentado pelo comunicador Clóvis Dias Costa na TV2 Guaíba (1980-2007). "Chegamos a gastar uns US$ 7 mil por mês em gráficas e divulgação", quantifica o sócio-fundador Peninha.
Nos bastidores, prosseguia o engarrafamento e distribuição de um marketing direcionado ao público jovem-adulto de classe média. Principal chamariz: festas de aniversariantes, formandos, grupos de amigos etc., nas quais o anfitrião tinha seu nome impresso no convite e regalias como entrada isenta de consumação mínima, de forma que esses colaboradores atuavam como promoters informais da casa. Também se investia pesado em cartazes e folders, além de campanhas de rádio e aparições frequentes em programas da mídia local como o Tele Ritmo, apresentado pelo comunicador Clóvis Dias Costa na TV2 Guaíba (1980-2007). "Chegamos a gastar uns US$ 7 mil por mês em gráficas e divulgação", quantifica o sócio-fundador Peninha.
"Resumo da lei"
Inspirado pelo sucesso das primeiras raves de música eletrônica em galpões e outros espaços de Porto Alegre, em julho de 1995 o Lei Seca apostou em algo semelhante. O sócio Roni Feres e o amigo Sandro Bentz já cogitavam a possibilidade desde uma viagem a São Paulo, onde esse tipo de produção já era comum. O plano virou assunto sério, tendo como principal idealizador Elton Barros, sócio da empresa Sygma - responsável pelos serviços de luz e som da boate. Local escolhido: um depósito desativado da rede de lojas Imcosul (1935-1994) na rua Ramiro Barcelos nº 196, entre as avenidas Farrapos e Voluntários da Pátria.
"O objetivo era mostrar força e explorar o potencial de arrecadação, reunindo de uma só vez toda a clientela que frequentava a casa em diferentes noites da semana", ressalta Elton, 52 anos e que continua na ativa com seu negócio. A data exata se perdeu na memória de seus protagonistas. Mas ninguém esquece a mobilização gerada pela festa, com o título de "Resumo da Lei" e que recebeu um total de aproximadamente 8 mil pessoas, causando fila quilométrica e trânsito congestionado naquele trecho do bairro Floresta. "Foi uma loucura, com o pessoal dançando até as 7 da manhã! Claro que o time do Grêmio compareceu em peso".
Em uma época de cartões de crédito e débito ainda não tão populares entre a classe média, os sacos abarrotados de dinheiro confirmavam o sucesso daquela virada de sábado para domingo. "Já não sei dizer o valor total, mas o faturamento foi tão grande que parte da equipe pernoitou com a grana em um hotel até segunda-feira, por questões de segurança, à espera da abertura da agência bancária", revela o empresário René Feres, 51 anos, irmão de Roni e responsável pelo caixa. "O Lei Seca, aliás, foi uma das primeiras boates da cidade a contar com máquina para impressão do valor do cheque, evitando as trapalhadas no preenchimento pelos mais alcoolizados."
Garrafa vazia
O fato de uma empresa estar sujeita a ciclos costuma ser especialmente cruel com empreendimentos noturnos, tão à mercê de modismos. E nem os mais bem-sucedidos costumam escapar: a questão não é "se", mas "quando". Após longo período de fervura, a movimentação no Lei Seca começou a esfriar no segundo semestre de 1996, algo esperado para quem já acumulava quase quatro anos de êxito em uma Porto Alegre apinhada por alternativas boêmias. "Novos concorrentes diretos, e até indiretos como a Dado Bier (boate-cervejaria próxima ao shopping Iguatemi, na Zona Norte), tiveram impacto nesse processo de declínio", sublinha René Feres.
De comum acordo, o pessoal optou por uma saída honrosa e com o habitual bom humor. "Você não pode ficar de fora da última festa no Lei Seca", dizia um colorido convite marcado para 30 de janeiro de 1997 e que citava números impressionantes: 1.500 noites, meio milhão de entradas e 2 milhões de cervejas vendidas. A despedida teve lotação esgotada, com distribuição gratuita dos derradeiros 300 coquetéis e uma ressaca permanente entre a clientela mais fiel. "Foi como se parte das coisas de que eu gostava na cidade tivesse acabado naquele momento", lamenta Magda Guimarães, que, na sequência migrou para opções como o bar-boate Barbazul (bairro Petrópolis) e a choperia dançante Berlin (Santana).
Os proprietários esticaram sua vinculação com o segmento, curiosamente em trajeto inverso: a volta à sede original na Plínio Brasil Milano, para ali fundar A Torre (1997-2000), que segue na memória dos quarentões como um 'terceiro capítulo' do Lei Seca. Roni ainda experimentaria novas aventuras no local, em 2001, como sócio da boate Astória (originalmente instalada na rua Castro Alves, bairro Rio Branco), antes de partir para outros ramos empresariais - até ser vitimado por um câncer aos 52 anos, em setembro de 2021, deixando uma multidão de amigos e o protagonismo nesse capítulo bacana da vida sociocultural na Porto Alegre das últimas décadas.
Enquanto isso, os dois endereços que ostentaram o emblema da garrafa proibida ganhavam diferentes destinos. O castelinho do Higienópolis manteve sua vocação noturna, com as boates Castle, Café Madrid, Hitch e Australian South Bar - ultimamente, tem servido a fins residenciais. Já o imóvel na Bordini hospedou um restaurante cujo empreendedor exagerou nas alterações físicas, levando à necessidade de demolição, por risco estrutural. Convertido em estacionamento por mais de 20 anos, o terreno sustenta um recém-inaugurado edifício residencial, com apartamentos à venda e sem qualquer vestígio de que ali morou um dos mais concorridos points de Porto Alegre.
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com